10 Junho 2021
É possível viver em um mundo sem relações de dominação entre os seres humanos? Para a socióloga e escritora austríaca Riane Eisler (85 anos) a resposta para esta pergunta é um sim categórico. Basta olhar para o passado para comprovar: segundo as evidências arqueológicas, antropológicas e científicas, durante um longo período convivemos com um sistema de cooperação e associação. Esta é a tese principal de seu livro O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro, escrito em 1987.
Nestes 34 anos, o texto vendeu mais de meio milhão de exemplares em todo o mundo e se tornou uma referência mundial no campo da evolução humana. Chegou-se a afirmar que sua importância é comparável ao de A origem das espécies, de Charles Darwin.
Eisler nos exorta a nos afastarmos da visão patriarcal com a qual estudamos a história das relações humanas, não só como uma forma de justiça, mas como o único caminho possível para imaginar futuros melhores.
A entrevista é de Berta Gómez, publicada por El Diario, 08-06-2021. A tradução é do Cepat.
Enquanto concebemos os contos e mitos como ferramentas morais, que contêm uma mensagem concreta, a história se apresenta como uma disciplina objetiva. De fato, é assim?
A história não é uma disciplina objetiva, longe disso. Basta ver como agora a história oficial dos Estados Unidos está começando a incluir as vidas dos escravos afro-americanos, dos povos indígenas e das mulheres, mesmo que contando com eles apenas nas margens.
Precisamos mudar as lentes pelas quais olhamos a história, percebermos que foram utilizadas para transmitir normas, formas de vida e valores morais. Isto requer que os historiadores usem uma lente mais ampla, que não marginalize mais ou simplesmente ignore a maioria da humanidade: mulheres e crianças. Esta é a lente holística do estudo que me levou até O cálice e a espada e livros posteriores.
Por que considera que conhecer o passado, em uma perspectiva holística, é imprescindível para constituir o nosso futuro?
Para assentar as bases de uma forma de vida futura mais eficaz, mais justa e menos violenta devemos prestar atenção em todo o sistema social, sem marginalizar ninguém. O uso desta abordagem no estudo do passado nos permite ver que em nosso sistema de valores de dominação se desvaloriza tudo o que é considerado feminino, como o cuidado, a atenção ou a não violência.
Observar apenas como a nossa velha economia, histórias e linguagem funcionam nos prende, fazendo-nos pensar que este sistema é normal, quando, na realidade, desvalorizar o trabalho que sustenta a vida é anormal, patológico, e tanto a teoria capitalista como a socialista reforçam este pensamento defeituoso, relegando o cuidado das pessoas e da natureza, e separando o trabalho reprodutivo do produtivo.
Entre as muitas descobertas da história, reveladas em seu livro, é devastador como foi implantada a ideia de que só existia no direito o vínculo dos filhos com o pai, mas não com a mãe, mera receptora dos filhos de seu esposo. De fato, ainda sobrevive essa cultura, quando as crianças recebem, sistematicamente, apenas o sobrenome do pai...
Todos herdamos esta forma de pensar, onde o que é considerado a norma ideal para os homens se torna a norma ideal para todos. Nosso sistema econômico, seja capitalista ou socialista, foi construído em conformidade com este homem como norma universal, incluindo a nossa definição de trabalho produtivo que ainda é ensinado nas escolas de economia, sem abarcar o trabalho de cuidados nos lares.
É preciso considerar que nem Smith e nem Marx incluíram o trabalho feminino, cuidar das crianças, doentes e idosos, como trabalho produtivo, nem tampouco alertaram sobre o cuidado da natureza. Manter um ambiente limpo e saudável era para ambos um trabalho que deveria ser feito de forma gratuita.
Mais uma vez, a boa notícia é que estamos começando a ver políticas governamentais e comerciais que oferecem certo apoio para este trabalho humano essencial, como a licença paternidade remunerada e a atenção médica universal. Mas isso é apenas o começo. Precisamos reconstruir nossas regras, recompensas e práticas econômicas.
Também expõe que as estatuetas femininas do Paleolítico são sexualizadas quando interpretadas a partir de um marco patriarcal atual. Mas, por acaso, é possível fazer de outra forma? De fato, podemos chegar a saber qual era a sua intenção?
O problema é que os arqueólogos, como você disse, projetaram sua cosmovisão sobre o que descobriram. É verdade que não podemos saber qual era a intenção dessa arte, mas, sim, existem coisas que podemos entender ao juntar várias das descobertas feitas e compará-las.
Por um lado, essas figuras femininas eram estilizadas de modo concreto, não tinham rosto e as capacidades de dar e sustentar a vida, inerentes aos corpos das mulheres, eram deliberadamente ressaltadas: possuem seios grandes e possivelmente estão grávidas. Sendo assim, está claro que não eram uma forma de pornografia antiga, como foi sugerido.
Alguns especialistas reconheceram isto e, no entanto, mais uma vez presos ao paradigma da dominação que desvaloriza as mulheres e seus corpos, decidiram chamá-las de ‘bonecas’. Esta também é uma interpretação absurda.
Pensemos na Vênus de Laussel, esculpida na boca de uma caverna: não poderia ser uma boneca portátil. Além disso, tem uma vulva claramente gravada e na outra mão segura uma lua crescente com doze frisos: o número dos ciclos lunares e dos ciclos menstruais da mulher.
Portanto, embora seja possível que nunca saibamos todos os detalhes, sim, podemos concluir que a mulher foi uma figura central para uma história religiosa e espiritual na qual a menstruação das mulheres e os ciclos da lua eram celebrados nos santuários das cavernas.
Apesar destas descobertas, não considera que essas sociedades fossem matriarcais. As mulheres não tinham mais poder sobre os homens. Não é inevitável que sempre existam relações de poder entre os indivíduos?
Sempre existem relações de poder entre os indivíduos, mas a forma como o poder é definido é diferente nos sistemas de dominação e no de associação. O título O cálice e a espada utiliza duas metáforas diferentes para explicar o poder. A espada é um símbolo do poder de controlar, dominar, tirar a vida, conforme o poder é definido nas sociedades orientadas para a dominação. O cálice é um símbolo do poder de dar, nutrir e iluminar a vida. Esta é a norma geral para o poder em sociedades orientadas para a associação.
Hoje vemos sinais de uma mudança. Por exemplo, as feministas fazem uma distinção entre ‘poder sobre’ e ‘poder com’, e na literatura corporativa, o bom gerente ou líder não se define mais como um policial ou controlador, mas como alguém que inspira e facilita.
Nosso paradigma ou cosmovisão está mudando, ao menos para algumas pessoas. Mas devemos avançar e deixar para trás o conhecimento convencional sobre o nosso passado, presente e as possibilidades de nosso futuro, e isto também requer deixar para trás nossas categorias sociais convencionais.
Qual é a alternativa?
Em primeiro lugar, é preciso deixar para trás as velhas categorias com as quais todos estamos familiarizados, como direita ou esquerda, religiosa ou secular, capitalista ou socialista, oriental ou ocidental, e olhar o mundo pelas lentes da escala de associação ou dominação. Isto é essencial: não podemos resolver problemas com o mesmo pensamento que os criou.
E os psicólogos linguísticos nos dizem, há muito tempo, que as categorias proporcionadas pelo idioma de uma cultura canalizam o nosso pensamento. Por exemplo, como categoria social específica de gênero, só recebemos o patriarcado e o matriarcado, seja com o governo dos pais ou mães, sem associação ou alternativa gilânica.
Em seu livro, explica que houve um momento de caos ou desequilíbrio em nossa história que mudou o sistema de forma abrupta para dar lugar a algo totalmente diferente. Vivemos agora um momento semelhante?
Graças à teoria do caos e da dinâmica não linear, sabemos que nos períodos de desequilíbrio econômico, social e ambiental os sistemas podem mudar de maneira fundamental. Isto aconteceu quando a revolução industrial se acelerou, após a Idade Média religiosa, com sua Inquisição, as cruzadas, a queima de bruxas, a tortura pública, etc. Depois, vimos muitos movimentos desafiando as tradições de dominação que diziam ordenadas por Deus.
Agora, parece que vivemos a passagem para uma era pós-industrial. No entanto, conforme destaco nos dois capítulos finais de O cálice e a espada, isto não significa que nos aguarde, com certeza, um futuro baseado na associação. Parece lógico que o sistema de dominação que acompanha o alto nível de desenvolvimento tecnológico esteja chegando a seu fim, mas também pode levar com ele a nossa espécie.
Embora este livro chegue até nós pela primeira vez traduzido ao espanhol, na realidade, foi publicado em 1987 e gerou um enorme impacto. Naquele momento, você afirmava que continuava havendo razões para a esperança. Continua pensando assim?
O certo é que o livro teve um impacto: infiltrou-se na consciência. Ainda que o movimento tenha sido lento e desigual, marcado por regressões periódicas à dominação. Para mudar isto e continuar avançando, é preciso uma nova forma de pensar, um novo marco conceitual de sistemas integrais da escala social de dominação-associação.
Minhas razões para a esperança, que ainda se mantém, estão baseadas na abissal evidência que temos agora de que, durante milênios, a evolução cultural humana caminhou em uma direção de associação, que a guerra tem no máximo 10.000 anos e que as mulheres e homens viviam como iguais.
Contudo, precisamos ser agentes ativos dessa transformação, divulgando esta evidência. Devemos demonstrar que estas questões não são apenas questões de mulheres, mas sociais e econômicas fundamentais e que, a menos que prestemos uma atenção especial, continuaremos tendo regressões cada vez mais perigosas.
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“Herdamos uma forma de pensar que torna a norma dos homens o ideal para todos”. Entrevista com Riane Eisler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU