08 Julho 2021
Ao julgarem Biden como um pecador, naquilo que consideram ser um comportamento católico não representativo, os bispos dos Estados Unidos não o consideram digno dos ofícios da graça da Igreja.
A opinião é de John E. Thiel, professor de Estudos Religiosos na Fairfield University. O artigo foi publicado em Commonweal, 07-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em sua reunião de junho, a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) votou pela elaboração de um documento magisterial sobre a Eucaristia que incluirá a ação disciplinar de recusar o sacramento a políticos católicos que não estejam dispostos a assumir uma posição pública contra a decisão Roe versus Wade [que reconheceu o direito ao aborto nos EUA]. Em sua reunião de novembro, os bispos vão votar sobre o ensinamento que emitirão.
Embora sua retórica preocupada no debate fosse dirigida aos “políticos católicos”, está claro que a sua ação disciplinar se dirige a Joe Biden, o segundo presidente católico romano dos Estados Unidos.
Como os tempos mudaram. Eu tinha apenas nove anos quando John F. Kennedy foi eleito o primeiro presidente católico em 1960, mas consigo me lembrar claramente do profundo orgulho que os católicos, ainda ligados às sensibilidades de uma Igreja de imigrantes, sentiram com a sua eleição para um alto cargo.
Agora, um grande número de bispos estadunidenses não sentem tanto orgulho pela eleição do nosso segundo presidente católico. Ao invés disso, eles parecem ter a intenção de torná-lo um exemplo negativo para os fiéis católicos estadunidenses.
Essa iniciativa é especialmente surpreendente porque o presidente Biden é um católico praticante, um homem palpavelmente bom, que fala prontamente sobre como a sua profunda fé tem sido uma fonte de conforto para enfrentar as tragédias que assolam a sua vida.
Pode-se pensar que, em comparação com uma época em que os católicos abandonaram a Igreja em massa – muitos enojados com o espantoso fracasso moral dos bispos em proteger as crianças dos padres predadores –, a eleição de um presidente católico que revela a sua piedade seria um momento para celebrar na Igreja Católica estadunidense.
Ao invés disso, os bispos – ou, para fazer uma distinção justa, um número surpreendente deles – fazem de Biden o seu alvo com a mesma obstinação dos ideólogos de direita na programação noturna da Fox News.
Recusar a Eucaristia a um católico fiel, excomungá-lo pelo menos sacramentalmente, é rotulá-lo como um pecador atroz que, em virtude de seu pecado, afastou-se da Igreja.
Na opinião dos bispos, o pecado de Biden parece ser que, como político católico, ele não tomou uma posição pública e política contra o aborto.
Biden afirmou muitas vezes que ele considera o aborto um mal moral. Essa é sua crença católica. Mas, assim como muitos católicos que também acreditam nisso, ele percebe que a sua crença pessoal entra em conflito com as crenças de outros cidadãos e com a lei em uma democracia que afirma a Primeira Emenda.
Além disso, Biden afirma o direito da mulher de fazer suas próprias escolhas em relação à reprodução, mesmo que ele pessoalmente acredite que algumas dessas escolhas, embora tragicamente contextualizadas, possam ser escolhas pelo mal moral.
Como eu observei, muitos católicos estadunidenses detêm a mesma posição de Biden, assim como eu, devo dizer.
Em muitos aspectos, essa posição é moldada tanto pela crença católica quanto pelo reconhecimento de que vivemos em uma república constitucional na qual um pluralismo estonteante de crenças frequentemente conflitantes é protegido por um contrato político responsável pela ordem que a sociedade estadunidense oferece a seus cidadãos.
Então, podemos perguntar: por que os bispos deveriam tornar a posição política de Biden sobre o aborto – e não a sua crença pessoal sobre o mal do aborto – um pecado grave digno da ação proposta por eles?
E, dado que a posição política de Biden sobre o aborto é defendida por milhões de católicos estadunidenses – leigos, clérigos e talvez até vários bispos –, por que os bispos deveriam tornar a posição de Biden sobre o aborto um pecado grave, digno da sua separação da comunidade sacramental?
Eu proponho que a controvérsia donatista dos séculos IV e V pode lançar alguma luz sobre o nosso presente e preocupante momento. Explicarei essa controvérsia sobre a natureza da Igreja brevemente, para que ela possa servir ao seu propósito ilustrativo aqui.
O cristianismo era uma religião ilegal e perseguida no fim do Império Romano, durante os primeiros três séculos da sua história.
No fim dos anos 200 e início dos anos 300, os cristãos na região romana do norte da África enfrentaram uma perseguição devastadora, que muitas vezes resultava nas suas mortes. O heroísmo desses mártires levou os fiéis a venerá-los como os primeiros santos.
Os governadores romanos locais que pressionavam pela perseguição à Igreja frequentemente se contentavam em libertar os cristãos detidos e encarcerados de uma sentença de morte se eles renunciassem à sua fé em público.
Uma forma de fazer isso era que o cristão condescendente “entregasse” (latim: tradere) os livros sagrados da Igreja aos oficiais romanos como um sinal da sua renúncia, e os traditores (em inglês: traidores) que entregavam os livros sagrados às vezes eram bispos.
Com a permissão para viver, os bispos condescendentes representaram um problema para a Igreja depois que o Édito de Milão pôs fim à perseguição aos cristãos em 313 EC.
Ao trair a fé, no julgamento de todos os pecados extraordinariamente graves, o bispo traidor invalidava o seu batismo e se mostrava indigno de um papel ministerial contínuo na Igreja?
Os seguidores de um cristão norte-africano chamado Donatus acreditavam que a resposta a essa pergunta era um retumbante “sim”, já que a pureza da Igreja e a eficácia da graça dos seus sacramentos teriam sido poluídas pela pecaminosidade dos seus pastores.
A solução donatista era que os bispos decaídos precisavam ser rebatizados e, por meio desse ato sacramental, reintegrados à pureza da Igreja, que eles definiam em oposição à perseguição veemente de um mundo hostil, mesmo quando o tempo de perseguição havia passado.
Quase 100 anos depois, no início dos anos 400, essa sensibilidade donatista ainda era bastante forte em muitas comunidades cristãs do norte da África.
Em certo aspecto, isso era surpreendente, já que essa sensibilidade era estimulada pelo heroísmo dos mártires e pelo escândalo da traição episcopal durante o tempo de perseguição, que, nessa época, já havia passado há muito tempo.
No entanto, a sensibilidade donatista inspirou uma eclesiologia duradoura – uma visão da Igreja como uma comunidade dos santos, expurgada dos pecadores e definida pela manifesta santidade dos seus membros.
De acordo com o historiador Peter Brown, os donatistas imaginavam a Igreja como a Arca de Noé, como uma protegida comunidade dos salvos, lançados em um mundo inundado pelas águas do pecado.
Foi essa compreensão donatista da Igreja que o bispo católico norte-africano Agostinho de Hipona (354-430 EC) julgava como herética. Em uma série de tratados escritos no início do século V, Agostinho condenou a posição donatista e articulou uma compreensão da Igreja que finalmente foi adotada como o ensino católico ortodoxo.
Para Agostinho, a Igreja não é constituída pela pureza moral dos seus membros e certamente também não pela pureza moral dos seus pastores.
A Igreja é uma comunidade composta por santos e por pecadores, e, dado o contexto mais amplo da sua teologia posterior, Agostinho assumia que a Igreja era predominantemente uma comunidade de decaídos, daqueles que precisam desesperadamente da graça mediada pela Igreja aos fiéis.
A Igreja não é um lugar de encontro para os salvos, mas sim um refúgio para os pecadores, acima de tudo.
Agostinho insistia que a eficácia da graça dos sacramentos não dependia da santidade pessoal de quem os administrava, como afirmavam os donatistas.
Os sacramentos possuíam um poder sobrenatural que levava os pecadores à salvação, mesmo quando administrados por presbíteros pecadores.
A Igreja foi fundada por Cristo não para ser uma assembleia daquelas pessoas separadas pela sua pureza moral, mas para ser um meio da graça para que os pecadores fossem levados à vida eterna. A compreensão que Santo Agostinho tem da Igreja continua sendo um ensinamento católico até hoje.
Como a controvérsia donatista lança luz sobre a recente manobra disciplinar dos bispos? Os bispos parecem ver a Igreja como os donatistas a viam.
Aqueles que argumentam que o presidente Biden é obrigado a deter uma posição política pública sobre o aborto que reflita diretamente a sua crença pessoal para ser digno da Eucaristia parecem ter feito o julgamento de que a Igreja se caracteriza por uma pureza que não pode suportar a poluição pecaminosa do comportamento político de Biden.
Ao julgarem Biden como um pecador, naquilo que consideram ser um comportamento católico não representativo, os bispos não o consideraram digno dos ofícios da graça da Igreja.
O binário donatista da pureza da Igreja versus a impureza de um mundo hostil e extraeclesial revela-se no julgamento implícito dos bispos de que o pecado – e neste caso o pecado de Biden – permanece fora da Igreja à qual pertence.
O Papa Francisco exortou os bispos estadunidenses a não votarem, como acabaram fazendo na sua reunião de junho, e talvez ele tivesse a iniciativa deles em mente quando pregou alguns dias antes na festa de Corpus Christi que a Eucaristia “não é a recompensa dos santos, mas o pão dos pecadores”.
Essas palavras expressam a eclesiologia católica ortodoxa que Agostinho definiu na controvérsia donatista.
Se a pretendida exclusão dos bispos daquela que eles julgaram ser a pecaminosidade de Biden é uma expressão da sensibilidade donatista, ela é, no entanto, um donatismo em uma nova chave, cuja novidade é definida pelas formas bastante estranhas como os bispos reconfiguraram o binário puro/impuro.
Os antigos donatistas concentravam suas preocupações sobre o fracasso moral nos líderes episcopais que representavam suas congregações. Os bispos estadunidenses não mostraram nenhum sinal de tal crítica reflexiva.
Não houve nenhum debate da parte deles, por exemplo, sobre o fato de recusar a Eucaristia aos bispos que foram cúmplices do abuso sexual de crianças. Como eu argumentei aqui, nem deveria haver.
Em vez disso, os bispos estão retratando o mais proeminente católico estadunidense como um impuro – não porque ele não acredite com a Igreja, mas porque ele detém uma posição política da qual eles discordam.
Poderia ser essa tática tipicamente donatista de impingir impureza fora da santidade da Igreja uma estranha forma de os bispos recuperarem uma imaginada pureza moral perdida publicamente nas últimas duas décadas?
Embora teologicamente equivocados, os antigos donatistas aplicavam a sua ética da pureza de forma coerente sobre toda a Igreja e sobre todos os seus membros.
Por que os bispos começaram uma iniciativa que recusaria a Eucaristia a Biden – e talvez a alguns outros políticos católicos?
Por que não optaram por emitir um ensinamento que recusasse o sacramento a milhões de católicos estadunidenses que detêm a mesma posição do presidente sobre o aborto?
Fazer isso, é claro, fragmentaria totalmente aquilo que restou da Igreja estadunidense, espiritual e – a palavra precisa ser dita – financeiramente.
Os bispos podem considerar que, em uma Igreja que entende a si mesma como o único corpo de Cristo, muitos católicos verão o julgamento dos bispos sobre Biden como um julgamento sobre eles e que esse julgamento causará muito mais danos eclesiais do que a sua própria fixação mental no segundo presidente católico.
O antigo donatismo e o novo donatismo são práticas deficientes da Igreja, porque se esquecem de que é o dom da graça de Deus, mediado pelos sacramentos da Igreja e não pelos seus pastores, que leva a Igreja à vida ressuscitada.
Ocasionalmente, essa graça leva os fiéis a um heroísmo moral que é um sinal da graça de Deus e que, como tal, inspira a Igreja.
Mas não há nenhum heroísmo moral e certamente nenhum posicionamento profético autodefinido em disciplinar um fiel católico com base em uma posição política defendida por muitos católicos estadunidenses.
Isso é ainda mais verdadeiro quando a suposta disciplina profética conquista o favor de uma certa parte da classe dos benfeitores católicos.
Espera-se que, quando os bispos finalmente votarem esse assunto em sua reunião de novembro, o desejo de uma falsa pureza por meio da disciplina se renderá à mensagem da graça e da misericórdia do Evangelho, uma mensagem que só pode ser verdadeiramente recebida por quem tem um profundo senso da pecaminosidade compartilhada da Igreja.
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O novo donatismo: uma velha controvérsia ilumina a tensão entre os bispos dos EUA e Biden - Instituto Humanitas Unisinos - IHU