01 Mai 2021
Ao lado dos colarinhos azul e branco, surgirão os colarinhos verdes, “pastores da inteligência artificial” capazes de cuidá-la e guiá-la, diz Luciano Floridi, filósofo do digital que está trabalhando em um novo livro. A inteligência artificial é um instrumento, e o papel humano continua sendo essencial.
A reportagem é de Luciana Maci, publicada por EconomyUp, 23-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A inovação digital pode contribuir para tornar o planeta mais sustentável e, em particular, a inteligência artificial pode e deve ser utilizada para projetos de conservação, melhoria e regeneração do planeta Terra.
Mas, ao lado dos colarinhos azuis (os operários) e brancos (os empregados administrativos), uma nova figura deverá abrir o seu caminho: a dos colarinhos verdes, ou seja, os “pastores da inteligência artificial”. Aqueles capazes de cuidá-la, governa-la, orientá-la. Porque, no fim das contas, esse é um papel que só a inteligência humana pode desempenhar.
Quem identifica, com a costumeira linguagem imaginativa, esse novo protagonista no palco da inovação é Luciano Floridi, um dos maiores filósofos do nosso tempo.
Professor de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, onde dirige o Digital Ethics Lab, e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute, o instituto britânico para a ciência de dados, em breve ele fará uma ponte entre o Reino Unido e a Itália, seu país de origem, para desenvolver a atividade de pesquisa na Alma Mater Studiorum de Bolonha, onde será professor de Sociologia da Cultura e da Comunicação no Departamento de Estudos Jurídicos.
Autor de livros fundamentais para quem lida com inovação digital, como “La quarta rivoluzione. Come l’infosfera sta trasformando il mondo” [A quarta revolução. Como a infosfera está transformando o mundo, em tradução livre] e “Pensare l’infosfera. La filosofia come design concettuale” [Pensar a infosfera. A filosofia como design conceitual, em tradução livre], ambos editados pela Raffaello Cortina, Floridi lê a transformação digital à luz de um pensamento filosófico capaz de definir o seu sentido e de evidenciar as suas questões éticas, eixo fundamental para o presente e o futuro.
Pedimos a ele que nos explique a nova tendência da inovação sustentável: isto é, a união entre sustentabilidade, palavra usada até demais e às vezes abusada por indivíduos e empresas, e o mundo digital. Dois conceitos antes considerados quase nos antípodas, porque algumas tecnologias tiveram (e em parte têm) um impacto negativo ou, de todos os modos, não benéfico para a natureza e o planeta.
No entanto, hoje, ser uma realidade sustentável também envolve o conhecimento e a utilização de tecnologias como a já citada inteligência artificial, o aprendizado de máquina, a Internet das Coisas e muito mais.
“As empresas precisam começar a entender que a sustentabilidade não é um acréscimo, uma envernizada em um negócio que, no fundo, não muda.”
Como o digital pode ajudar indivíduos e empresas no compromisso com a sustentabilidade?
De duas formas: em primeiro lugar, contribuindo para melhorar os conhecimentos científicos. Se conseguimos compreender os fenômenos, avaliar a eficácia das políticas ambientais, captar as consequências de determinadas ações ou analisar as razões dos desastres ambientais, é porque somos capazes de coletar dados e elaborá-los. Hoje, o saber científico se baseia fortemente no digital, que, para usar a linguagem filosófica, é basicamente uma grande força epistemológica. Em outras palavras, ele nos permite conhecer muito melhor aquilo que ocorre, para depois tomar as decisões necessárias. Esse é o digital “sobre o” ambiente. Depois, há o digital “pelo” ambiente: ou seja, a inovação tecnológica que nos leva a mudar o modo como nos comportamos, consumimos, cuidamos do planeta.
Exemplos?
Em Oxford, estamos trabalhando há três anos na “The Oxford Initiative on AI×SDGs”, iniciativa criada para identificar alguns dos problemas globais que a inteligência artificial pode ajudar a resolver e para sugerir instrumentos e melhores práticas. Até agora, coletamos mais de 120 projetos de inteligência artificial, realizados em várias partes do mundo, capazes de sustentar e fazer avançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Eles preveem a utilização da inteligência artificial para objetivos concretos como garantir água potável, a possibilidade de melhorar a educação básica, combater a erosão do solo, prevenir os grandes incêndios nas zonas de risco, evitar a destruição das barreiras de coral. Em breve, enviaremos um questionário aos responsáveis pelos projetos, escolhidos entre organizações não governamentais, entidades públicas ou iniciativas financiadas pelo setor privado mas pro bono, para entender o que funcionou e por quê: uma espécie de laboratório para compreender como proceder em relação ao futuro. Também estamos coordenando com outros bancos de dados na América do Sul e no Canadá, para chegar a ser o único repositório desse tipo para as Nações Unidas.
A inteligência artificial é sempre e somente um instrumento de sustentabilidade? No recente artigo acadêmico “The AI Gambit” [disponível aqui], você aprofunda o papel da inteligência artificial para contribuir para resolver as questões ligadas às mudanças climáticas. Mas também evidencia o seu lado obscuro...
A inteligência artificial pode ajudar a melhorar e a difundir ainda mais a atual compreensão das mudanças climáticas, assim como ajudar a combater a crise climática de forma eficaz. No entanto, o seu desenvolvimento levanta dois níveis de problemas: a possível exacerbação dos desafios sociais e éticos já associados à inteligência artificial e a contribuição para as mudanças climáticas dos gases do efeito estufa emitidos pelos sistemas de alta intensidade computacional. Em essência, esses sistemas de inteligência artificial e aprendizado de máquina consomem quantidades colossais de energia. Infelizmente, nos últimos anos, houve uma espécie de corrida armamentista, especialmente no aprendizado de máquina, que envolveu desperdícios e falta de atenção. Isso obviamente teve um impacto sobre o ambiente. No entanto, no artigo escrito com os colegas de Oxford, demonstramos que a inteligência artificial continua sendo uma força positiva. E elaboramos uma dezena de recomendações sobre como se poderá fazer melhor no futuro.
Como?
Por exemplo, começando a definir categorias. Agora, para qualquer objeto, da geladeira à lâmpada, o fabricante especifica qual é o impacto do produto em termos de sustentabilidade ambiental. Isso não ocorre para a inteligência artificial. O comprador de um serviço de inteligência artificial não é informado sobre o impacto desse serviço no ambiente. É hora de fazer isso. Até para alimentar uma concorrência saudável entre as empresas.
Você falava dos desafios éticos associados à utilização da inteligência artificial. Em que ponto estamos nessas questões?
A minha tese é que o mundo precisa de muita inteligência humana. Estamos criando máquinas que são capazes de resolver tarefas, mas com inteligência zero. Um exemplo tirado da cotidianidade: se as minhas roupas são estragadas pela máquina de lavar, de quem é a culpa? Da máquina que não fez o seu dever? Ou fui eu que errei ao utilizar a máquina? Outro exemplo tirado de um recente episódio do noticiário: o Tesla que bateu quando foi ativado o modo de direção autônoma (e os dois passageiros a bordo morreram no acidente). Foi o carro que errou ou o erro deve ser identificado em uma excessiva confiança do ser humano na tecnologia sem uma ponderada avaliação do risco? A verdadeira revolução dos nossos tempos é que conseguimos “descolar” a capacidade de agir com sucesso da inteligência. Os problemas éticos nascem precisamente do divórcio entre os dois aspectos.
O que podemos fazer para recompor a fratura?
Devemos colocar mais inteligência humana no espaço de ação que foi criado. É por isso que chegou o momento dos colarinhos verdes. Vejo surgir uma nova categoria de trabalho, que eu definiria como os pastores da inteligência artificial, ou seja, aqueles que cuidam dos agentes artificiais que representam uma grande reserva de capacidade de agir com sucesso sem qualquer necessidade de inteligência, e podem geri-los da melhor forma possível, sobre os problemas certos e na direção certa. Tratarei disso no meu próximo livro, “L’etica dell’intelligenza artificiale” [A ética da inteligência artificial, em tradução livre], editado pela Oxford University Press, que deverá ser publicado em tradução italiana no ano que vem pela editora Raffaello Cortina. Enquanto isso, olho com interesse para a nova proposta de lei europeia sobre a utilização da inteligência artificial, que lida também da questão da atribuição de responsabilidades.
“A sinergia estratégica digital-ambiente é uma arma para superar um capitalismo consumista e destrutivo”, você escreveu no seu livro “Il verde e il blu” [O verde e o azul]. Como uma empresa pode aumentar os seus negócios adotando esse novo modelo?
Ela deve saber repensar completamente a sua atividade. O digital não só ajuda a entender melhor o que é a sustentabilidade, mas também a realizá-la usando as forças do mercado. O jogo será vencedor se a empresa conseguir fazer a reengenharia de processos e produtos destinados ao mercado em favor do ambiente e da sociedade. Se, por outro lado, continuar fazendo “business as usual”, acreditando que é suficiente uma pincelada de verde e de azul, estará fadada ao fracasso.
Quais mercados e quais empresas podem se tornar protagonistas da inovação sustentável?
Um bom exemplo é o mundo da energia. Mas, em geral, o fenômeno diz respeito a todas aquelas realidades produtivas que conseguem rever os processos em uma versão muito mais econômica: a utilização do digital, de fato, é capaz de abater significativamente os custos em todos os setores da produção. Do ponto de vista estratégico, as empresas de maior sucesso serão ou muito jovens ou muito corajosas: jovens porque têm flexibilidade, capacidade de adaptação e não têm o peso do passado. Se, por outro lado, se trata de grandes empresas, é preciso a coragem de saber questionar tudo aquilo que elas acumularam ao longo dos anos. Ou seja, devem começar a se perguntar profundamente quem são e o que querem fazer como grandes.
Alguns exemplos?
Penso nos bancos: por que uma instituição bancária, em 2021, deveria ter uma sede física e talvez em pleno centro? Não seria mais oportuno se ela abrisse filiais na periferia, onde é mais conveniente encontrar estacionamento, ou se decidisse permanecer aberta 24 horas por dia, sete dias por semana, pelo menos para determinados serviços? O mesmo vale para o setor de seguros. No varejo, além disso, é evidente que é preciso uma séria reavaliação da distribuição dos produtos em todo o território. Um supermercado, por exemplo, pode decidir não ter mais uma sede física, mas apenas fazer entregas em domicílio. É uma escolha que envolve o fato de se desfazer de uma série de infraestruturas, estruturas, recursos… Por isso, é preciso coragem. Trata-se de abandonar o chamado “legado”, a herança do passado, o “sempre se fez assim”. Não é fácil, mas é indispensável para enfrentar o futuro.
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“A inteligência artificial pode salvar o planeta, mas precisamos dos ‘colarinhos verdes’.” Entrevista com Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU