15 Abril 2021
"Cada espécie da fauna ou da flora que se extingue no planeta empobrece a qualidade da própria vida humana. Percebemos sempre mais que todas as coisas, pessoas, relações e sistemas estão de tal forma interligados e entrelaçados que qualquer dano à natureza e ao meio ambiente mexe como todas as formas de vida, ou seja, com a biodiversidade. A consciência de um uso correto dos bens que o Criador colocou à disposição de todos cresce de forma positiva. Evidente que, neste caso, as responsabilidades são distintas e diferenciadas. No cuidado com o meio ambiente, faz-se relevante a contribuição de cada um, certo, mas é bem modesta a incidência das pessoas, famílias e organizações em geral, diante da gigantesca responsabilidade dos governos, empresas e dos representativos organismos internacionais", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM, 10-04-2021.
A noção do cuidado emergiu e amadureceu nas últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI. Mas, com a chegada da pandemia do Covid-19, no início de 2020, ela ganha maior relevância devido ao isolamento social e à quarentena. Na medida em que fomos forçados a uma convivência próxima e prolongada, 24 horas por dia, os relacionamentos interpessoais sofreram ou revelaram certa ambiguidade. De um lado e em não poucos casos, assistimos ao crescimento da violência familiar, em que as mulheres e crianças são as principais vítimas. Prova disso foi o aumento nada desprezível do número de feminicídios. De outro lado, entretanto, verificamos igualmente um surpreendente desenvolvimento do grande potencial de amor, carinho, ternura e solidariedade que cada pessoa carrega dentro de si.
De início, duas observações se fazem necessárias. A primeira é de que o cuidado consiste em um processo vivo, ativo e dinâmico. Uma dimensão que costuma crescer tanto de uma forma exponencial, quanto no sentido de uma espiral, isto é, em círculos cada vez mais amplos a partir de um núcleo central. Seus raios se multiplicam e se espalham, abrangendo um diâmetro sempre maior da atividade em jogo. A segunda observação diz respeito à comunicação. Efetivamente, o desdobramento concreto do cuidado requer uma linguagem única e singular. Mais do que as palavras, entram em cena o olhar, o sorriso, o gesto, o toque, a carícia, o abraço, a postura. O corpo tende a falar mais alto que a mente, o coração mais do que a razão.
Damo-nos conta de que, justamente por causa das implicações da pandemia, este é o tempo sútil das delicadezas, dos detalhes e das atenções personalizadas – enfim, do cuidado. Podemos falar de quatro círculos ou dimensões do cuidado.
Em maior ou menor grau, somos todos seres ego-centrados. Nosso umbigo tende a ser o centro não apenas deste primeiro círculo, mas também de toda sociedade e universo. Isso não significa, necessariamente, uma coisa negativa. Cada pessoa, com efeito, deve cuidar da própria saúde. A alimentação adequada, os exercícios físicos, o tempo necessário de sono e repouso e uma certa disciplina constituem fatores essenciais para o bem-estar físico, mental, emocional, psíquico e espiritual. Sem tais cuidados, pouco ou nada poderemos fazer em prol dos demais. Se não nos cuidamos como seres frágeis e débeis, seremos para os outros, não uma solução de que tanto necessitam, e sim um peso a mais em seus ombros.
Todo tipo de organismo – vegetal, animal ou humano – exige cuidados particularizados. Ao incorporar novos ingredientes e rejeitar resíduos necrosados e nocivos, o organismo nasce, cresce e se desenvolve permanentemente. Nessa tarefa contínua, desenvolve igualmente um metabolismo de depuração e purificação que ajuda no combate ao que lhe é estranho e hostil. É o que fazem, por exemplo, os anticorpos produzidos pela imunização da vacina. A verdadeira harmonia, em suas diversas e múltiplas facetas, é a forma que o organismo necessita para um desenvolvimento orgânico e saudável. Nossa condição humana, por si só, nos predispõe a um tipo de egoísmo infantil e doentio: o egocentrismo.
Como superar esse estágio? A verdade é que, à medida que amadurecemos, tendemos a deixar de lado os desejos imperativos e imediatistas da criança, e passamos a olhar ao nosso redor. Então, sim, o cuidado consigo mesmo passa a ser uma conditio sine qua non para uma crescente preocupação com tudo aquilo que nos rodeia, com o ambiente e o contexto em que vivemos e nos movemos. Ocorre, desse modo, uma passagem precisa e fundamental do egoísmo infantil ao altruísmo da maturidade. A saúde pessoal, sempre em todas as suas dimensões e na superação do fechamento em si mesmo, converte-se assim num instrumento fundamental para buscar a harmonia e a realização das pessoas e das coisas. Enquanto o universo entra no eu, este deixa a inércia e o conforto do próprio ovo ou berço, numa aventura que envolve, simultaneamente, descobertas e compromissos.
O segundo círculo de nossa espiral refere-se ao grupo mais restrito com quem convivemos e/ou trabalhamos cotidianamente debaixo do mesmo teto. Neste caso, estamos diante do ambiente de família, de comunidade ou de amizade. Laços íntimos e primários marcam as atividades diárias. O ambiente tende a ser aquecido pela chama do calor humano. A linguagem dos “inhos” ou de outras espécies de proximidade é notória e conhecida de todos nós. Mas neste caso, de forma toda particular, a pandemia e a quarentena escancararam, e até agravaram, a ambiguidade dos relacionamentos familiares, de parentesco ou de companheirismo.
O convívio permanente e obrigatório pode bifurcar-se em duas direções opostas: uma estrada árida e deserta ou um caminho de descoberta do outro e do próprio eu. A primeira via tende a revelar a nudez daquilo que há de pior na condição humana: ódio e agressividade; raiva, rancor e inveja; vícios e violência, que chegam a estágios patológicos. Ruídos, atritos, dificuldade de comunicação e silêncios envenenados tornam o ar pesado e irrespirável. Em não poucos casos, é preciso deixar a casa para encontrar verdadeiros amigos e companheiros. Vimos anteriormente como uma proximidade prolongada, mas desgastada pelo desamor ou pela falta de diálogo, tende a redobrar os índices de violência doméstica.
A segunda via, porém, descortina um potencial imenso de sentimentos e emoções que fazem crescer tudo que está em volta. Neste caso, a tendência é revelar-se o que há de melhor no mais íntimo da condição humana. Como demonstram os textos e debates da Campanha Ecumênica da Fraternidade e da Semana do Migrante, convém deixar claro que a prática frequente do diálogo se converte então em um lubrificante indispensável para a harmonia e a paz na casa. Vimos essa transfiguração ocorrer com muitos casais, com muitas famílias e com muitos relacionamentos fortemente estremecidos. Quando se abre ao diálogo e a uma mútua compreensão, a pandemia, apesar de seu rastro trágico de cadáveres, pode trazer sangue novo a organismos necrosados, ou ar primaveril a relações que se aproximam do outono. Por mais perverso e contagioso que seja o coronavírus – esse inimigo silencioso, invisível e letal – aqui impõe-se uma lição positiva da quarentena: a redescoberta do amor, do carinho, da ternura e do cuidado recíproco.
O terceiro círculo envolve a rua, o bairro, a cidade, o país e o mundo em que vivemos. Envolve também as diferenças entre povos, culturas, línguas, credos, costumes, expressões religiosas, e valores. O contexto em que hoje nos movemos, seja em nível local ou internacional, torna-se cada vez mais multiétnico e pluricultural. Exige atenção e escuta aprimoradas. As sociedades modernas e pós-modernas, além de predominantemente urbanizadas, rumorosas e apressadas, não possuem ouvidos. Daí a importância da escuta. Não qualquer tipo de escuta, mas aquela que ademais de procurar ouvir o estranho e o diferente, tenta colocar-se no lugar do outro. Ver o mundo através de seu olhar.
Evidente que isso remete aos direitos e à dignidade de cada pessoa humana, como relembra a Doutrina Social da Igreja (DSI). Segundo esta, no coração de cada ser humano e no coração de cada cultura existem sementes do verbo de Deus. Partindo desse pressuposto, o migrante ao colocar-se em marcha, carrega consigo tais sementes. Torna-se profeta e protagonista de um amanhã recriado. Da mesma forma que o voo das aves fecunda as plantas para que produzam folhas, flores e frutos, o voo dos migrantes fecunda a cultura de outros povos, enriquecendo-a e enriquecendo a si mesmo com novos valores. Pôr-se a caminho, com a cara e a coragem, é fazer marchar a própria história da humanidade.
Na linha do que nos tem transmitido com insistência o Papa Francisco, o desafio está em passar da globalização da indiferença para a cultura do encontro, da acolhida, da abertura, do diálogo e da solidariedade. Um passo da multi-culturalidade à inter-culturalidade. Ou seja, não basta uma convivência pacífica com o “outro, o estrangeiro ou diferente”. É preciso superar esse estágio e ir além. Trata-se de estimular o intercâmbio de saberes, o confronto de ideias, o crescimento e enriquecimento recíprocos. Somente um encontro dessa natureza, embora permeado de tensões e conflitos, será capaz de depurar e purificar continuamente a cultura e os valores de toda e qualquer visão de mundo. Aqui também entram os direitos civis básicos, tais como educação, saúde, moradia, segurança alimentar, transporte, lazer, entre tantas outras coisas.
A expressão do quarto e último círculo, como bem sabemos, remete à Carta Encíclica Laudato Si’, publicada pelo Papa Francisco em maio de 2015. O título, aliás, é inspirado no canto de São Francisco de Assis “Louvado sejas, Senhor”! Hoje em dia, o tema do cuidado e da preservação do meio ambiente ganhou maior divulgação e familiaridade. Isso se deve, por um lado, aos esforços perseverantes dos movimentos ecológicos em todo mundo e, de outro, aos frequentes e insistentes alertas dos cientistas sobre os riscos da devastação e destruição dos ecossistemas. Ademais, muitos estudos e pesquisas, livros e livros, têm popularizado a temática. Na verdade, a população vai se dando conta de que ela afeta a todos e a cada um em particular.
Cada espécie da fauna ou da flora que se extingue no planeta empobrece a qualidade da própria vida humana. Percebemos sempre mais que todas as coisas, pessoas, relações e sistemas estão de tal forma interligados e entrelaçados que qualquer dano à natureza e ao meio ambiente mexe como todas as formas de vida, ou seja, com a biodiversidade. A consciência de um uso correto dos bens que o Criador colocou à disposição de todos cresce de forma positiva. Evidente que, neste caso, as responsabilidades são distintas e diferenciadas. No cuidado com o meio ambiente, faz-se relevante a contribuição de cada um, certo, mas é bem modesta a incidência das pessoas, famílias e organizações em geral, diante da gigantesca responsabilidade dos governos, empresas e dos representativos organismos internacionais.
Desde um ponto de vista religioso, e mais particularmente da tradição judaico-cristã, convém olhar com mais atenção a aliança que Deus estabelece com o Povo de Israel, através do patriarca Noé. “Deus disse: ‘este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vocês e todos os seres vivos que estão com vocês, para todas as gerações futuras’” (Gn 9,8-17). Simbolizada pelo arco-íris, a aliança sublinha duas dimensões indissociáveis: primeiro, a preocupação “com tudo o que vive sobre a face da terra”, segundo o cuidado com “as gerações futuras”. No projeto da criação, se por uma parte toda forma de vida deve ser preservada, por outra, essa rica e variada profusão da vida em suas manifestações deve ter continuidade pelos séculos futuros. Em vista desse plano, atenta contra a vida quem polui, contamina e devasta as águas (mar, rios, lagos e geleiras), o ar, as florestas e os diversos ecossistemas.
Para finalizar, digamos que no mundo antigo e medieval, prevalecia o teocentrismo. Deus era a referência última da verdade e do sentido da vida. O poder político não dispensava a benção dos representantes do sagrado. No mundo moderno, após a Revolução Industrial as revoluções de ordem política (Estados Unidos e França), a ciência e a razão humana substituíram o lugar do divino. Daí o antropocentrismo. Na administração das sociedades, em especial nos países do Ocidente, irá prevalecer o regime democrático, onde o poder emana “do povo, pelo povo e para o povo”. Para o futuro de médio ou longo prazo, quem sabe a terra, o planeta azul, enquanto fonte de água e berço da biodiversidade, passe a merecer um cuidado maior e a ocupar um lugar mais central, numa espécie de geocentrismo?!...
Como é fácil compreender, os quatro círculos dos itens acima representam não gavetas fechadas e incomunicáveis entre si, mas dimensões interligadas, complementares e indissociáveis. Isto é, a expansão em espiral de qualquer um deles implica a ampliação simultânea dos demais. Trata-se da mesma dinâmica do que o Papa Francisco vem chamando de “Igreja em saída”, ou seja, do processo da nova evangelização. De fato, como vimos anteriormente, na exata medida em que o “eu” cresce e amadurece, deixa o comodismo do berço, para ir ao encontro primeiro, do outro como grupo familiar e nuclear; segundo, da sociedade com seus direitos e deveres; terceiro, de uma maior consciência frente às exigências de preservação do planeta como fonte de vida. A superação de cada círculo se dá paralelamente aos demais.
De forma mais concreta e objetiva, a fronteira que aparentemente divide os círculos não passa de uma linha imaginária. A pessoa humana é um todo formado por suas diversas dimensões, expressões e manifestações. O autocuidado, que poderia nos induzir ao equívoco de egoísmo, egocentrismo ou hedonismo, na verdade desencadeia uma dinâmica de abertura que não terá mais limites. Desdobra-se contemporaneamente para o cuidado da relação com os outros, com os grupos sociais mais variados e distintos e com o planeta “mãe e fonte da vida”. O “eu” em crescimento e amadurecimento é, no fundo, um “eu” em saída. Um “eu” saudável, maduro e disposto à solidariedade para com o bem-estar de tudo e todos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As dimensões do cuidado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU