26 Junho 2018
A declaração de 1934 definiu a relação entre os cristãos da Alemanha e o regime nazista. A situação do cristianismo nos Estados Unidos hoje não é totalmente diferente.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 25-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É preciso resistir à tentação de comparar os políticos dos nossos dias com Adolf Hitler.
E não há lugar melhor para contemplar isso do que na Alemanha, onde eu participei recentemente de um encontro de teólogos de todo o mundo. Nós nos reunimos em uma casa de retiro dirigida pelo Movimento de Schönstatt, nos arredores da cidade de Koblenz, na Renânia.
O lugar é chamado de Berg Moriah e fica em uma colina tranquila cercada por pequenas fazendas. Em uma das capelas, há o chamado “Dachau-Altar”.
Os padres que foram internados no campo de concentração nazista em Dachau o usaram para celebrar uma missa no início de 1941. Foi ao redor desse mesmo altar que um prisioneiro-seminarista chamado Karl Leisner foi ordenado ao sacerdócio em 17 de dezembro de 1944.
Nas missas diárias que celebramos no Dachau-Altar durante a nossa conferência acadêmica, não pude deixar de pensar na imensa tragédia que estava acontecendo com os migrantes latino-americanos que foram pegos tentando atravessar ilegalmente a fronteira entre os Estados Unidos e o México.
As autoridades estadunidenses, instruídas pelo governo Trump, estavam sistematicamente separando crianças pequenas de seus pais nos campos de internação. As cenas foram pungentes para mim, porque sou um imigrante recente nos Estados Unidos, e minha esposa e eu temos filhos da mesma idade que esses jovens migrantes.
A menos de 160 quilômetros de onde estávamos realizando a nossa conferência está a cidade de Barmen, onde ocorreu um importante evento entre 29 e 31 de maio de 1934, que definiria a relação entre os cristãos da Alemanha e o regime nazista.
Naquela data, os cristãos protestantes que se opunham ao “Deutsche Christen” (Cristãos Alemães) – um movimento que endossava o regime de Hitler e lhe dava uma justificação teológica – esboçaram a “Declaração de Barmen” ou “Declaração Teológica de Barmen” [disponível aqui, em português].
Era um documento de 1.800 palavras de comprimento, que tentava preservar o caráter cristão da Igreja Protestante e salvá-la de ser manipulada para fins políticos.
“Declaramos publicamente nesta Confissão, perante todas as igrejas evangélicas da Alemanha, que aquilo que ela mantém como patrimônio comum está em grande perigo que também ameaça a unidade da Igreja Evangélica Alemã.”
“Ela se acha ameaçada pelos métodos de ensino e de ação do partido eclesiástico dominante dos ‘Cristãos Alemães’ e pela administração da Igreja conduzida por ele”, dizia.
A declaração afirmava a liberdade da Igreja e procurava impedi-la de ser absorvida pelo Estado e pelo partido nazistas.
“Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”, afirmava.
Karl Barth, o mais importante teólogo protestante do século XX, foi o principal autor do documento.
Como uma expressão da Igreja Evangélica Alemã, assim como uma união federal de Igrejas luteranas, reformadas e unidas, a Declaração de Barmen foi o “não” definitivo à agenda política do Terceiro Reich.
Ela enviava um sinal de que, pelo menos parte da Igreja Protestante, se recusava a ficar em silêncio, a ser absorvida pela ideologia nacionalista e racista do regime nazista ou a ser identificada com seus sucessos imperialistas.
Barmen marcou o início da “Igreja confessante”, aquela parte da comunidade protestante que estava em oposição pública ao regime nazista.
Mas o documento, também e acima de tudo, era um reconhecimento formal de que a Igreja Protestante estava em guerra consigo mesma – posicionando aqueles que se opunham ao regime de Hitler contra aqueles que haviam sido cooptados e nazificados por ele.
A situação do cristianismo nos Estados Unidos hoje não é totalmente diferente.
Obviamente, Donald Trump não é Adolf Hitler, e os Estados Unidos não são a Alemanha nazista. Mas chegou a hora de algo como uma “Declaração de Barmen” para as Igrejas e comunidades religiosas nos Estados Unidos – não apenas para tentar impedir as atrocidades de Trump contra os imigrantes, mas também para oferecer maior clareza sobre a situação do cristianismo no país.
É verdade que algo está se movendo. Temos visto muitas Igrejas se manifestarem contra as políticas desumanas de imigração do governo Trump.
As declarações dos bispos dos Estados Unidos ficaram mais claras sobre como a Igreja Católica vê o tratamento dos migrantes e refugiados por parte do governo dos Estados Unidos.
Outras Igrejas repreenderam diretamente membros do alto escalão do governo Trump.
Por exemplo, a Igreja Metodista Unida emitiu sanções contra o procurador-geral Jeff Sessions, que é um de seus membros. Mas a crise na fronteira entre os Estados Unidos e o México, até hoje, tem sido apenas o episódio mais bárbaro de uma série de políticas desprezíveis.
Os cristãos nos Estados Unidos precisam se pronunciar e verificar se hoje existe uma “Igreja confessante” que se distanciará do equivalente estadunidense do “Deutsche Christen” de 1934.
Essas Igrejas têm uma responsabilidade especial, dada a constante reivindicação de muitos líderes políticos e eclesiais de que os Estados Unidos são um país cristão. Não podemos esperar que as minorias religiosas façam aquilo que a maioria cristã não tem a coragem de fazer.
Os bispos dos Estados Unidos, que se manifestaram claramente sobre a questão da detenção migratória durante a última reunião da sua conferência na Flórida, precisam continuar levantando sua voz.
Eles também devem pedir que outros membros da Igreja Católica se unam a eles – párocos, religiosas, intelectuais públicos, acadêmicos e todo o povo de Deus. Se este não é um momento para a Igreja agir de maneira sinodal, é difícil saber qual será.
Este poderia ser o momento perfeito para começar a falar sobre outros problemas pró-vida mais divisivos. Se a Igreja não tomar uma posição firme e unida sobre a crise das imigrações, sua credibilidade em outras questões da vida também ficará despedaçada.
Isso enviaria uma mensagem importante a Trump e às elites intelectuais e políticas que são complacentes com o seu governo. Não há nenhuma garantia de que isso teria algum efeito sobre o presidente ou sobre suas políticas.
Mas é necessário algum tipo de “Declaração de Barmen” a fim de iniciar um processo de julgamento moral e de autojulgamento em relação ao caráter cristão dos Estados Unidos – e, o que é ainda mais importante, ao caráter cristão da Igreja.
Pelo menos, isso nos ajudaria a distinguir entre aqueles que pensam que aquilo que está acontecendo é normal e aqueles que estão chocados e querem mudar essa política de desprezo.
Isso nos ajudaria a ver que a corrupção das elites não se limita à depreciativa academia liberal, mas também se encontra entre os apologistas mais expressivos da causa da religião e da Igreja. Isso nos daria a chance de ver onde estamos e quem somos.
A credibilidade que o cristianismo europeu foi capaz de manter após a Segunda Guerra Mundial se deveu, em parte, ao medo da alternativa – os comunistas ateus na Rússia e na Europa oriental.
Mas também se deveu ao testemunho dos mártires cristãos que pagaram com suas vidas. E, entre eles, estavam padres católicos como Karl Leisner e Bernhard Lichtenberg, assim como o pastor protestante Dietrich Bonhoeffer.
Estamos em uma nova era de mártires, e agora há mártires não só no Oriente Médio, Ásia e África, mas também na Europa e na América.
Esses novos mártires não são apenas vítimas da violência religiosa, mas também da violência exercida por outros cristãos, às vezes em nome do cristianismo usado como álibi político por políticos xenófobos.
O recente e amigável encontro entre o ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini (“Bento XVI é o meu papa”), e o cardeal Raymond Burke fala muito a esse respeito.
Vale a pena repetir – Donald Trump não é Adolf Hitler, e os Estados Unidos não são a Alemanha nazista. Mas há semelhanças, incluindo a profunda polarização intraeclesial sobre questões políticas e o risco de complacência em relação a uma teologia pervertida do etnonacionalismo cristão.
Nenhuma conferência teológica ou evento público de diálogo poderá vencer a polarização encontrada atualmente entre os cristãos estadunidenses, especialmente na Igreja Católica.
Os protestantes alemães reconheceram uma polarização similar quando se encontraram em Barmen em 1934 e tomaram uma posição sobre a emergência moral e teológica de seu tempo.
Até que haja algo semelhante a uma Declaração de Barmen nos Estados Unidos, a polarização intraeclesial será pouco mais do que um álibi para o fracasso das Igrejas em se levantarem vigorosamente contra as políticas imorais e desprezíveis de seu governo.
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Chegou a hora de uma ''Declaração de Barmen'' nos Estados Unidos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU