20 Abril 2021
"A presença de mulheres próximas aos moribundos foi tirada porque sua assistência espiritual aos enfermos foi considerada um abuso e as mulheres foram acusadas de ser 'causa de inquietação e desordem'. Mas esta é outra página da história...", escreve Adriana Valerio, historiadora e teóloga italiana, professora de História do Cristianismo e das Igrejas na Universidade Federico II de Nápoles, autora do livro “Donne e Chiesa. Una storia di genere” [Mulheres e Igreja. Uma história de gênero] (Ed. Carocci), e “Il potere e le donne nella Chiesa” [O poder e as mulheres na Igreja] (Ed. Laterza), em artigo publicado por Il Regno dele Donne, 07-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cada época conheceu o seu mal do século. No século XVI, a epidemia de sífilis grassava na Europa: estourou em Nápoles em 1495, após a chegada à Itália de Carlos VIII, cujo exército era composto em sua maioria por milhares de mercenários com prostitutas em seu séquito. O retorno do exército francês para o norte espalhou a doença por toda a península e depois se espalhou pela Europa, chegando até o Oriente. Essa infecção sexualmente transmissível era conhecida por isso com o nome de mal francês, exceto na França, onde recebeu o nome de mal napolitain.
Como se reagiu diante dessa doença repulsiva que atormentava os pacientes com dores, cujas causas e tratamentos eram desconhecidos e que chegou a infectar 80% da população? Os países não estavam preparados e muitos dos doentes foram excluídos das instalações hospitalares. A Compagnia del Divino Amore, fundada por Caterina Fieschi Adorno de Gênova, entendeu a necessidade de criar lugares de acolhimento para essas pessoas e assim surgiram os primeiros hospitais para os Incuráveis em Gênova, depois em Roma e por fim em Nápoles, para quem não tinha nenhum meio econômico para se curar (daí o nome "Incuráveis") sofrendo não só de sífilis, mas também de doenças de difícil recuperação.
Maria Lorenza Longo (Foto: Wikimedia Commons)
A história desses lugares está estreitamente ligada à espiritualidade feminina. O Ocidente cristão, de fato, é atravessado por narrativas extraordinárias de inteligência e ações de mulheres que também levaram a significativas reformas sanitárias. Um exemplo disso é o Hospital de S. Maria del Popolo degli Incurabili de Nápoles fundado pela catalã Maria Richenza Longo. Ao regressar de uma peregrinação à Santa Casa de Loreto, após a qual, milagrosamente, recuperou a saúde física, em sinal de gratidão, acrescentou o nome de Lorenza ao seu e fez o voto de dedicar-se aos enfermos. E em Nápoles, onde vivia, em 1522 criou uma cidadela hospitalar de enorme importância social e sanitária, que mais tarde se tornou o complexo hospitalar mais importante do sul da Itália. A instituição inicialmente assumiu o nome de Santa Casa dos Incuráveis, "indicando com este nome que todos aqueles que por miséria em sua própria casa não podiam ser tratados, seriam acolhidos ali sem qualquer preferência de sexo ou idade, nem de pátria, nem de religião"[Celano, Notizie del bello, II, 693]. Uma característica da obra foi, portanto, não ser reservada apenas aos cidadãos napolitanos, mas a todos os doentes, locais ou estrangeiros, cristãos ou não, conferindo à instituição uma conotação universalista, como se pode verificar também na placa dedicada às mulheres e ainda exposta hoje na entrada da maternidade: “Qualquer mulher rica ou pobre, patrícia ou plebeia, nativa ou estrangeira, desde que esteja grávida, bata e a porta lhe será aberta”.
Maria Longo, que exercia a função de Governadora, atendia pessoalmente os doentes, pondo em prática medidas de higiene extremamente rígidas e uma organização dos espaços mais adequada: os quartos eram arejados, cada paciente tinha seu próprio leito e ficava a uma distância adequada do vizinho, os lençóis e roupas eram lavados por ela mesma diariamente. Por esta razão, a carestia e a peste de 1526-1528 não afetaram o hospital.
A propagação do flagelo das doenças venéreas estava certamente ligada ao fenômeno da prostituição, e Maria Longo havia tentado contê-lo por meio de uma intensa atividade de recuperação. Tanto no hospital quanto nas ruas, ela tentava por todos os meios persuadir as prostitutas a abandonar seu estilo de vida. Algumas conseguiram com sua ajuda constituir família, outras foram empregadas ao serviço das outras doentes, formando as primeiras enfermeiras do hospital.
Excelência operacional e organizacional, o hospital soube conjugar cuidado e investigação científica, assistência e experimentação, coisas absolutamente novas para a época, logo se tornando um centro multifuncional, dotado de locais diferenciados que podiam ajudar no desconforto social dos doentes pobres. O Banco di S. Maria del Popolo também nasceu em 1589 com intenções filantrópicas de fornecer pequenos empréstimos a juros baixos aos segmentos mais pobres da população; um boticário foi aberto para experimentar novos tratamentos e produzir os remédios mais raros e úteis, incluindo a lendária e raríssima Teriaca, uma bebida alquímica, panaceia para todos os males.
A vida e o exemplo de Maria Longo acabaram se transformando em um catalisador de atividades intensas e os Incuráveis se tornaram um modelo de organização. Chamado de "Teatro da Caridade" no século XVII, atraiu um grande número de pessoas dedicadas a realizar todos os tipos de tarefas dentro da instituição, uma espécie de voluntariado de pessoas que sustentavam o peso da assistência aos enfermos, buscando dessa forma responder às necessidades de qualquer um que necessitasse de ajuda.
Até algumas nobres, conhecidas como as “Mães do bem morrer”, dedicaram-se à assistência das enfermas nos últimos momentos da vida. A própria Longo havia exercido esse serviço, ficando perto dos enfermos até o fim de suas vidas e dando-lhes um sepultamento digno, mas em 1600 essa atividade despertou muita oposição e foi considerado um "erro" fazer com que as mulheres exercessem um ministério reservado aos sacerdotes, sobretudo pela estreita ligação que a assistência aos moribundos mantinha com o sacramento da extrema unção - como então se chamava - e da confissão. A presença de mulheres próximas aos moribundos foi tirada porque sua assistência espiritual aos enfermos foi considerada um abuso e as mulheres foram acusadas de ser "causa de inquietação e desordem". Mas esta é outra página da história...
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As mulheres inventaram uma reforma sanitária, cinco séculos atrás. Artigo de Adriana Valerio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU