“A Terra (a Terra de Teilhard e de Helmut de Terra) é a nossa casa comum, como nos foi dito com razão. Portanto, precisamos construir um humanismo antropocêntrico renovado, enraizado na terra, consciente de ser uma parte a mais dentro do todo do universo e do sistema ecológico da mãe terra, embora, ao mesmo tempo, possuidor de uma centralidade que não pode ser evocada como desculpa para um domínio despótico, mas para justificar a responsabilidade de um cuidado fraterno”, escreve Leandro Sequeiros, SJ, vice-presidente da Associação dos Amigos de Teilhard de Chardin, em artigo publicado por Religión Digital, 05-06-2021. A tradução é do Cepat.
O geólogo Helmut de Terra (1900-1981) dizia, referindo-se ao padre Pierre Teilhard: “A Terra era o seu laboratório”. [De Terra, H., Mein Weg mit Teilhard de Chardin. C. H. Beck, München, 1962, 131 pág.]. Este é o lema que preside a presente edição da [revista] Noosphère.
Mas o respeito pela Terra, a dimensão ecológica do pensamento de Pierre Teilhard de Chardin, não pode ser separado de sua inspiração em Vladimir I. Vernadski (1863-1945), conforme apontado em outros artigos da Noosphère. E o pensamento teilhardiano inspira a encíclica Laudato Si’ (2015), do Papa Francisco.
Contudo, alguns autores consideram que o pensamento teilhardiano também inspira o que se chamou de ecologia profunda (deep ecology). [A perspectiva de José Vico Martín é sugestiva. A justificativa científica e filosófica do respeito à natureza: Teilhard de Chardin, Arne Næss e o Papa Francisco. The Scientific and Philosophical Justification of the Respect to Nature: Teilhard de Chardin, Arne Næss and the Pope Francisco. Contrastes. Revista Internacional de Filosofia, vol. XXIII-Nº1 (2018), pp. 93-110. Departamento de Filosofia, Universidade de Málaga, Faculdade de Filosofia e Letras - Campus de Teatinos, E-29071, Málaga, Espanha].
Muitas pessoas podem se surpreender que na carta encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, sobre o cuidado da casa comum (24 de maio de 2015), seja feita uma referência explícita a Pierre Teilhard de Chardin (ainda que seja em uma nota ao número 83). Mas isso não é tudo. Também há algumas reflexões da dimensão eco cósmica teilhardiana ao abordar o tema da eucaristia (números 235-236). Esses dados são suficientemente fortes para que dediquemos um breve comentário à raiz cósmica do pensamento ecológico na Laudato Si’ do Papa Francisco.
O capítulo 2 da Laudato Si’ (número 62-100) intitula-se O Evangelho da Criação. Em uma perspectiva teológica, afirma-se que “nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser deixada de lado, nem mesmo a religiosa com a sua linguagem própria”. É que “as convicções da fé oferecem aos cristãos, e em parte também a outros crentes, grandes motivações para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis”.
“Não somos Deus. A terra existe antes de nós e nos foi dada”, acrescenta Francisco, rompendo os antigos esquemas, baseados em uma má interpretação das Escrituras (“crescei e multiplicai-vos e dominai a terra”), que davam ao ser humano um poder soberano sobre a natureza.
“Hoje – destaca –, devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas”. Assim, “enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza”.
“A injustiça não é invencível”, destaca o texto, que apresenta “um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveríamos orientar, cultivar e limitar nosso poder”.
Isto não significa que o ser humano seja um animal a mais. Existe o que se passou a chamar – de um ponto de vista filosófico – o humano irredutível. O número 81 da Laudato Si’ sintetiza os traços de uma antropologia cristã com base científica. Diz o texto:
“Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução de outros sistemas abertos. Cada um de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus. A capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades originais manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico”.
Tendo em conta esta diferença qualitativa com o resto dos seres vivos, o Papa reconhece que nós, humanos, não soubemos desenvolver nossas capacidades, porque outra visão, a “que consolida o arbítrio do mais forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violência para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de que tem mais poder: o vencedor leva tudo” (número 82).
O número 83 da Laudato Si’ é o que, aqui, desperta o nosso interesse. Diz o Papa: “A meta do caminho do universo está na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal”. E é aqui que, na nota do texto, cita Teilhard de Chardin, com uma referência a Paulo VI, a João Paulo II e a Bento XVI.
O texto de Paulo VI é: Discurso em um estabelecimento químico-farmacêutico (24 de fevereiro de 1966): Insegnamenti 4 (1966), 992-993:
“Um famoso cientista disse: quanto mais estudo a matéria, mais encontro o espírito. Quem pesquisa o mundo, vê que existem leis. Este mundo que parecia opaco, inerte, é uma maravilha, e o Papa pensa que será a ciência - que parece distanciar as massas, os homens modernos e os jovens de Deus – que o conduzirá de volta a Deus, quando o mundo for verdadeiramente inteligente, e dirá: preciso entender o que vejo, não criei isso, o mundo foi criado por Aquele que fez chover sua sabedoria sobre todas as coisas. E o Santo Padre cita Teilhard de Chardin, que deu uma explicação do universo que [...] soube ler dentro das coisas um princípio inteligente que deve se chamar Deus. A própria ciência, portanto, nos obriga a ser religiosos, e quem é inteligente deve se ajoelhar e dizer: aqui está Deus”.
Na nota do texto, a encíclica também cita a famosa carta do Papa João Paulo II, por ocasião do [300º] centenário da publicação dos Principia de Newton: Carta ao reverendo P. George V. Coyne (1 de junho de 1988): Insegnamenti 11/2 (1998).
E em terceiro lugar, a Laudato Si’ cita, na mesma nota, um texto de Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta (24 de julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60. L’Osservatore Romano, ed. semanal em língua espanhola (31 de julho 2009), p. 3s.
E o número 83 da Laudato Si’ termina deste modo: “Assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, junto conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, em uma plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador”.
A palavra “cósmica” aparece na encíclica na última parte, ao abordar o tema da ecologia, espiritualidade e educação. O número 235 é uma reflexão ecológica sobre os sacramentos. E o número 236 se refere especificamente à Eucaristia. Diz a encíclica, entre outras coisas:
Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. “Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”. E a nota correspondente cita o Papa João Paulo II, na Carta encíclica Ecclesia de Eucharistia (17 de abril 2003), 8: AAS 95 (2003), 438.
Sem citá-lo, o pensamento de Teilhard de O Sacerdote (1918) e de A Missa sobre o Mundo (1923) está muito presente como pano de fundo desta abordagem. E prossegue o texto:
“A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, “a criação se orienta para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”. E cita o Papa Bento XVI, Homilia na Missa de Corpus Christi (15 de junho de 2006): AAS 98 (2006), 513.
E este texto da Laudato Si’ conclui: “Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.
No pensamento ecológico do Papa Francisco, na Laudato Si’, está muito presente a raiz cósmica de uma reflexão científica, filosófica e teológica da ecologia integral. E este ponto de vista completa o marco geral de inteligência deste texto magistral.
Nesses últimos meses, escreveu-se sobre as convergências e divergências entre a Laudato Si’ e a ecologia profunda. É verdade que o Papa fala em ecologia integral. Mas a chamada ecologia profunda (deep ecology) é semelhante à ecologia integral? Possui ecos teilhardianos?
Nós, os amigos de Teilhard, devemos a Vladimir Vernadski (1863-1945) a generalização do conceito adotado por Teilhard de biosfera, de noosfera, que aponta para o que depois foi chamado de noocracia. O termo noocracia se refere a um sistema social e político baseado “na prioridade da mente humana”, segundo Vladimir Vernadski.
Em 1987, o professor da Cátedra de Sociologia Benjamin Oltra e Martín de los Santos, define noocracia, na revista Política e Sociedade, como: “Definimos noocracia como uma ‘nova classe’ formada pelos que dominam a inteligência ou a razão ideológica, cosmológica, expressiva, científica, técnica, a imagem cinética e o desenho, como uma força produtiva e um novo poder nos sistemas sociais capitalistas e coletivistas avançados.
O conteúdo dos dois primeiros termos foi reunido por Teilhard e possivelmente fazem parte da inspiração do que hoje se chama ecologia profunda (deep ecology) e, claramente, está presente nas raízes da Laudato Si’ do Papa Francisco. Por ser menos conhecidas, e também discutíveis, expomos algumas ideias de ecologia profunda.
A expressão ecologia profunda foi cunhada em 1973, por Arne Næss, como um termo teórico, mas se transformou posteriormente em um movimento social. Arne Dekke Eide Næss (27 de janeiro de 1912 - 12 de janeiro de 2009) foi o fundador da ecologia profunda e o mais reputado filósofo norueguês do século XX, sendo o professor mais jovem dos nomeados na Universidade de Oslo, cargo que exerceu ininterruptamente de 1939 a 1970.
Næss também foi um experiente alpinista, conhecido por ser tio do célebre montanhista e homem de negócios Arne Næss Jr. e o irmão mais novo do armador Erling Dekke Naess.
Para Næss, são pontos centrais: 1) O ser humano em harmonia com o meio ambiente, não acima, sobre ou fora dele; 2) A igualdade biocêntrica: todas as coisas naturais, os ecossistemas, a vida, etc., têm o direito de existir, independentemente de seu grau de autodeterminação; 3) O direito à diversidade cultural.
A partir das categorias antropocêntricas da Laudato Si’, surgem críticas à ecologia profunda, entendida dessa forma.
O ponto mais discutível - a partir das categorias da Laudato Si’ - é o biocentrismo. Se por ele se entende apenas o ecocentrismo, a ecologia profunda não parece ser compatível com a doutrina do Papa Francisco.
O conceito de ecologia profunda foi desenvolvido mais tarde por Bill Devall e George Sessions, ao publicarem, em 1985, o livro Deep Ecology. Outro autor adepto desta corrente é Fritjof Capra. Possuem uma cosmovisão holística, com uma ética ecocêntrica e, às vezes, tendem a ser feministas e igualitários.
Os defensores da ecologia profunda consideram que o mundo não existe como um recurso livremente explorável pelos humanos. A ética da ecologia profunda defende que todo o sistema é superior a qualquer uma de suas partes. Oito pontos ou princípios ajudam a compreender sua posição:
- O bem-estar e o florescimento de toda a vida humana e não humana sobre a terra possuem um valor em si mesmos (valor intrínseco). Estes valores são independentes da utilidade que o mundo não-humano possa proporcionar aos fins humanos;
- A riqueza e diversidade de formas de vida contribuem para a realização destes valores, e, por sua vez, são valores em si mesmos;
- A humanidade não tem o direito de reduzir esta riqueza e diversidade, exceto para satisfazer suas necessidades vitais básicas;
- O desenvolvimento da vida humana e de sua cultura é compatível com um substancial decrescimento da população humana atual;
- O desenvolvimento livre da vida não-humana requer necessariamente esse decrescimento;
- A interferência atual do homem no mundo natural não-humano é excessiva, e a situação está piorando rapidamente.
- Portanto, as políticas atuais precisam ser mudadas. Estas políticas afetarão a economia básica, a tecnologia e as estruturas ideológicas. Os temas resultantes destas políticas serão muito diferentes dos atuais;
- A mudança ideológica está principalmente relacionada à valorização da qualidade da vida, muito acima da tentativa de conseguir para si um maior nível de vida baseado no consumo desmedido e na acumulação material de bens. Haverá uma profunda consciência da diferença entre grande (quantidade) e grandioso (qualidade).
Quem subscreve estes pontos tem a obrigação de tentar, direta ou indiretamente, aplicar as mudanças necessárias.
Embora muitas das ideias contidas nestes pontos sejam aceitáveis pela Laudato Si’, e poderiam ser assumidas por Teilhard de Chardin, o debate está aberto. Para o físico Fritjof Capra, a ecologia profunda faz parte do novo paradigma, de uma visão holística do mundo, em que se passa da concepção do universo como máquina a uma que o vê como uma rede de relações, o que implica o pensamento sistêmico para sua compreensão.
Como apontamos, o ponto de conflito está na compreensão do biocentrismo. É compatível com o antropocentrismo do Papa Francisco? Em um iluminador artigo do professor Carlos Beorlegui [Carlos Beorlegui. Antropo-centrismo contra eco-centrismo?. FronterasCTR, Blog da Cátedra Ciência, Tecnologia e Religião, UP Comillas, Madrid, 24 de fevereiro de 2021] os termos ganham clareza.
Beorlegui considera que a carta encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, é muito oportuna para recuperar uma visão mais adequada e ponderada do humano dentro desta cosmologia ecocêntrica que está se espalhando.
Parece claro que, para o Papa Francisco, a evidente responsabilidade dos humanos na deterioração progressiva do planeta não significa descartar todo tipo de antropocentrismo, mas apenas aquele que implica uma relação despótica e destrutiva com a natureza e os demais seres vivos.
Em diversas passagens da Laudato Si’, insiste-se na distinção entre um antropocentrismo incorreto, que algumas vezes chama de despótico e outras, desviante, mas o Papa Francisco defende claramente um antropocentrismo apoiado no cuidado, no respeito e na reciprocidade com a natureza.
Todas as realidades da terra possuem um valor intrínseco e próprio diante de Deus, e não podem ser consideradas como meros recursos econômicos a serviço dos humanos. Mas, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer a “dignidade única” do ser humano, “por ser dotado de inteligência”, embora isso não lhe dê justificativa para uma relação despótica e meramente utilitária, pois é “chamado a respeitar a criação com suas leis internas”.
Portanto, é preciso manter uma adequada relação recíproca entre os humanos e a natureza, sendo equivocado, por um lado, que “os outros seres vivos devam ser considerados meros objetos submetidos à arbitrária dominação humana”, como também, por outro, “igualar todos os seres vivos e retirar do ser humano esse valor peculiar que implica, ao mesmo tempo, uma tremenda responsabilidade. Também não significa uma divinização da terra que nos privaria do chamado a colaborar com ela e a proteger sua fragilidade. Estas concepções acabariam criando novos desequilíbrios para escapar da realidade que nos interpela”.
Não poderia ser mais clara a preocupação do Papa Francisco em conjugar o respeito à natureza e a superação de um antropocentrismo incorreto, com a defesa da centralidade humana dentro da criação, centralidade que não lhe dá licença para dominar a terra, mas que supõe a responsabilidade de respeitar e cuidar dela.
Para o Papa Francisco está claro que “um antropocentrismo desviante não deve necessariamente dar lugar a um “biocentrismo”, pois isso implicaria incorporar um novo desajuste que não só não resolverá os problemas, como também acrescentará outros. Portanto, mais do que concluir que o antropocentrismo precisa ser superado, dando lugar a uma cosmologia ecocêntrica, precisamos fazer uma autocrítica dos antropocentrismos desviantes e incorretos, para iluminar um antropocentrismo autocrítico, renovado e integral.
Como conclusão de tudo o que foi dito, parece que é mais coerente a defesa de um humanismo antropocêntrico, embora autocrítico, renovado e integral. Está claro que precisa ser autocrítico em relação à mentalidade e o modo de vida próprio da sociedade capitalista, que inclusive tem sua origem em épocas anteriores.
A Terra (a Terra de Teilhard e de Helmut de Terra) é a nossa casa comum, como nos foi dito com razão. Portanto, precisamos construir um humanismo antropocêntrico renovado, enraizado na terra, consciente de ser uma parte a mais dentro do todo do universo e do sistema ecológico da mãe terra, embora, ao mesmo tempo, possuidor de uma centralidade que não pode ser evocada como desculpa para um domínio despótico, mas para justificar a responsabilidade de um cuidado fraterno, base de um estilo de vida consolidado em um desenvolvimento sustentável e responsável.
Seria, portanto, um antropocentrismo integral, não prepotente, nem à margem do conjunto da terra e do universo, mas integrado a esse todo e sistema cósmico, também apoiado na centralidade ética, epistemológica, ontológica e religiosa de nossa espécie. Daí o conceito de ecologia integral da Laudato Si’.