05 Mai 2021
A experiência de religiosos cristãos no campo de concentração de Dachau, na II Guerra Mundial, foi, “por desígnio da Providência, o berço do ecumenismo plenamente vivenciado. Nunca antes na história do povo de Deus se viram tantos sacerdotes, seculares e regulares de todas as confissões cristãs, reunidos em uma comunidade de vida e miséria, quanto durante o grande testemunho de Dachau”.
A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.
O pavilhão dos padres – Dachau 1938-1945
(São Paulo: Editora Contexto, 2018)
A avaliação é do padre Münch, detido no campo de Dachau, e registrada por Guillaume Zeller no livro “O pavilhão dos padres – Dachau 1938-1945” (São Paulo: Editora Contexto, 2018). Dos 2.579 sacerdotes presos de 1938 a 1945 nesse campo, 95% eram católicos, que conviveram com mais de 100 pessoas protestantes, entre eles o pastor Martin Niemöller, com cerca de 20 sacerdotes ortodoxos e dois religiosos muçulmanos de origem albanesa.
O campo de Dachau chegou a ter uma capela, aberta em janeiro de 1941, proibida, no entanto, para a frequência de leigos e autorizada, de início, apenas aos religiosos alemães, os Reichsdeutsche. O seminarista Karl Leisner foi ordenado sacerdote nesta capela, numa cerimônia celebrada por monsenhor Piguet, e acompanhada por pastores protestantes, todos vestidos com o uniforme listado de presidiário. A celebração teve até música, interpretada por um violinista judeu, postado no lado de fora da capela.
Os primeiros sacerdotes chegaram em Dachau em 1938, procedentes de países de fora da Alemanha, resultado do Anchluss (anexação) da Áustria, em 12 de março de 1938, e dos Sudetos, em 29 de setembro do mesmo ano. Eram austríacos, tchecos e poloneses. Da população de religiosos em Dachau, 65% eram procedentes da Polônia. Dos 1.034 religiosos que morreram no campus, 84% foram poloneses.
Quase todos os religiosos receberam o triângulo vermelho, que identificava os “políticos”. “Possuir um livro proibido, guardar recortes de jornais tendenciosos ou cartas pessoais críticas ao regime, apresentar indícios de proselitismo religioso: a Gestapo utiliza todos os pretextos possíveis para justificar a prisão de sacerdotes fichados”, relata Zeller.
Religiosos também foram presos em situações ridículas. O pároco de Wassenach, Joseph Zilliken, foi detido por “resistência passiva” em maio de 1940, por não ter se levantado à passagem de Hermann Goering, comandante em chefe da Força Aérea Alemã, em restaurante em que se encontrava. O padre Gustav Görsmann, decano de Gellenbeck, da diocese de Osnabrück, foi preso por ter dirigido a palavra a prisioneiros franceses. A partir de 1944, conta Zeller, os atos de resistência ou de apoio aos partisans (paramilitares da resistência) passam a ser as principais razões de deportação.
Fome, frio, punições, surras, esgotamento psicológico, doenças infecciosas, assassinatos, formam um conjunto de fatores que elevaram a mortalidade em campos de concentração nazistas. Mas teve outro fator macabro que matou prisioneiros: as experiências médicas.
O Dr. Schilliing selecionou 18 religiosos, grupo depois ampliado por outros 20, como cobaias em experimentos médicos. Uma das pesquisas voltou-se ao fleimão, doença infecciosa que se propaga em feridas mal curadas ou infectadas, o que era comum em feridos de guerra. Sem o tratamento adequado, foi uma das causas de mortalidade em campos de batalha. Os experimentos médicos incluíam inserção de instrumentos nas feridas provocadas em cobaias, que tiveram que suportar dores tremendas.
Suprassumo da hipocrisia, Schilling ficava “surpreso de ver um homem de Deus se recusar a contribuir para a melhoria do bem-estar da humanidade”. O pastor evangélico de origem judaica, Josef Cohen, e o padre católico Leo Michalowski, foram escolhidos para cobaias nas câmaras de baixa pressão instaladas em Dachau. Eles tiveram que mergulhar em tanque de água gelada durante cerca de meia hora, até atingir a temperatura corporal de 30 graus, quando qualquer pessoa perde a consciência. Antes do mergulho, sensores térmicos foram implantados nas costas e no reto das cobaias.
Dachau contava com quatro potentes fornos e recebeu, em 1943, o crematório chamado “pavilhão X” para dar maior vazão ao desaparecimento de cadáveres. Nesse prédio, conta Zeller, a chaminé fumegava sem parar. E quem ainda conseguiu, nesse ambiente, ter uma veia de humor dizia que o único meio de fugir do campo consistia em “passar pela chaminé”.
Dachau serviu de protótipo a outros campos nazistas. Ele tinha 34 pavilhões, de 100 por 10 metros, três deles destinados aos religiosos, com capacidade para 52 pessoas em cada. O Natal de 1943 foi celebrado no pavilhão 26 de Dachau, com direito a sermão e entoação do tradicional hino Stille Nacht (Noite Feliz). O padre beneditino Georg Schwack, detido em 1943, compôs uma Missa Dachauensis, interpretada pela primeira vez em 24 de setembro de 1944, dia de Nossa Senhora das Mercês e da liberação dos escravos.
Dachau teve duas grandes epidemias de tifo. A primeira, em dezembro de 1942, que teria vitimado entre 100 e 250 pessoas, e a segunda em dezembro de 1944, causada por piolhos devido às péssimas condições higiênicas, e que foi muito mais mortal. Kapos, prisioneiros escolhidos pela SS para supervisionar os trabalhos forçados, dificultavam o acesso de religiosos contaminados à enfermaria.
Estima-se que entre 13 mil a 15 mil pessoas morreram de tifo no período de 1º de janeiro a 29 de abril de 1945, quando soldados americanos ocuparam Dachau. Só no mês de maio daquele ano, 2.221 pessoas pereceram no campo vítimas da doença.
A chegada dos americanos a Dachau não os livrou de críticas dos religiosos, registradas em documento. Eles protestaram contra “o verdadeiro escândalo do crematório, em que centenas de cadáveres permanecem sem sepultura desde a libertação, em estado de putrefação e liquefação acentuadas, tudo com o intuito de oferecer um espetáculo sugestivo aos visitantes autorizados. Os americanos parecem preocupados em explorar o drama de Dachau para fins de comunicação, e multiplicam as visitas ao campo, reportagens fotográficas e filmagens que chocam os sobreviventes.”
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Ecumenismo de convivência teve início em Dachau, afirma padre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU