10 Julho 2021
“Sobre a religiosidade dos setores populares pesam vários mal-entendidos”, aponta o antropólogo Pablo Semán, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) e talvez umas das referências argentinas na matéria.
“Olhando de fora, partindo do pressuposto de que vivemos em sociedades que já não acreditam em qualquer tipo de intervenção do além na vida cotidiana, essa religiosidade aparece associada a ideias de superstição ou ingenuidade em suas manifestações de imagens e orações de tradição familiar, garagens onde se cantam canções evangélicas, oferendas nos altares do Gauchito Gil”.
Mas a matriz da fé argentina expressa uma zona muito mais rica de cruzamentos e intercâmbios abordada por Semán em Vivir la fe: entre el catolicismo y el pentecostalismo, la religiosidad de los sectores populares en la Argentina (Siglo XXI Editores), seu último livro. Porque a religião se liga a formas de pobreza, de desemprego ou de empregos de outra natureza, a modos de representar estas realidades e ao vínculo das instituições com a política.
A entrevista é de Ines Hayes, publicada por Clarín-Revista Ñ, 02-07-2021. A tradução é do Cepat.
Por que a pesquisa sobre a religiosidade está centrada no Bairro Aurora?
Nos anos 1990, o modo de vida das classes populares mudou fortemente e me interessava indagar o papel da religião nessa dinâmica histórica. Frequentei vários bairros no início, vi essa nova situação histórica e fiquei em um deles porque minhas relações etnográficas me permitiam trabalhar muito mais favorável, mas a verdade é que na grande Buenos Aires havia muitos bairros em que eu poderia ter feito meu trabalho. Em todos eles surgiam as novas formas de emprego, de desemprego, de pobreza e, também, novos repertórios simbólicos e novos dispositivos de comunicação.
O que quer dizer com o conceito de religião vivida?
A fé vivida é a interpretação dos crentes, mas não só sua interpretação tomando a religião como sistema de ideias, mas a fé operada como recurso vital que implica ideias, emoções, sensações que se atualizam em experiências concretas que busco descobrir. Com essa ideia, enfatizo a experiência dos sujeitos, algo que é o resultado da amarração que esses próprios sujeitos fazem entre o que dizem as instituições religiosas e sua trajetória pessoal.
É nessa amarração que é possível comprovar quais são as práticas promovidas pela religião, que sentido adquirem na vida social. É muito fácil, mas pouco válido deduzir o que significa a religião de um documento escrito ou de um discurso desengajado da forma como o destinatário o interpreta e o encarna em sua vida.
Para mim, o que interessou é o significado real, o que dialoga com os sofrimentos e as alegrias dos sujeitos concretos e o que sedimenta em uma configuração muito heterogênea em cada indivíduo e em cada bairro. A fé vivida, tento demonstrar, é muito mais variada do que a fé proposta pelas instituições ou a interpretada por um observador que lê documentos e os relaciona com a tradição das igrejas, com os reflexos nos meios de comunicação.
“Para quem vive na perspectiva cosmológica, a esperança não é infundada: o intercâmbio com o sagrado é incessante e por isso os milagres nunca são extraordinários e, finalmente, acontecem”. O que esta citação do livro demonstra?
Isto é decisivo para resolver um “mal-entendido cultural”. Com ela quero destacar o fato de que para uma boa parte da sociedade o sagrado não é algo que está “além”, mas é uma força atuante no aqui e agora. O sagrado é uma força explicativa da realidade, constitutiva dos sentimentos no aqui e o agora. Implica um nível de realidade e não uma fantasia fora dela. Um nível de realidade que faz entrar em ação algo que não são coisas, não são seres vivos da natureza, não são seres humanos, mas são entidades que se manifestam por si ou através dessas outras entidades.
Nessa perspectiva cosmológica, essas entidades fazem parte dessas intervenções. Para muitos de nós ou para a Igreja Católica em sua formulação oficial, o milagre é, na prática, algo incomum, excepcional e inexplicável. Na perspectiva cosmológica definida, o milagre é frequente, rotineiro e explicativo. Assim, a perspectiva cosmológica é uma forma de entender o milagre que se opõe à compreensão que temos a partir de outros lugares culturais e é curioso que se use uma mesma expressão para noções tão diferentes de milagre.
Quais são as bases que sustentam o pentecostalismo? Você diz que é uma “religião desenvolvida e governada pelos vizinhos”.
Há dois elementos centrais. O primeiro é que o pentecostalismo e os grupos evangélicos, cuja experiência atual está influenciada pela dos pentecostais, são os grupos cuja teologia coincide ou pode coincidir mais com os pressupostos da perspectiva cosmológica que implicam a atualidade do milagre. E isto porque nestes grupos a ideia da atualidade dos dons do Espírito Santo, ou seja, que o Espírito Santo atua hoje, agora, aqui, permite concretizar a expectativa cosmológica. Esta é uma das razões pelas quais esses grupos vêm se expandindo com notável rapidez, nos últimos 60 anos, na Argentina.
Há uma segunda razão complementar a esta que é que nas ideias evangélicas está o sacerdócio universal, que é uma responsabilidade de todo e qualquer crente, que faz com que a pessoa crente deva e possa ser promotora da boa nova. Nesse contexto, qualquer conflito de uma pessoa crente com o seu pastor ou pastora (ou o simples fato de que uma pessoa crente mude de bairro) ativa o mecanismo pelo qual essa pessoa saia de sua igreja e funde outra.
Isto implica uma logística que lhes permite crescer com muita capilaridade, por divisão, conseguindo em cada uma dessas divisões uma nova versão da mensagem evangélica que se adapta às circunstâncias singulares do novo pastor. A logística que multiplica é a mesma que permite uma fina sintonia com populações muito diferentes, em cada contexto, ainda que todas unificadas pelo que eu chamei de perspectiva cosmológica.
Por essas duas razões, o pentecostalismo, que é um movimento global, também adquire características hiperlocais. Hoje, as igrejas evangélicas nascem mais nos bairros do que por uma missão estrangeira que a implanta. Também é preciso dizer que de uma maneira diferente isto acontece no catolicismo: nas paróquias, os conselhos paroquiais, a administração do bairro, governam as orientações do catolicismo mais do que os párocos que passam alguns anos e se vão.
Como se faz política através da religião?
A religião oferece várias vias para a articulação de uma conduta ou comportamento político e não há uma correspondência única absoluta e permanente entre pertença religiosa e orientação política. O que pude observar, sobretudo nesse momento e nos setores populares, é que a permanência do peronismo como experiência atual e como memória oferecia aos crentes diversas possibilidades de transformar em dialeto político sua própria experiência religiosa.
Existem formas que para nós são mais fáceis de identificar, como a coincidência entre a Doutrina Social da Igreja e os princípios sociais do peronismo que se opõem ao liberalismo no econômico. Mas também há afinidades eletivas possíveis entre o lugar que o peronismo oferece aos “últimos” e os evangélicos que se dirigem à transformação radical dos mais desfavorecidos e golpeados ou entre a noção de ajuda que parece tão óbvia, mas que articula uma intersecção muito forte entre evangélicos e peronistas, entre perspectiva evangélica e peronista no seio de redes de contenção social nos bairros.
E também há afinidades possíveis entre a narrativa bíblica e a narrativa política e essa é outra base para potencializar trajetórias políticas que se alimentam na religião. Também não deixaria de considerar um caminho inverso, que ocorre muito entre os evangélicos, que é o fato de que certos sentimentos de autonomia e orgulho dos subalternos, trazidos pelo peronismo, servirem para operar no campo religioso e dizer: bom, eu não pertenço à religião oficial.
Há uma frase que atravessa o livro que é “Jesus es reloco, el mundo es careta”. Poderia abordá-la?
Para mim, essa frase não apenas é reveladora de uma forma de trânsito religioso especial, mas do conjunto do mecanismo por meio do qual os grupos religiosos atuam em geral. Porque, por um lado, o que essa frase condensa, e depois se vincula à trajetória especial de um jovem, é que a cultura juvenil entendida como rebeldia, que é quase um valor instituído, pode ser relida e subvertida e que, então, nos deparamos com a subversão da subversão, com a inversão da dissidência com formas de desafio à cultura oficial que tem a ver com trajetórias “conservadoras”.
Mas, por outro lado, esse mecanismo de colocar em suspensão um símbolo que aparece como evidente e de lhe oferecer uma nova conotação, implica em conferir ao simbolismo do outro um lugar em meu próprio simbolismo e o transformar e tornar mais contido. Isso é algo como o caminho de sucesso dos grupos que vencem no campo religioso e eu diria que isso também é uma lição para a política contemporânea.
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“O sagrado é uma força explicativa da realidade”. Entrevista com Pablo Semán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU