"Aqui, na terra, vivemos como condôminos, ou seja, vivemos junto com outros seres vivos, mesmo invisíveis, até tremendamente microscópicos, próximos e distantes, e o condomínio impõe regras de boa vizinhança. Ignorá-lo leva aos desastres que temos diante dos olhos desde o início de 2020 e a todos outros similares", escreve Nicola Gardini, escritor italiano, latinista e professor de Literatura Comparada, em artigo publicado por Domani, 31-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "nós, entretanto, acreditamos que somos mais fortes que nosso sistema imunológico. E vamos aonde não deveríamos ir: desmatamos, exploramos solos, destruímos habitats e, com isso, destruímos ordens e organizações naturais, e os vizinhos são forçados a vir para a nossa casa".
Qualquer crise - e aquelas sanitárias não são exceção - é, antes de tudo, uma crise de linguagem, ou seja, de nossa capacidade de falar do problema. E, da mesma forma como HIV não preparou minimamente a imaginação e a linguagem coletivas para o Covid, este Covid passará como um flagelo inútil. Não somos os donos do planeta em que habitamos. A atual pandemia deveria ter colocado isso em nossas cabeças de uma vez por todas. Aqui na terra vivemos como condôminos, ou seja, vivemos juntos com outros seres vivos, mesmo invisíveis, até tremendamente microscópicos, próximos e remotos, e o condomínio impõe regras de boa vizinhança.
Nunca esqueçamos: qualquer crise - e aquelas sanitárias não são exceção - é, antes de tudo, uma crise de linguagem, isto é, de nossa capacidade de falar do problema e, portanto, de compreendê-lo em vista de uma solução legítima.
Aqui continuamos a pescar no repertório de velhos clichês e a desperdiçar oportunidades de ouro, fazendo mal a nós mesmos e aos outros. Estou pensando principalmente nas metáforas de guerra. Ainda estamos nessas: a guerra, o inimigo, a invasão, o ataque, a defesa, as armas, as vítimas ...
Por que essas metáforas não funcionam? Porque não explicam nada e porque, como Susan Sontag advertia décadas atrás em dois ensaios ainda fundamentais (Doença como metáfora e AIDS e suas metáforas, publicados em 1978 e 1988), difundem imagens de ódio e destruição, que não só não servem para enfrentar a doença nem de maneira prática nem intelectual, mas também propagam uma visão mortífera e imperialista da realidade e das relações. Nem mesmo se aprende com análogos atuais como o HIV, que está presente em nossas sociedades pelo menos desde o início dos anos 1980: quase quarenta milhões de pessoas estão infectadas atualmente no mundo, e quase o mesmo número morreram desde o início.
Estranhamente (e eu sei bem, se olharmos os contextos sociopolíticos, que o advérbio está longe de ser preciso) essa outra pandemia, longe de acabar, já que quase quarenta anos depois do surto continua sem vacina, não me parece que tenha nos ensinado a falar de vírus, nem de relações humanas, nem dos equilíbrios que regem a esfera da vida, nem daquele princípio fundamental de respeito mútuo que regula a relação entre identidade e alteridade em qualquer sistema, biológico ou civil.
Em tantos meses de discursos sobre a infecção, jornalísticos ou não, raramente se ouviu falar deste titânico gêmeo, o vírus do HIV. Diante da nova infecção pelo coronavírus, as pessoas parecem ter caído das nuvens e não encontraram nada melhor do que ciscar em uma retórica cega. Infelizmente é assim. A partir do momento em que algo para de funcionar, nós apenas gritamos que é um drama, o tornamos absoluto; portanto, insistimos nos danos, enquanto eles são notícia; e as verdadeiras razões - científicas, culturais, espirituais, morais - são esquecidas o mais rápido possível, aliás, não se quer vê-las. E justamente como o HIV não preparou minimamente a imaginação e a linguagem coletivas para o Covid, assim este Covid passará como um flagelo inútil; ou, na melhor das hipóteses, uma questão política e econômica mal administrada e mal comunicada.
Falando em linguagem, por que os vírus são chamados assim? Retomar a história lexical pode ser não apenas uma forma de reler algumas boas passagens da literatura, mas pode nos ajudar a manter o discurso dentro de um âmbito cultural mais amplo e, sobretudo, histórico. Se os vírus são uma das grandes descobertas da biologia moderna, a palavra existe desde os tempos antigos e, sem dúvida, representa um dos casos mais afortunados de sobrevivência do latim de que se tenha notícia nas línguas modernas.
No ensino médio, quando começamos a adquirir os rudimentos do latim, o encontramos na pequena lista dos neutros da segunda declinação que não terminam em -um (apenas três). Aprende-se que significa "veneno". Seria, portanto, um sinônimo de “venenum” (este, sim, um neutro regular da segunda declinação). Na realidade, "vírus" é levado a vários matizes de significado, como evidenciado por centenas de passagens da latinidade clássica. Se indica certamente uma substância tóxica, vegetal ou animal, que te leva à morte, também é miasma, putrescência, algo apodrecido, exsudação purulenta, esperma de animal, hálito fedorento, água marinha, tintura de tecidos. Pode indicar um tipo de espuma, como a que goteja da lua por um encantamento de feitiçaria. Ou é o humor das éguas que serve como filtro do amor, o chamado "hipómane" (falam disso Virgílio, Ovídio e Plínio, o Velho). Ou é a doença dos cães raivosos (raiva, vejam a coincidência, ainda hoje é "vírus"). “Vírus” designa uma substância que fica entre o líquido e o aeriforme, ou é o resultado de decomposição. É algo transmissível e que se dissemina. Sem falar dos significados metafóricos recorrentes: "vírus" como corrupção moral, "vírus" como maledicência, "vírus" como calúnia e assim por diante, que, se já aparecem na literatura pagã, triunfam nas publicações cristãs.
É interessante notar, quando se computam as ocorrências mais significativas, que essa palavra tende a se especializar de acordo com o contexto. De fato, não tem um significado inicial definido. Seu destino semântico é parecido com o destino do microrganismo patogênico que a palavra passa a indicar a partir de 1893 (aparentemente por iniciativa do holandês Martinus W. Beijerinck, que também usa a perífrase latina "contagium vivum fluidum", "contágio vivo fluido" - vários anos depois que o russo Dmitry Ivanovsky descobriu que algumas doenças do tabaco da Crimeia eram devidas a organismos muito menores que as bactérias): aquele de se adaptar às circunstâncias, tomando consistência a partir de outras situações.
Columela, o bom escritor de temas agrícolas, atuante nas primeiras décadas do I século d.C., chama de "vírus" os depósitos tóxicos do linho e do grão-de-bico, ou o estado de decrepitude de um terreno, ou o ar estagnado dos pântanos. No poema de Lucano, a Farsália, o "vírus" é o protagonista de alguns acontecimentos memoráveis (se há um poeta viral, diria que é Lucano, um conhecido campeão do horror e do macabro): a pestilência que assola entre os tropas de Pompeu ("vírus" é o próprio contágio) e a ação das serpentes do deserto, que reduzem com sua picada os homens a poças de matéria estragada, "vírus", justamente (e "vírus" é, naturalmente, também o veneno dos répteis mortais). Dos autores clássicos, aquele que mais parece preferir a palavra é Plínio, o Velho, o grande enciclopedista, que morreu em 79 d.C. durante a erupção do Vesúvio. Em sua História Natural, a palavra ocorre várias dezenas de vezes, tendendo a significar "substância nociva" ou "mau cheiro".
Não somos os donos do planeta em que habitamos. A atual pandemia deveria ter colocado isso em nossas cabeças de uma vez por todas. Aqui, na terra, vivemos como condôminos, ou seja, vivemos junto com outros seres vivos, mesmo invisíveis, até tremendamente microscópicos, próximos e distantes, e o condomínio impõe regras de boa vizinhança. Ignorá-lo leva aos desastres que temos diante dos olhos desde o início de 2020 e a todos outros similares.
Não, a pandemia atual não é uma guerra, como se continua a repetir (brilhante exceção, o presidente Draghi, que deixou o linguajar militar de lado em seu discurso em Bergamo em 18 de março passado). As guerras, que não deveriam existir, são outra coisa, e pena que sejam usadas, oralmente ou por escrito, como modelo de outras situações e, em particular, desta atual. Estamos simplesmente no meio de uma disputa prodigiosa.
Não levamos em consideração o regulamento do condomínio e agora estamos tentando nos proteger de um vizinho muito irritado. Como? Em primeiro lugar, ficando trancados dentro de casa. A autorreclusão é, sem dúvida, uma medida prática. Mas, representa também a manobra mais emblemática que podemos inventar para nos dizer: aqui está, vamos voltar para o nosso lugar. Com isso, não quero dizer que se trancar dentro de casa deva ser a norma. “Ficar no nosso lugar” significa deixar claro que, onde quer que vamos ao redor do mundo, nossa esfera pessoal deve levar em conta a complexidade circundante.
Agora também estamos empenhados em colocar outro muro protetor ao nosso redor, a vacina. Precisamente: vacinar-se não é atirar com rifle ou jogar uma granada; é dar um duplo giro de chave na porta da nossa verdadeira casa, o sistema imunológico, que foi construído ao longo dos milênios para nos dar uma morada segura: aqui fico eu; o resto fica de fora. A subjetividade (o indivíduo!) é primeiramente um espaço biológico que, protegendo-se das intrusões, também protege cada um de nós de si mesmo, ou seja, de seu irresponsável desejo de ir além.
Nós, entretanto, acreditamos que somos mais fortes que nosso sistema imunológico. E vamos aonde não deveríamos ir: desmatamos, exploramos solos, destruímos habitats e, com isso, destruímos ordens e organizações naturais, e os vizinhos são forçados a vir para a nossa casa.
O panorama que nosso rápido passeio etimológico nos apresenta não é animador. O vírus, porém, como é justo entendê-lo hoje, não nos odeia. Ele não quer a nossa morte: ele quer sua própria vida. E ainda que, devorando as nossas células, possa nos levar à morte, no geral busca condições de convivência serena e estável, porque o nosso fim torna-se inevitavelmente o seu próprio fim. É preciso, portanto, que o condomínio aprenda a renegociar os espaços que pertencem a uns e a outros e a usar a língua com uma consciência mais aguda daquilo que, há muito tempo, está em jogo para a felicidade do planeta.