05 Mai 2021
“A construção da democracia representativa, deliberativa e participativa deve estar ligada à construção de uma cultura política cívica, isto supõe processos de desaprendizagem da cultura política patrimonialista e patriarcal, e este é um dos maiores desafios para a Igreja e a Companhia de Jesus que possuem forte tradição hierárquica e vertical”, escreve Ismael Moreno, o Padre Melo, jesuíta hondurenho, ativista de direitos humanos, em artigo publicado por Jesuítas da América Latina, 27-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Governo formal e governo real. Parece um jogo de palavras. Mas são nossas realidades. Uma coisa é o governo com seus três poderes do Estado, e outra é como se governa o país e quem de verdade governa o país, muito além das formalidades dos poderes do Estado. O Estado de Direito que rege nossa democracia nos diz que quem manda é o Soberano, isso é, o povo, não pessoas específicas que impõem suas decisões, mas sim através de leis.
Nenhuma pessoa está acima da lei, o governo que se estabelece é eleito formalmente em processos eleitorais. Cada quatro, cinco ou seis anos, segundo os países, a cidadania é convocada para que por voto secreto eleja as autoridades que decidem optar a cargos de eleição popular. No entanto, da teoria à prática, existe um grande trecho que tem nome e sobrenome: os que decidem e controlam os instrumentos e institucionalidade do que chamamos de democracia, são reduzidos a cúpulas, baseada na cultura política patrimonialista, matriz dos caudilhos e de todas aquelas práticas personalistas e arbitrárias que impe que aflore com toda sua riqueza a institucionalidade democrática e o Estado de Direito.
Seguindo a formalidade da democracia, as eleições das autoridades públicas constituem traço essencial do Estado de Direito. Em nossos países centro-americanos, há eleições democráticas de autoridades públicas no marco do Estado de Direito, no entanto, quando as mesmas estão controladas por pequenas cúpulas, e sendo os partidos políticos propriedades destas cúpulas, o que os torna contraditórios à democracia, se violenta ou se viola o direito cidadão a eleger livremente suas autoridades, e se solapam as bases do Estado de Direito. Muitas das reformas institucionais que foram impulsionadas ao longo dos últimos 25 anos – depois do final das guerras centro-americanas – tiveram a ver mais com a pressão internacional sobre os políticos e funcionários de nossos países que com a necessidade que os próprios centro-americanos sintam para responder as exigências e desafios do mundo que se constrói no século XXI.
Porém, muitas das reformas para a consolidação do Estado de Direito foram adulteradas ou manipuladas pelas mesmas autoridades responsáveis pela sua execução, precisamente porque estas últimas estão subordinadas ao sistema de partidos políticos com fortes indícios antidemocráticos, que negam a democracia, que afirmam defender e representar. Por ser inerentemente antidemocrático, o sistema de partidos políticos torna antidemocráticos todos aqueles instrumentos paradoxalmente orientados para o fortalecimento da democracia. É verdade que muitos esforços têm sido feitos para tornar funcional o sistema político e a legislação, mesmo a comunidade internacional em muitas ocasiões condicionou sua cooperação em troca da modernização das instituições do Estado. Porém, líderes e poderes públicos, em geral, sempre refazem seus próprios passos: acabam acreditando, e os fazem sentir, que por ocuparem um cargo público estão acima dos demais.
Formalmente, são eleitos por seus partidos em eleições nas quais participam várias correntes internas. E quem elege os candidatos dentro de cada uma das correntes internas?
Ninguém que não tenha o aval do dirigente, com reconhecimento tácito do proprietário, ou do grupo proprietário do partido político, em nenhum caso poderá se candidatar a um cargo eleito pelo povo. Normalmente, os cargos governamentais mais importantes contam, não só com o aval dos principais dirigentes ou donos dos partidos políticos, mas também com o aval dos altos funcionários do exército, também dos grandes dirigentes da empresa privada e com a aprovação da Embaixada Americana.
Dificilmente um cidadão ou cidadã se candidatará à Presidência da República sem ter passado por todos esses filtros. O mesmo se pode dizer de quem for nomeado Promotor, Presidente ou Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, membros do Superior Tribunal de Contas ou Procurador-Geral da República. Pessoas ou grupos de poder canalizam sua aprovação ou veto para os candidatos à eleição popular por meio de seus meios de comunicação de massa.
Ainda existe outro ator que participa, com força crescente, da eleição de candidatos para ocupar os cargos mais importantes da administração pública. É o que costuma ser chamado pelo nome genérico de Crime Organizado, liderado pelo tráfico de drogas. Há fontes de crédito elevadas que sustentam que as várias máfias do crime organizado atravessam os vários corredores da política eleitoral, como Pedro, por sua casa, e pela capital dos mais importantes grupos econômicos de empresas privadas.
Quando um candidato fala com plena segurança de que passará a ocupar um alto cargo público, sua certeza não vem tanto do apoio popular que tem, mas do apoio financeiro e político que eventualmente virá de algumas das máfias que circulam pelo território de nossos países. Se o Crime Organizado, que cruza o tráfico de armas, o tráfico de pessoas, o narcotráfico e os sequestros, transfere grandes quantias de dinheiro a dirigentes e correntes políticas dos partidos políticos, é sem dúvida porque a política se tornou fonte de investimento e lavagem de capitais e, no final, na beira da ponte para exercer e estender seu poder e controle sobre a sociedade.
Quando pessoas de boa vontade e civilidade vão votar, os candidatos já foram escolhidos por quem realmente e sem necessidade de eleições tomam as decisões mais importantes para o país. Para que são as eleições então? São um exercício que permite à população sentir a responsabilidade de escolher as suas autoridades e assim exercer um dos direitos garantidos pela Constituição da República. Porém, com o rígido controle que os grupos de poder exercem sobre os mecanismos da democracia, o voto da população acaba por legitimar o poder público, cujos candidatos têm o aval e contam com a confiança de indivíduos e grupos de poder para administrar os recursos do país, aprovam leis e aplicá-los de acordo com sua melhor conveniência.
A democracia e o Estado de Direito movem-se e são sustentados por dois governos: o governo que é formal e legalmente eleito pelo voto da população e, por outro lado, o governo dos grupos de poder real, o mesmo que nomeia e endossa aqueles que serão eleitos para o governo formal. Entre os dois governos, o real, o duradouro e o que realmente decide e comanda, é o que funciona para além do ciclo político eleitoral, usa a democracia e todos os seus mecanismos para legitimar as suas decisões, proteger os seus interesses e agir, quase sempre, nas costas dos pobres.
Quando a democracia se reduz à democracia política representativa, se corre o risco, como é o caso de vários de nossos países centro-americanos, de legitimar determinados poderes fáticos dominantes e a concentração de riquezas e bens públicos comuns. É impensável alcançar estabilidade política em uma democracia enquanto persistir um modelo econômico baseado na produção descontrolada de super milionários e de miseráveis. Aqui encontramos o fator estrutural da desestabilização da democracia.
A democracia de hoje, baseada em partidos políticos, por meio dos quais as sociedades elegem seus governantes e autoridades, é apenas uma expressão da democracia. A democracia política representativa é uma expressão da democracia, mas não pode e não deve ser reduzida a ela. Os partidos políticos são ou podem ser fatores de mudança, mas nem sempre são, nem a luta pela mudança social pode recair apenas sobre eles.
A transformação social e política fundamental deve unir a luta política pelo acesso ao governo com a luta política pela democratização da economia, da sociedade e da cultura. Isso é obtido se houver movimentos que impulsionem de baixo para cima. E isso nem sempre é aceito pelos partidos políticos, sejam eles da ideologia de direita ou de esquerda. A democracia política sem transformação do modelo de desigualdade econômica será sempre uma meia democracia, uma democracia medíocre ou falsa ou uma ameaça à democracia. E parte disso é o que agora temos em nossa democracia representativa em vários países da América Central.
Sem o empurrão de baixo para cima dos movimentos sociais que questionam a democracia política representativa, que demandem e exijam a existência da democracia representativa, os partidos políticos se tornarão profissionais de democracia, mas baseados em disputas entre as cúpulas e rompidas com o cotidiano das pessoas.
No caso de alguns países da América Central, como Honduras, Guatemala e El Salvador, as pessoas vão às urnas confiantes de que assim exercem seu direito de eleger suas autoridades. Mas nas pesquisas de opinião realizadas anualmente por universidades e instituições de pesquisa dos Jesuítas de El Salvador e de Honduras (Cf. Instituto de Opinião Pública da UCA de San Salvador; ERIC-SJ, Honduras), as pessoas deixam muito clara sua percepção de que todos os partidos políticos estão distantes de suas necessidades, não ouvem suas demandas e seus líderes negociam a distribuição de cargos entre si, independentemente das necessidades da sociedade. Encurtar essa distância é um desafio para as lideranças políticas, e a construção de movimentos sociais nascidos e inseridos no cotidiano da população com autonomia própria dos partidos políticos, são tarefas para a democratização da sociedade.
A mentalidade clientelista da maioria da população é baseada na realidade da sobrevivência. É um fator decisivo para a existência de um pacto tácito entre as lideranças partidárias e o povo em estado de sobrevivência. De acordo com as várias pesquisas realizadas em El Salvador e em Honduras, o nível de consciência social e política da sociedade continua tão precário que para uma maioria que ultrapassa 60% da população, não importa quem está no governo e quem está no governo e na oposição.
Não importa quem são ou de onde vêm quem tem que resolver seus problemas, mas se essa pessoa, de qualquer maneira e com qualquer método, realmente resolve seus problemas de nutrição, segurança e emprego. Se é um governo autoritário, populista e ditatorial que o faz, é o menos importante. Esta é, sem dúvida, a colheita mais amarga deixada pela democracia com seus partidos e eleições. É um terreno fértil para os fortes se exercitarem como democratas, mesmo que sejam personagens com pretensões messiânicas ou ditadores, como se vê com grande perigo na atual América Central.
As instituições de ajuda funcionam acima da arbitrariedade de pessoas e grupos políticos e econômicos. A fraqueza ou ausência de instituições enfraquece a democracia e fecha as portas para a governança, ao mesmo tempo que fortalece os grupos de poder tradicionais e poderes ocultos que operam nos corredores subterrâneos da ilegalidade e do abuso de poder.
Posicionar-se a partir da tarefa de fortalecer o movimento social a partir da articulação das demandas que surgem das organizações comunitárias territoriais. A construção da democracia participativa é impensável sem a construção de tecidos sociais, econômicos e culturais a partir das experiências democráticas nas próprias comunidades.
A democracia política representativa é uma expressão da democracia, mas não pode e não deve ser reduzida a isso. Os partidos políticos são ou podem ser fatores de mudança, mas nem sempre, nem a construção da mudança social pode repousar apenas sobre eles. A Igreja deve continuar a encorajar, com as palavras do Papa Francisco e de São Romero, que as pessoas se organizem e que os movimentos populares se tornem atores que pressionam pela democracia e por um modelo social e econômico que garanta uma distribuição justa dos bens e das riquezas (cf. Palavras do Papa aos movimentos populares reunidos em Roma e na Bolívia, e de São Romero às organizações populares em El Salvador).
A transformação social e política de fundo deve unir a luta política pelo acesso ao governo com a luta política pela democratização da economia e a democratização das palavras e da participação. Isso se consegue se existem movimentos que impulsionem desde baixo, como anima a Igreja em sua dimensão social. E isto nem sempre é aceito. A democracia política sem transformação do modelo de desigualdade econômica, será sempre, ao menos, uma democracia pela metade. E uma democracia representativa sem sentar as bases para que existam instâncias que debatam e deliberem sobre os grandes temas da sociedade, corre o risco permanente de representar a reduzidas elites e cúpulas, e as impor como se fossem o que pensam e desejam as maiorias.
Sem o empurrão de baixo para cima dos movimentos sociais que questionam a democracia política representativa, que demandem e exijam a existência da democracia deliberativa e da democracia participativa, os partidos políticos poderão garantir democracias representativas formais, mas não poderão garantir que o sejam autenticamente democráticas. A opção pelos pobres, como nos lembra a Igreja, é o critério para um compromisso desde baixo, porque é a partir dessa realidade humana que podemos ser mais fiéis ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.
A construção da democracia representativa, deliberativa e participativa deve estar ligada à construção de uma cultura política cívica, isto supõe processos de desaprendizagem da cultura política patrimonialista e patriarcal, e este é um dos maiores desafios para a Igreja e a Companhia de Jesus que possuem forte tradição hierárquica e vertical.
Segundo o Evangelho, a palavra falada deve ser creditada com o testemunho de quem a anuncia (cf. Mt 7, 21-27). Se na Igreja e na Companhia de Jesus devemos falar de democracia e cultura cívica, devemos fazê-lo a partir do testemunho de processos internos de construção que desafiam a cultura patriarcal dominante e a estrutura vertical que configura nossas relações. Só o que alcançarmos em democracia e cultura cívica dentro de nossas estruturas tornará nossa palavra crível e possibilitará que nossas propostas afetem a sociedade. Porque, afinal, o testemunho que acompanha a palavra é o que semeia transformações profundas e duradouras.
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Debate sobre democracia: contribuições desde a América Central. Artigo do Padre Melo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU