Muito além da balada: a necessidade de trabalho e atenção aos mais velhos também transforma jovens em vítimas da pandemia. Entrevista especial com Helena Wendel Abramo

“Para além da postura e do comportamento dos jovens, precisamos olhar qual é o papel que eles estão cumprindo nesta pandemia”, diz a socióloga

Jovens entregadores fazem protesto por melhores condições detrabalho | Foto: Rovena Rosa - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 14 Mai 2021



Apesar de os dados epidemiológicos apontarem um aumento de casos de Covid-19 entre os jovens, é preciso ter cuidado para não atribuir a eles o atual estágio da crise sanitária. De acordo com a socióloga Helena Wendel Abramo, quando se trata de analisar a situação da juventude nesta crise, é importante ir além da visão de que o jovem está se expondo mais ao vírus somente por causa das suas necessidades de sociabilidade. “Não é que isso não seja verdade ou não deva ser considerado, mas esta é uma pequena parte da compreensão que devemos ter sobre os jovens. É preciso, antes de tudo, examinar quais são as condições em que os jovens vivem, qual é o papel que estão cumprindo na sociedade e que condições eles encontram para enfrentar a situação posta pela pandemia”, diz, em entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.



A seguir, Helena comenta a situação dos jovens das classes trabalhadoras, que estudam, trabalham e auxiliam nas atividades domésticas, inclusive contribuindo com a renda familiar. “A maior parte dos jovens não está podendo se proteger da contaminação porque está trabalhando em atividades que são, ao mesmo tempo, vitais e com menos condições de proteção. Não é à toa que os entregadores de aplicativo ganharam uma visibilidade tão forte nesse contexto. Quando fizeram aquela manifestação no ano passado, colocaram várias questões para a sociedade: ninguém os via na sua condição de jovens, em primeiro lugar”, afirma. A categoria, pontua, está trabalhando em uma atividade essencial e sem proteção, em dois sentidos: “sem condições sanitárias, de se proteger da Covid-19 e, portanto, sem proteção contra a contaminação, e sem nenhuma proteção trabalhista. Quer dizer, um jovem entregador de aplicativo, com sintomas, com qualquer tipo de mal-estar ou doença, não pode tirar licença-saúde, não pode parar de trabalhar porque não tem nenhum direito trabalhista”.



Segundo ela, a falta de novas políticas públicas para a juventude neste momento terá como consequência o agravamento das desigualdades sociais entre os jovens. “O que vai acontecer é exatamente o aprofundamento das desigualdades. O número de abstenções no Enem e nos vestibulares vai se reproduzir, porque a pandemia não vai terminar neste ano. O que farão os jovens que não têm condições de fazer o acompanhamento do ensino remoto? Um dos maiores impactos dessa situação será o aprofundamento da desigualdade gigante que estava começando a ser enfrentada no país com as políticas de cotas, afirmativas e de valorização da escola pública”, conclui.

 

Helena Wendel Abramo é socióloga e pesquisadora sobre a condição juvenil.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como a juventude brasileira tem se comportado na crise pandêmica e o que os diferentes comportamentos e posturas revelam sobre o próprio país?

Helena Wendel Abramo – Temos que olhar para a situação da juventude brasileira, nesta crise, pelo entendimento de que os jovens brasileiros vivem situações muito diversas e desiguais. Portanto, seus comportamentos e posturas também são diversos e relacionados às desigualdades que atravessam a condição de vida desses jovens.

É importante também entender a situação da juventude não só pensando na dimensão de que os jovens, por estarem numa determinada fase da vida, têm necessidades de sociabilidade e de diversão maiores e uma sensação de serem menos atingidos pela pandemia e, por isso, se comportam de maneira a se expor mais ao vírus. Não é que isso não seja verdade ou não deva ser considerado, mas esta é uma pequena parte da compreensão que devemos ter sobre os jovens. É preciso, antes de tudo, examinar quais são as condições em que os jovens vivem, qual é o papel que estão cumprindo na sociedade e que condições eles encontram para enfrentar a situação posta pela pandemia.

A juventude no Brasil abarca um arco de idade grande, é toda uma etapa do ciclo de vida. O Estatuto da Juventude, que se tornou uma norma legal em 2013, estabelece como marco referencial dessa etapa a idade entre 15 e 29 anos. Do ponto de vista sociológico, e para as políticas públicas, tal etapa corresponde à transição do mundo da infância e da adolescência para o mundo adulto, em várias dimensões, como a passagem de um estado de dependência para independência, da formação para a produção, da vida mais protegida no interior da família para a vida social mais ampla, da tutela para a autonomia. São vários processos simultâneos que levam os jovens a estarem envolvidos em múltiplas atividades, que assumem pesos diferenciados conforme se avança nesses percursos e que implica em novas intensidades nas relações sociais, na participação social, cultural e política. Toda essa vivência é atravessada por distintas e desiguais condições (econômicas, sociais, culturais, de raça, gênero e território), o que produz, também, diferentes posturas e comportamentos, assim como diferentes visões de mundo.

 

 

Desigualdades

Antes da pandemia, aqui no Brasil, as condições para viver essa etapa da vida já eram marcadas por essas diferenças e desigualdades. Uma das principais questões da juventude é o momento e as condições em que o jovem começa a trabalhar e quais as possibilidades de equacionar isso com a continuidade dos seus estudos. E é em torno disso que as desigualdades podem voltar a se aprofundar com a crise aberta pela pandemia.

No Brasil, os jovens, de modo geral, começam a trabalhar muito cedo. Não são apenas os de famílias mais pobres que começam a trabalhar na fase da juventude (importante reforçar que não estamos falando de trabalho infantil, mas do trabalho depois da idade legal, e mais amplamente depois da maioridade, dos 18 anos), mas os de todas as classes trabalhadoras, que constituem a grande maioria da juventude brasileira. Apenas para dar uma ideia disso: segundo os dados da Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio], 70% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam, em 2019, trabalhando ou procurando trabalho. É uma pequena minoria que começa a trabalhar somente depois de concluir toda a formação escolar, que agora inclui, pelo menos como aspiração, o ensino superior. Mas o ponto é que, para os jovens das classes trabalhadoras, o trabalho é um elemento central da vida, e constitutivo de sua condição juvenil. Mesmo com os avanços na escolaridade, com os avanços resultantes do maior acesso ao ensino superior, com o fato de haver mais jovens concluindo o ensino médio e uma parcela significativa entrando na universidade, essa extensão da escolaridade não significou uma exclusão ou adiamento significativo da entrada no mundo do trabalho. Então, eu diria que um dos grandes desafios para os jovens, no contexto atual, não é que os jovens das famílias das classes trabalhadoras tenham de trocar o estudo pelo trabalho, como era antigamente, mas que eles têm de encontrar um meio para estudar e trabalhar ao mesmo tempo, para dar continuidade à sua formação escolar ao mesmo tempo que já desenvolvem seu percurso laboral. E, claro, as desigualdades vão estar relacionadas também ao modo como se processa essa entrada no mundo do trabalho e às condições existentes para sustentar essa sobreposição de atividades.

Nunca é demais lembrar que outras diferenças se somam e podem aprofundar essas desigualdades de classe social, como cor/raça, sexo/gênero e território de moradia. Jovens negros, moradores das periferias das cidades e, particularmente, as jovens mulheres negras, enfrentam maiores dificuldades para exercer os seus direitos.

Muita gente tem se preocupado especialmente com a inatividade dos jovens, com as porcentagens de jovens que “não estudam e não trabalham”, com o que isso significa em termos de exclusão e de desfiliação da vida social produtiva. De fato, essa é uma questão fundamental, e tanto mais grave quando se verifica que os mais atingidos por essa dupla exclusão são aqueles segmentos mais vulneráveis, como as jovens mulheres com filhos pequenos, fenômeno mais presente entre as negras e de baixa renda.

 

 

Sobreposição de atividades

Mas essa questão não pode obscurecer outra, que parece o seu oposto, mas só aparentemente, que é a sobreposição de atividades, a sobreposição dos percursos de estudo e trabalho, o que gera uma carga muitas vezes difícil de conciliar, ainda mais quando as jornadas de trabalho não ficam dentro de limites razoáveis e os cursos não consideram as necessidades e vicissitudes de seus estudantes trabalhadores.

A maior parte dos jovens das classes trabalhadoras vive nas periferias urbanas, onde há carência de infraestrutura e, ao mesmo tempo, de possibilidades de emprego e educação de ensino superior; eles vivem longe dos centros onde estão as atividades econômicas e as instituições educacionais de nível superior. Isso implica que os jovens das classes trabalhadoras, vivendo nas periferias e tendo que desenvolver atividades múltiplas de estudo e trabalho, têm também uma relação diferenciada com a cidade, que envolve mais circulação e problemas com o transporte público, que é sempre precário na sua capacidade de atendimento, com superlotação. Isso gera mais uma sobrecarga na vida dos jovens.

 

Contribuição dos jovens nas famílias

Outra diferença importante é sobre o papel que os jovens cumprem nas suas famílias. Nas classes trabalhadoras, o jovem está sempre contribuindo para a manutenção da vida da família, seja com a contribuição de parte da renda que obtém com seu trabalho, seja com a assunção de tarefas na esfera da reprodução. O jovem que trabalha contribui sempre, de algum modo, com algum aspecto do orçamento familiar, seja assumindo o pagamento de uma das contas da casa, seja pagando suas próprias despesas para liberar a família desse gasto. E, muitas vezes, “segura as pontas” frente a acontecimentos que afetam outros membros da família, como quando algum dos principais provedores, o pai ou a mãe, ficam doentes, ou desempregados, especialmente se formos considerar a alta rotatividade no mercado de trabalho brasileiro. É importante ressaltar que a participação dos jovens na manutenção da vida da família é muito frequente, e não está restrita apenas aos segmentos de pobreza extrema. O trabalho e a renda dos jovens fazem parte da dinâmica das famílias de classes trabalhadoras.

 

 

Na dimensão do cuidado e das tarefas domésticas, as jovens mulheres também assumem ou dividem com a mãe o papel das tarefas cotidianas da casa e principalmente o cuidado das pessoas vulneráveis da família, as crianças pequenas, os mais velhos e os doentes. Então, é mais uma tarefa que os jovens assumem. Precisamos lembrar que uma parcela significativa das jovens já tem pelo menos um filho, considerando que a idade média do primeiro filho da mulher brasileira está entre 24 e 25 anos.

 

 

IHU On-Line – Os jovens vivem todos os dilemas da vida adulta?

Helena Wendel Abramo – Isso não significa uma interrupção da vida juvenil e uma antecipação da vida adulta – em alguns casos, sim –, mas, em geral, nenhum desses elementos isolados (última etapa de estudos, inserção no mundo do trabalho, filhos, saída da casa dos pais) marca o fim da juventude. Na verdade, para a maior parte dos jovens, essas diferentes dimensões ocorrem paralelamente, tudo ao mesmo tempo. Ou seja, os jovens têm responsabilidades, estão no mundo do trabalho, mas ainda estão tentando concluir seus estudos e ter uma vida juvenil no sentido do lazer, da sociabilidade, da cultura e do comportamento. É isso que torna a vivência da juventude uma fase singular no Brasil de hoje. Portanto, a condição juvenil tem muito pouco a ver com aquela ideia de tempo dedicado exclusivamente aos estudos, de moratória, de suspensão da vida real; ela é também composta de trabalho e responsabilidades, embora relativas. Não dá mais para ver vida juvenil e trabalho como uma dicotomia, quando pensamos na maioria da juventude brasileira.

Talvez esse tenha sido o problema da sociologia brasileira ao tratar o tema da juventude porque, ao ver a juventude através dessa dicotomia, não enxergou os jovens trabalhadores e a singularidade de sua condição juvenil. Ao definir que, do ponto de vista conceitual, juventude significa moratória, como suspensão da vida produtiva e dedicação exclusiva à escola, a sociologia focou sua preocupação apenas nessa dimensão, que é fundamental, mas que não esgota a vivência da situação dos jovens das classes populares, e que coloca questões igualmente importantes para essa condição. Desse modo, escaparam largamente à investigação e à reflexão, assim como à formulação de ações, as outras dimensões presentes na vida dos jovens, como o trabalho, as responsabilidades familiares, a dimensão dos cuidados... Com muito custo, abriu-se espaço para pensar as dimensões da sociabilidade, do lazer, da cultura e da participação social. Mas o tema do trabalho ficou como que interditado, pois é pensado como aquilo que anula a juventude. No entanto, a vida dos jovens das classes trabalhadoras é composta de tudo isso ao mesmo tempo.

 

 

A grande questão dos jovens das classes trabalhadoras é encontrar uma equação para juntarem todos esses aspectos da vida. Ou seja, como dar conta de todas essas dimensões, inclusive as do lazer, da sociabilidade, da cultura e da participação comunitária e política, que é um componente estimulado nos anos recentes e que os jovens reivindicam e querem exercer, com toda a razão. Como dar conta sem se exaurir, sem anular ou comprometer uma atividade em função da outra, sem prejudicar o desenvolvimento desses diferentes percursos.

 

Inclusão

A vida dos jovens das classes trabalhadoras sempre foi difícil. Nós avançamos bastante na abertura de possibilidades de inclusão, principalmente no sistema educacional. Estamos sempre pensando em medidas de combate ao desemprego, em formas de promover a inclusão no mundo do trabalho para que os jovens não fiquem inativos ou desalentados. Mas, para além de superar a inatividade, precisamos pensar nas condições e qualidade da inclusão. Como no tema da educação, em que lutamos não apenas pelo acesso, mas pela qualidade da educação, no tema do trabalho é preciso fazer o mesmo: não apenas medidas para superar o desemprego e o desalento, mas para garantir condições dignas de trabalho, trabalho decente, com direitos, proteção, jornada e remuneração adequadas. Ainda precisamos avançar muito para cuidar das condições de trabalho dos jovens, das condições para que eles tenham direito a um trabalho decente. E isso exige que se enxergue o jovem na sua condição de trabalhador. Porque quando não se visualizam essas dimensões, não se cuida delas, não se pensa em medidas de proteção para que eles possam viver essas dimensões de forma digna e não anuladora.

A maior parte das políticas públicas imagina o jovem liberado dessas obrigações e coloca cláusulas que ele não poderá cumprir. Muitos programas que são pensados para os jovens apenas como estudantes não poderão ser aproveitados pelos jovens das classes trabalhadoras ou serão cumpridos com um grau de sacrifício que muitas vezes os leva a abandonar os programas, uma vez que eles não podem largar a atividade de trabalho ou de responsabilidades para com a família.

 

 

IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, a juventude se transformou no foco da pandemia de Covid-19 neste ano?

Helena Wendel Abramo – Há uma percepção de que os jovens estão desenvolvendo formas mais graves da doença, ocupando leitos de hospitais, e estão morrendo em decorrência da Covid-19 em uma proporção maior do que no ano passado. Os epidemiologistas estão chamando isso de “juvenilização da pandemia”. Quando os epidemiologistas usam esse termo, estão se referindo a uma faixa etária muito mais ampla, abaixo dos 60 anos, porque as primeiras análises diziam que os acima dos 60 anos seriam os mais vulneráveis, e ainda são. Mas o que está se observando é que a doença tem afetado gravemente aqueles com menos de 60 anos e, especificamente, também os que estão na faixa de 20 a 29 anos. Só para dar uma dimensão: houve um crescimento de mais de 1.000% no número de mortes por Covid-19 na faixa etária de 20 a 29 anos no último período, segundo a Fiocruz.

A maior parte das análises atribui a contaminação dos jovens ao seu comportamento, à irresponsabilidade ou ao fato de eles acharem que são menos propensos à doença. Mas deixam de enxergar essa dimensão das atividades que eles estão desempenhando. Houve mesmo uma espécie de discurso ambíguo, senão esquizofrênico, dirigido aos jovens, nesse sentido. Até o ano passado, era dominante a percepção de que os jovens seriam os menos atingidos pelas formas graves da doença. Em função disso, eles foram, em menor medida, alvo de proteção e cuidados, foram mesmo estimulados a assumir a linha de frente das atividades para as quais os mais idosos deveriam ser preservados. E eles de fato assumiram esse papel. A maioria deles não pode fazer trabalho remoto, justamente porque estão em atividades que não têm ou não ofereceram essa possibilidade e porque não foram considerados os grupos a quem deveria se reservar tal possibilidade. Muitas vezes, foram os que saíram em busca de trabalho quando seus pais ficaram desempregados ou não puderam se manter nas atividades que desenvolviam, e quando terminou o Auxílio Emergencial isso se agravou. Também foram eles que assumiram, em suas casas, as tarefas de contato externo, a circulação necessária para compras e atividades inadiáveis, assim como aqueles que foram dar assistência aos mais vulneráveis, inclusive os que ficaram doentes.

 

 

Claro que há também os jovens que não se protegem e que se expõem desnecessariamente a situações de aglomeração, sem proteção. Mas não se pode dizer que sejam a maioria nem que apenas os jovens tenham se comportado dessa maneira. Mas permanecem uma tendência as análises que insistem naquela visão de que os jovens são irresponsáveis por natureza, individualistas, preocupados com o aqui e agora, com o seu próprio prazer e por isso não conseguem pensar nos outros, na coletividade. Nesse sentido, há uma condenação moral do jovem, como se ele fosse o responsável pela disseminação dessa nova onda do vírus.

A imprensa alimentou muito essa perspectiva, divulgando a ocorrência de baladas, de festas clandestinas protagonizadas por jovens no mesmo período do recrudescimento dos casos neste ano. E as respostas, na maior parte das vezes, são a repressão a esses eventos e apelos para uma maior conscientização e responsabilidade dos jovens. Condenação moral e repressão pesada, numa culpabilização que redunda em repressão e nada de proteção.

 

 

IHU On-Line – O jovem trabalhador foi desconsiderado dentro dessa visão estereotipada?

Helena Wendel Abramo – Exatamente. O que estamos tentando mostrar em nossas análises é que, para além da postura e do comportamento dos jovens, precisamos olhar qual é o papel que eles estão cumprindo nesta pandemia. A maior parte dos jovens não está podendo se proteger da contaminação porque está trabalhando em atividades que são, ao mesmo tempo, vitais e com menos condições de proteção. Não é à toa que os entregadores de aplicativo ganharam uma visibilidade tão forte nesse contexto. Quando fizeram aquela manifestação no ano passado, colocaram várias questões para a sociedade: ninguém os via na sua condição de jovens, em primeiro lugar; em segundo lugar, ninguém avaliava a importância do seu trabalho e, muito menos, a precariedade da sua situação. Eles, assim como diversos outros jovens, estão trabalhando em atividades ao mesmo tempo essenciais para a sociedade e sem nenhuma proteção, nos dois sentidos: sem condições sanitárias, de se proteger da Covid-19 e, portanto, sem proteção contra a contaminação, e sem nenhuma proteção trabalhista. Quer dizer, um jovem entregador de aplicativo, com sintomas, com qualquer tipo de mal-estar ou doença, não pode tirar licença-saúde, não pode parar de trabalhar porque não tem nenhum direito trabalhista, não é nem ao menos considerado um trabalhador com vínculo com a empresa. Então, se ele faltar ao trabalho, vai deixar de ganhar o dinheiro daquele dia. É uma absoluta falta de proteção sanitária e trabalhista e, nesta pandemia, as duas coisas se confundem.

 

 

Todos os jovens que estão por conta própria, ou em atividades chamadas hoje de “empreendedorismo”, estão, assim, por sua própria conta e risco, em alto risco com relação à Covid-19 e às consequências da crise econômica agravada pela pandemia. Além deles, outras categorias também estão em situação de alto risco, como os jovens que trabalham como caixas de supermercados, ou no setor de telemarketing, que empregam muitas pessoas dessa faixa etária. São serviços que não pararam e onde as medidas de proteção não são suficientemente observadas. É a partir dessas categorias superprecarizadas que muitas vezes os jovens se inserem no mercado de trabalho. Como eles moram, na maior parte das vezes, em regiões distantes do local de trabalho, enfrentam, diariamente, longas jornadas em transportes coletivos lotados. Esse, sem dúvida, é o principal motivo da disseminação da Covid-19 entre os jovens, não a frequência a bailes clandestinos ou rolezinhos irresponsáveis.

 

 

Cuidadores

Já falamos de como os jovens, principalmente as jovens mulheres, estão envolvidos em papéis de cuidadores, seja com seus filhos e outras pessoas vulneráveis de suas famílias, seja como trabalhadores em profissões na esfera do cuidado, como enfermeiras, cuidadores, empregadas domésticas. O que já era uma prática, se intensificou na pandemia, pois eles tiveram de assumir as tarefas que eram realizadas pelas pessoas mais idosas da família, inclusive os cuidados com os doentes atingidos pela Covid-19.

Uma coisa muito importante de ressaltar é que, com o agravamento da pobreza e das situações de precariedade, de fome, a falta de um enfrentamento correto da pandemia trouxe a amplas parcelas da população, cresceu imensamente a necessidade de ações de ajuda, de solidariedade, com a distribuição de alimentos, produtos de higiene etc. Temos relatos que indicam que os jovens e os coletivos juvenis das periferias e favelas estão envolvidos nessas ações. São os jovens que também estão na linha de frente das ações de solidariedade. São eles que estão ali, distribuindo cestas básicas e alimentos. Então, não se trata de uma postura de irresponsabilidade, ou de indiferença, muito antes o contrário.

 

 

IHU On-Line – No Brasil, é comum os jovens estudarem e trabalharem ao mesmo tempo, inclusive para subsidiar o estudo. Em que medida reduzimos essa perspectiva, considerando, por exemplo, que todo jovem pode trabalhar e estudar, e que conciliar estudos e atividade profissional é seu único desafio?

Helena Wendel Abramo – Primeiro, lembro que esse tem sido um motivo de preocupação há bastante tempo, não só minha como de outros pesquisadores e atores. Estive, com outros companheiros, na Secretaria Nacional de Juventude nos governos da presidenta Dilma Rousseff. Na época, estávamos tentando construir um Plano Nacional de Trabalho Decente para a Juventude e fomos tentando aprofundar esse entendimento do que é a situação de trabalho para os jovens, fazendo uma série de pesquisas e diagnósticos para subsidiar a elaboração desse plano, com professores e pesquisadores de diversas universidades, órgãos e entidades. Assim, a minha reflexão está ancorada nessa “comunidade epistêmica” e são reflexões ainda em andamento e em processo.

Dito isso, é preciso destacar que foi possível desenvolver, nessas duas primeiras décadas do século, até basicamente o golpe de 2016, uma perspectiva de ampliação das possibilidades de inclusão dos jovens no mundo educacional, e que também significou uma melhoria relativa dos jovens no mundo do trabalho.

Muitas vezes, agentes que estavam na formação das políticas públicas trabalhavam com a perspectiva de que, garantindo a possibilidade de inclusão dos jovens das classes trabalhadoras na escola, seria possível adiar a entrada deles no mundo do trabalho. Mas não é assim que funciona na realidade. Isso até acontece quando estamos falando de adolescentes que estão no ensino médio – e o grande esforço de todos nós é garantir que a educação básica seja concluída pelos adolescentes em condições de dedicação ao estudo, para que possam terminar essa etapa da escolarização em melhores condições.

Isto ocorreu até 2016: houve uma paulatina inclusão do jovem na escola e um recuo de seu ingresso no mundo do trabalho até o fim da adolescência. Isso pode ser constatado pelas estatísticas. As pesquisas qualitativas que realizamos apontam que, em larga medida, a ideia de que todos os jovens devem concluir a educação básica foi incorporada como projeto pelos jovens e por suas famílias. Todos os jovens compreenderam quão fundamental é para suas vidas um processo mais largo e qualificado de escolarização.

 

 

Nosso grande avanço nas duas primeiras décadas do século XXI foi o de que a aspiração dos jovens de continuar estudando pode encontrar maiores chances de realização, inclusive, com o ingresso deles em cursos de ensino superior. Ou seja, o “sonho” de ingressar no ensino superior virou um projeto, uma possibilidade. E, de fato, aumentou muito a parcela de jovens cursando o terceiro grau. Ainda está muito longe de constituir a maioria, mas, ainda assim, em uma proporção muito maior do que em outras décadas. Mas, diferentemente do que ocorre com os adolescentes, a escola não elimina o trabalho: a partir dos 18 anos e concluído o ensino médio, os estudos se fazem em paralelo com o trabalho, ou com a procura por trabalho.

Esse não é um caminho suave, pois implica um esforço gigante, tanto por parte dos jovens como de suas famílias. Claro, ainda mais especificamente dos jovens, pois descobrimos, através das pesquisas qualitativas, haver uma compreensão de que as famílias das classes trabalhadoras deveriam garantir a manutenção dos jovens no ensino médio e também apoiá-los em seus planos de cursar o ensino superior. Mas entre os jovens predomina a ideia de que a família banca todo o ensino médio e eles, o superior. Os pais que não tiveram a experiência de acesso ao ensino superior pouco sabem sobre como funciona esse universo e pouco conseguem ajudar nas estratégias para dar conta desse desafio. Essa é uma equação que passa a depender quase inteiramente dos jovens. Então, muitos jovens só conseguem dar sequência aos seus estudos de nível superior mantendo um trabalho. Isso porque é preciso trabalhar para bancar a universidade, mesmo que seja a pública, pois, além da mensalidade, há muitos gastos para manter a vida enquanto se estuda.

 

Mecanismos de acesso ao ensino superior

Os mecanismos de acesso instaurados pelas políticas públicas do período foram amplamente compreendidos como os meios pelos quais o jovem pode dar sequência a esse plano. Veja o Exame Nacional do Ensino Médio - Enem, que virou uma política pública de acesso ao ensino superior. A maioria dos jovens no Brasil sabe o que é o Enem, compreende sua importância e entende que se trata de um mecanismo pelo qual é possível estruturar a chegada ao ensino superior. As universidades federais, muitas delas criadas ou ampliadas nos últimos anos, são o grande objetivo (ensino público, gratuito e de qualidade). Contudo, ainda não há vagas para todos e muitos ainda precisam recorrer às universidades privadas e, para isso, o Programa Universidade para Todos - ProUni e o Fundo de Financiamento Estudantil - Fies aparecem como mecanismos que permitem o acesso.

Contudo, muitas vezes, tem um intervalo em que eles precisam reorganizar as suas vidas, levando em conta aquele esforço que a família fez para mantê-los fora do mercado de trabalho para que pudessem concluir o ensino médio. Às vezes, é a hora de eles assumirem um pouco da responsabilidade para dar vazão a outras necessidades da família. Por exemplo, a jovem vai ajudar a cuidar dos irmãos menores porque a mãe está precisando ir para o mercado de trabalho. Esse era o cenário que estávamos vivendo até antes do golpe, quando essas políticas estavam em vigor.

 

 

Políticas públicas

Então, quando elaboramos as políticas públicas, temos de considerar que existe essa condição de vida dos jovens trabalhadores. Para eles, a perspectiva de aprimoramento da sua formação escolar, que também significa uma maior qualificação profissional, tem passado por essa situação de trabalho e estudo. É curioso que os dados estatísticos sobre a condição juvenil têm usado este quadro: o jovem está estudando, só estudando ou só trabalhando, ou nem trabalhando nem estudando. A maior preocupação tem sido com a grande porcentagem de jovens que nem estudam nem trabalham. Em termos estatísticos, ela aparece como maior do que aquela dos jovens que trabalham e estudam. De fato, as estatísticas mostram uma parcela menor de jovens que estudam e trabalham ao mesmo tempo. Mas isso não quer dizer que essa não seja uma experiência muito presente na vida da maioria dos jovens, principalmente daqueles das classes trabalhadoras. Quando temos oportunidade de examinar a trajetória dos jovens, vemos que a maior parte deles já viveu, em algum momento, essa experiência de estudar e trabalhar ao mesmo tempo.

Temos chamado atenção para o seguinte: se queremos garantir o direito do jovem a um estudo de qualidade e a um trabalho decente, ao invés de opor uma coisa à outra – ou seja, o jovem só terá estudo de qualidade se puder ficar fora do mundo do trabalho ou só encontrará um trabalho de qualidade depois que tiver completado toda a sua formação escolar –, temos de garantir que o jovem possa exercer, em condições dignas e de qualidade, essa situação de fazer as duas atividades ao mesmo tempo, enquanto outras condições estruturais não sejam modificadas no nosso país. É preciso garantir o direito do jovem de poder conciliar estudo, trabalho e vida familiar. Uma dimensão não pode anular a outra, essa sobreposição não pode se dar de forma exaustiva do ponto de vista físico e emocional, porque, do contrário, o jovem acaba não suportando e abandonando uma das dimensões da vida, normalmente o estudo, ou adoecendo, ou vivendo intensos sofrimentos emocionais, como temos visto acontecer cada vez mais.

Por isso, além de políticas de inclusão, temos de garantir políticas que assegurem condições de exercício de um trabalho decente e de um estudo de qualidade, e que eles possam ser conciliáveis. Por isso o debate sobre os direitos do trabalho, sobre as fiscalizações das condições de trabalho, assim como sobre a qualidade de ensino, também é fundamental para os jovens. A mesma coisa com relação à estruturação de políticas de cuidados: poder contar com suportes adequados para os cuidados com as crianças e membros vulneráveis é fundamental para que os jovens, principalmente as jovens, possam equacionar a multiplicidade de responsabilidades que enfrentam em suas vidas.

 

 

IHU On-Line – Quais serão os efeitos dessa pandemia na vida dos jovens no futuro?

Helena Wendel Abramo – Estamos vivendo uma imensa tragédia, não só por causa da fatalidade que o vírus nos coloca, mas pela incapacidade do governo de enfrentar, com o mínimo de efetividade, essa situação. Não nos recuperaremos tão facilmente dessa tragédia e é preciso tomar medidas imediatas para deter o seu curso. Esta é a primeira coisa que precisamos ter em mente: não se trata de uma tragédia natural contra a qual não é possível fazer nada. É claro que é possível fazer muito mais do que estamos fazendo, do que os nossos governantes estão fazendo.

Os jovens, ao contrário do que se imaginava até o ano passado, estão sendo duramente atingidos e todos os dados epidemiológicos mostram isso. Essa tragédia vai marcar, de qualquer modo, a experiência de toda uma geração e teremos que lidar com isso. Não há a possibilidade de pensarmos sobre quando isso vai acabar para retomarmos a vida normal porque não é possível retomar do ponto em que se parou. Nesse contexto, os jovens das classes trabalhadoras e das periferias e, entre esses, os negros e as mulheres, certamente serão os mais afetados; não só porque são os mais expostos à contaminação e os com menos recursos para se protegerem. Eles são os que têm menos condições de se proteger porque não têm como fazer o isolamento social e estão tendo que se colocar nas situações de risco para poder manter a vida, a sua, de suas famílias, de suas comunidades. Mas também porque o modo como essa pandemia e seus efeitos estão sendo gerenciados resultará em maior desigualdade e no agravamento das dificuldades de inclusão e desenvolvimento de seus percursos.

Muitos avaliam que a tragédia que a pandemia coloca para os jovens se dá pelo fato de estarem interrompendo sua trajetória de estudos, porque isso vai gerar um déficit educacional com consequências para a produtividade da sociedade toda. É verdade, mas temos que prestar atenção também em outra questão, que vai além do debate sobre o retorno às aulas presenciais. Acho que foi muito ruim o debate ter girado apenas em torno dessa questão, em vez de ter encarado a necessidade de repensar uma política emergencial de educação, revendo os calendários do país inteiro, repensando de que modo os percursos educativos poderiam lidar com a questão da pandemia e não tentando fazer gambiarras para manter um mesmo planejamento “apesar” da pandemia. Foi o fato de os gestores da política educacional não terem se aliado com os que postularam medidas emergenciais de garantia de acesso à internet de qualidade para todos, para que o ensino remoto pudesse ter se construído em alternativa viável para todos. Foi o fato de o parlamento não ter garantido as verbas (e a fiscalização da sua aplicação) para as adaptações necessárias para as instituições educacionais, ao invés do socorro às instituições financeiras. E o fato de que as escolas privadas tiveram condições que as públicas não tiveram na falta desse enfrentamento nacionalmente planejado.

Mais uma vez, a questão é como essa situação atinge diferentemente e desigualmente os jovens. A maior tragédia é a incapacidade dos nossos governantes de enfrentarem a pandemia, porque o mais trágico disso não é a interrupção de dois anos no processo de formação de uma geração inteira, mas, sim, a abertura de um fosso entre aqueles jovens que puderam manter um ritmo de formação e preparação, e aqueles que não puderam, pelas dificuldades de frequentar as aulas presenciais ou de acessar o ensino remoto, ou o fato de o país não ter conseguido equalizar os custos nem revisto um calendário de educação.

 

 

Aprofundamento das desigualdades

O que vai acontecer é exatamente o aprofundamento das desigualdades. O número de abstenções no Enem e nos vestibulares vai se reproduzir, porque a pandemia não vai terminar neste ano. O que farão os jovens que não têm condições de fazer o acompanhamento do ensino remoto? Um dos maiores impactos dessa situação será o aprofundamento da desigualdade gigante que estava começando a ser enfrentada no país com as políticas de cotas, afirmativas e de valorização da escola pública.

 

 

Mas há um outro lado importante, que não quero deixar de assinalar: o maior acesso e a experiência dos jovens na vida escolar nessas duas últimas décadas fizeram com que eles tivessem mais consciência da cidadania, dos seus direitos, dos valores da democracia e da solidariedade, e também da não aceitação da desigualdade como algo natural. Vejo com otimismo o fato de essa geração ter vivido essa experiência e ter experimentado o papel das políticas públicas inclusivas em ação durante os anos de cidadania que precederam o golpe de 2016. Essa experiência não foi anulada pela pandemia, ao contrário, pode estar sendo ressignificada. Se, na dimensão individual, muitos jovens podem estar sendo assolados pelo pessimismo, pela falta de confiança no futuro, pela vontade de desistir, acho pouco provável que todos aceitem passivamente esse retorno da desigualdade, esse bloqueio dos caminhos de inclusão, esse desmonte das políticas públicas que garantam os seus direitos. A própria experiência da pandemia ressaltou, para muitos, a percepção da importância das políticas públicas, como as da saúde, como o Sistema Único de Saúde - SUS, e da garantia de direitos, como os trabalhistas. Essa juventude vai cobrar os seus direitos para que não haja retorno da desigualdade profunda, para que se criem mecanismos para superar essa estrutura de desigualdade que está se recompondo. Tenho essa esperança. Nossa disposição diante desse quadro deve ser a de elaborar e apoiar todas as medidas possíveis para que essa desigualdade não se aprofunde.

 

 

Alternativas

Temos que pensar em alternativas já, além da vacina para todos. Precisamos cobrar que o governo federal e os governantes assumam outra postura, radicalmente diferente das que assumiram até aqui, inclusive, na condução da pandemia no que diz respeito aos jovens. Precisamos olhar para as condições de possibilidade de manter o isolamento social, na contramão do que o governo federal tem dito, que é tentar impedir o exercício do isolamento social. Temos que dar condições para um isolamento mais efetivo que possa interromper, junto com a vacinação, a propagação do contágio. No caso dos jovens, isso passa, em primeiro lugar, por condições de acesso à internet, através da qual eles possam manter suas possibilidades de estudo, de trabalho remoto, quando for o caso, de sociabilidade, de fruição e produção cultural e de informação. Precisamos da manutenção e ampliação de medidas que possibilitem a continuidade das atividades culturais, nas quais tantos jovens se encontram envolvidos.

Também precisamos estar unidos na reivindicação de um auxílio relevante para todos os que ficaram sem renda, incluindo os jovens que não são chefes de família, mas que contribuem efetivamente com a renda familiar. Precisamos de protocolos e fiscalização para garantir a segurança dos jovens que não podem deixar de trabalhar, precisamos que eles tenham amparo quando não podem comparecer ao local de trabalho, quando perdem o emprego ou não encontram trabalho. Precisamos que os que trabalham o façam em condições de segurança. Precisamos, com urgência, de medidas de segurança sanitária no transporte urbano. Sem isso, não teremos condições mínimas de deter as ondas de disseminação. Enfim, precisamos estar conscientes de que não são somente as políticas de educação que atingem os jovens, mas também as de trabalho, de proteção e de seguridade social. Os jovens precisam de ações de informação e prevenção, de campanhas de conscientização, mas também de todas essas medidas concretas que lhes permitam exercer o comportamento ao qual estão sendo exortados. É dessa maneira que eles precisam entrar no foco de quem está pensando as medidas sanitárias e sociais para o enfrentamento da pandemia, para que eles sejam vistos como aqueles que também necessitam de proteção, amparo e justiça.

 

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