06 Abril 2021
"Em todos esses casos, o arrependimento veio tarde. Pesou e cortou na própria carne. A expectativa agora é saber em quais aventuras os barões vão se enfurnar em 2022, se as sessões de psicanálise terão que ser continuadas e ampliadas, ou se vão seguir as dicas mais elementares que constam em qualquer manual de redação, tipo ouvir todos os lados da questão, deixar o julgamento para a Justiça, praticar jornalismo investigativo, não divulgar factoides...", escreve Edelberto Behs, jornalista, que atuou na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil – IECLB de 1974 a 1993, como repórter e editor do Jornal Evangélico e depois como assessor de imprensa.
Até mesmo o mais qualificado profissional da psicanálise certamente terá dificuldades para decifrar a alma dos barões da imprensa brasileira e seu comportamento nos últimos 70 anos.
Sempre na defesa de interesses de uma elite econômica, mandachuva, retrógrada, mas com discursos de modernidade, de defesa da democracia e “interpretando a vontade” do povo, a grande imprensa colocou o governo Vargas contra a parede, apoiou o golpe cívico-militar de 1964, elegeu o caçador de marajás, incentivou o impedimento da presidenta Dilma Rousseff foi um sustentáculo da Lava Jato, ajudou a colocar Lula na cadeia, defendeu a candidatura de Jair Messias Bolsonaro no segundo turno e ... bem depois veio o arrependimento.
Em 70 anos não aprendeu nada sobre construção de uma nação mais justa e igualitária, de inserção autônoma no cenário político internacional, de políticas públicas que conferem saúde, segurança, educação qualificada para que a população possa bem se inserir no mercado de trabalho. A grande mídia parece estar sempre atenta para que o povo, que tanto ela diz defender, fique relegada a um gandula num campo de futebol.
O Globo, em editorial no dia 2 de abril de 1964, assinalava:
Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
E festejava depois:
- Ressurge a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente das vinculações políticas simpáticas ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é de essencial: a democracia, a lei e a ordem.
- Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.
Quais tradições? De aplicar golpes?
O Jornal do Brasil justificava, em editorial, no dia 1º de abril:
- Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada.
E arrematava:
- ...A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas.
Ou seja, não foi golpe!
A Folha de S. Paulo criticava, no dia 1º de abril, o discurso do presidente João Goulart proferido na Central do Brasil, no Rio, em 13 de março, anunciando reformas de base, seguindo um desejo “comunista”:
- Mais forte, porém, do que esse anúncio de benefícios salariais foi a insistência nas reformas de base, a reforma que nem o presidente nem os seus assessores até agora deram conteúdo. Usou delas, como tem repetidamente feito, pura e simplesmente como aríete contra a Constituição, que ele deseja reformar a qualquer preço [...] Não poderia faltar, é óbvio, o condimento do ataque aos privilegiados [...] todos aqueles brasileiros que lutam por situações democráticas e legais, pois estes é que são hoje os “privilegiados”, termo não à toa criado pelos filósofos comunistas que orientam as falas presidenciais [...]
As Organizações Globo, ao lado de militares, golpistas e “pessoas de bem”, levou 50 anos para reconhecer que errou ao apoiar o golpe de 1964. A Folha não foi tão longe, pois, afinal, admitiu que o governo ditatorial então instalado foi apenas uma “ditabranda”. Editoriais dos grandes jornalões deixaram evidente o apoio ao golpe cívico-militar. Cívico, justamente porque contou com a mão nem tão invisível do empresariado e bem tangível da imprensa.
O Correio da Manhã, do Rio, que saiu às ruas, dias 31 de março e 1º de abril, com dois editoriais impressos na capa do jornal, sob os títulos “Basta” e “Fora”, naquele texto pediu a saída do presidente João Goulart, e neste saudou a “revolução”. Dias depois não se sentia mais tão à vontade com os rumos do governo militar.
Os jornalões que em 1964 aplaudiram o golpe viram, com a introdução do Ato Institucional nº 5, em 1968, que tomaram o barco errado. O AI-5 estabelecia que a imprensa só podia divulgar a versão oficial sobre o combate ao terrorismo.
Depois veio a censura, com militares instalados em redações fazendo a leitura de notícias e reportagens, liberando sua publicação total, parcialmente, ou mandando-a para a lata do lixo. Os editores substituíam as matérias censuradas com a publicação de receitas de bolo, poemas, versos de Camões, versículos bíblicos, literatura de cordel, publicidade da própria casa... Para engrossar o caldo, em 1969 entrou em vigor a Lei de Segurança Nacional que botou em cana jornalistas que questionavam o governo.
Parecia que os barões da imprensa tinham aprendido a lição. Ledo engano. Empenharam-se para o Brasil eleger o caçador de marajás, uma lenda que não se sustentava ante a mais simples apuração do que ocorria em Alagoas, onde Fernando Collor de Mello foi governador. Depois, voltaram-se contra o seu candidato preferencial, quando ele foi guindado ao julgamento do Congresso por crimes contra a pátria.
Em 2002, não conseguiram impedir a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, mas infernizaram a vida do presidente, com questionamentos à política de cotas, à política econômica, aos investimentos para a Copa do Mundo. O PT errou no governo, sim, erros que a mídia destacou. Mas não só: a imprensa acolheu vazamentos, acriticamente, contra Lula ex-presidente, desmandos da Lava-Jato, como o envolvimento do juiz de primeira instância Sérgio Moro na condução de ações da “República de Curitiba”, sob o comando do terrivelmente evangélico (criador de powerpoints) Deltan Dallagnol.
O Globo foi o canal preferencial dos vazamentos promovidos por Sérgio Moro, inclusive grampeando a presidência da República, sob Dilma Rousseff, e até mesmo o escritório de advocacia da defesa de Lula. A suspeição de Moro foi julgada há dias pelo Supremo Tribunal Federal, o que resultou na anulação das “provas” (inexistentes) contra o réu, acusado de ser dono de um tríplex e de receber benefícios de construtoras na reforma de um sítio em troca de negociatas na Petrobras.
“Quanto tempo o Jornal Nacional gastaria se fosse Lula e não Moro que virasse sócio de uma empresa norte-americana que trabalha com a recuperação fiscal da Odebrecht, OAS, entre outras?” – perguntou Celeste Silveira do Portal Antropofagista. Como se trata do queridinho da Globo o envolvido no escândalo da Vaza-Jato, o baronato da casa se cala, sob o argumento de que as informações obtidas pelo The Intercept Brasil, que “vazou a Lava-Jato” tinham sido passadas por hacker. Como se a Globo não tivesse recebido de Moro e vazado inclusive conversas telefônicas de Marisa e os filhos. Então o vazamento sequer foi questionado.
A imprensa tem, muitas vezes, o péssimo papel de julgar a pessoa ou entidade acusada antes de o processo tramitar em julgado. Ela se antecipa à Justiça, como ocorreu no emblemático caso da Escola Base, de São Paulo. Os donos da escola infantil, acusados de abuso sexual de crianças, foram linchados pela imprensa, com base numa entrevista concedida pelo delegado do caso, mas sem apresentar provas. Ficou claro, depois, que não ocorreu qualquer abuso. Mas a essas alturas a escola já fora fechada e a vida dos proprietários da escola destroçada.
No campo político, para não ficar restrito ao PT, em 1998, Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso, passou a sofrer o que ele denominou de “linchamento da mídia”, acusado de desviar 169 milhões de reais das obras do Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. O esquema teve outros envolvidos, e Eduardo Jorge foi absolvido pela Justiça, mas não deixou barato. Moveu processo contra Veja, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense, O Globo, Estado de Minas e Jornal do Brasil. Recebeu indenização de todos os sete.
“Fiz isso para restaurar a minha honra, obter reparação e mostrar à imprensa que ela não pode noticiar dessa maneira”, disse para Geiza Martins, do Portal Consultor Jurídico. No geral, apontou, “a cobertura da mídia é sempre superficial, preconceituosa, apressada”. De todos os veículos processados, “a IstoÉ e a Folha de S. Paulo foram os mais escandalosos, os menos verazes, os que levaram mais longe a coisa”. A absolvição do acusado não mereceu manchete, “deram noticinha, escondida”, relatou.
Mesmo com todo esse histórico, a imprensa continua sua peregrinação acusatória de acordo com sabores políticos-ideológicos, não raro sem qualquer fundamento ou sustentação legal. Como interpretar o “super castigo” aplicado às pedaladas do governo da presidenta Dilma Rousseff? O que importava, e ainda interessa, é criar um clima antipetismo, assim que para muitos brasileiros e brasileiras o ex-presidente Lula é o maior ladrão da história do país. Provas?
O jornalista Reinaldo Azevedo, que mais bateu no PT nos 13 anos de governo, colunista do programa “O É da Coisa”, desafiou Moro, juízes do TRF4, e a quem quisesse, a apresentarem as provas que constam na peça condenatória contra Lula. Até agora ninguém se pronunciou. Se você tiver provas, leve-as até ele.
Por acaso alguma ONG, organização que trabalha com estatísticas, pesquisa histórica ou até mesmo a imprensa desenvolveu um “corruptômetro” para concluir que o PT foi o partido que mais roubou no Brasil? Brasileiros têm memória curta. Durante a construção de Brasília, quantas denúncias apareceram de superfaturamento de obras?
Já estão mais do que esquecidos os casos Banestado, anos 90, Capemi, ocorrido durante o regime que dizem por aí “quando não existia corrupção”, Montepio da Família Militar, Coroa-Brastel, Ferrovia Norte-Sul.
Mesmo assim, os barões preferiram apoiar um capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, e agora procuram um psicanalista para purgar o seu apoio à eleição de Jair Messias Bolsonaro. Esse político, deputado do baixo clero, que não teve um projeto apresentado em 28 anos de legislatura que tivesse repercussão nacional. Ainda assim, foi o escolhido pela “grande” imprensa para conduzir a nação.
No período da ditadura, o arrependimento apareceu depois de cinco anos de governo militar. Agora, com Bolsonaro, a “barrigada” foi sentida em dois anos de bolsonicadas. Notem o editorial da Folha de S. Paulo do dia 12 de dezembro de 2020:
- Passou de todos os limites a estupidez assassina do presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia de coronavírus. É hora de deixar de lado a irresponsabilidade delinquente, de ao menos fingir capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva. Chega de molecagem com a vacina!
Em 2 de abril de 2021, o Estadão dizia em editorial:
- O Brasil chegou ao ponto em que é urgente deixar de dar ouvidos ao que diz o presidente da República. Jair Bolsonaro se tornou em si mesmo um ruído que desnorteia os brasileiros sobre como devem se comportar diante da pandemia de covid-19, que no momento mata mais de 3 mil pessoas por dia no País.
E mais adiante:
- Nem se deve perder tempo corrigindo as bobagens de Bolsonaro acerca do estado de sítio e do direito de ir e vir. O mais grave é a reiteração de declarações que prejudicam todo o trabalho de esclarecimento da população sobre os cuidados a serem tomados para evitar a covid-19.
Basta acompanhar por meia hora a programação de colunistas da GloboNews para ver a troca de chave das organizações Globo antes do pleito eleitoral para agora.
Jornais que preferiram Bolsonaro ao candidato do PT à presidência da República destacam em editoriais e reportagens o caos em que o Brasil está mergulhado no campo da Saúde, da Economia, do Meio Ambiente, da Educação, das Relações Exteriores. Em suas páginas pedem, não, apoiam, ou quiçá imploram, o afastamento de Bolsonaro da presidência da República.
Em todos esses casos, o arrependimento veio tarde. Pesou e cortou na própria carne. A expectativa agora é saber em quais aventuras os barões vão se enfurnar em 2022, se as sessões de psicanálise terão que ser continuadas e ampliadas, ou se vão seguir as dicas mais elementares que constam em qualquer manual de redação, tipo ouvir todos os lados da questão, deixar o julgamento para a Justiça, praticar jornalismo investigativo, não divulgar factoides...
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Barões da imprensa no divã da psicanálise. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU