"A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento", escreve César Kuzma no presente artigo. E continua: "É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude."
Cesar Kuzma é teólogo leigo, doutor em teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia. Ele é o atual presidente da SOTER. Ele participou do Ciclo de Conferências da Páscoa IHU 2021 “A questão do mal e do sofrimento no mundo (pós)pandêmico à luz do mistério pascal” proferindo a conferência intitulada "A teologia da cruz e a esperança cristã num mundo pandêmico. Contribuição teológica de J. Moltmann"
No momento em que celebramos esta semana santa e nela fazemos a memória da Paixão de Jesus, vivemos, enquanto país, um dos momentos mais difíceis e dolorosos da nossa história. A pandemia da Covid-19, que já nos assombra há um ano, parece não dar espaço e avança fortemente pelo nosso território, de casa em casa, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, deixando marcas profundas em nossas famílias e ceifando vidas por onde passa. Dia após dia, os números aumentam drasticamente, e a morte, com força, bate a nossa porta. A pandemia já não é algo distante que acompanhamos pelas redes sociais e pela televisão, ela se faz bem próxima e nela perdemos amigos, parentes, pessoas do nosso convívio, pessoas que tinham um nome, uma família, uma razão e uma história. Passado um ano, todos somos afetados por ela, de uma forma ou de outra. Na ausência de respostas, buscamos perguntas; no silêncio e na dor, buscamos um sentido, uma razão, um porquê.
Há uma semana, o Brasil superou o triste recorde de 300 mil mortes e ultrapassou em 12 milhões o número de pessoas que já foram infectadas. Em plena semana santa, na vigília da Paixão, chegamos perto de 4 mil mortes diárias, com mais de 320 mil mortes no total, numa onda crescente, que segue rápida e que nos assusta. Segundo alguns analistas, estamos muito perto do limite de um não retorno, e isso é profundamente preocupante. Assumimos a triste marca de sermos o epicentro da pandemia, pois somos o país em que se concentram mais casos, mais contaminações, mais mortes e onde o surgimento de novas variantes do coronavírus arrisca fazer desta tragédia algo ainda maior em nível global. As fronteiras vão sendo fechadas para o Brasil e vamos ficando completamente isolados de tudo e de todos. Por falta de diplomacia da parte brasileira e pelo negacionismo assumido, as vacinas não chegam na proporção desejada e o volume de pessoas vacinadas parece ser insuficiente para frear os dados da Covid.
Não bastassem estes dados, vivemos o colapso do nosso sistema de saúde, a falta de insumos e produtos médicos e hospitalares, a falta de oxigênio e um total despreparo dos órgãos federais do governo, em especial no executivo, no Ministério da Saúde, um desrespeito, podemos dizer, um verdadeiro descaso para com a vida humana, principalmente para com aqueles que são mais pobres e vulneráveis e que são, portanto, mais dependentes de políticas públicas. O Brasil, hoje, sofre e se torna vítima de um vírus letal e sofre ainda mais pela irresponsabilidade de um governo que apostou em um projeto de morte, um governo que, desde o início, ironizou o problema, banalizou o mal e fez a aposta no caos. De forma impotente, vimos pessoas sofrendo, morrendo nas UPAs e hospitais, sem vagas em UTIs, outras agonizavam em ambulâncias a espera de um leito hospitalar, enquanto o governo, na pessoa do presidente, incentivava aglomerações e criticava o uso de máscaras e de métodos de prevenção e proteção. Vimos o esforço de médicos e profissionais da saúde, no arriscar da própria vida, enquanto o governo negava a ciência e induzia a população a consumir medicamentos sem eficácia e sem comprovação científica. Vimos o esforço da pesquisa em produzir vacinas capazes de salvar vidas, enquanto isso soubemos que o governo brasileiro, por meio do presidente da República, recusou a compra das mesmas e não assumiu a imunização da população como uma prioridade.
Depois de um ano de pandemia, muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitos abraços poderiam ainda ser esperados e muitos olhares poderiam seguir existindo, mas os homens da morte partiram com tudo e fizeram e seguem fazendo as suas vítimas, vítimas que avançam para o caminho de um calvário doloroso, cruel e que parece não ter fim. São os Pilatos e Herodes de ontem e de hoje, que lavam as mãos, que zombam de quem sofre e jogam o povo à própria sorte, cercados por aqueles que riem de quem agoniza na cruz desta pandemia. É o que se vê nas aglomerações, nas festas clandestinas e naqueles que seguem com a indiferença e levam a vida como se o mal (pandêmico) não existisse e não os tocasse diretamente, seguem com as viagens, os passeios, as praias, com o consumo, com a indiferença que mata e que deixa a outros sofrerem ainda mais. Somos vendidos por outras trinta moedas, engolidos por um mercado que parece querer a sua vez e se diz mais importante que a vida, já que a economia não pode parar; e, mais uma vez, o caminho que temos é o caminho da cruz, do abandono, do sofrimento, do isolamento e da morte, das novas cruzes de nosso tempo, um tempo pandêmico.
Frente a esta situação, não existem respostas prontas, mas tentativas de entendimento e de aproximação, propostas que nos fazem olhar para nós mesmos, para a nossa condição de fé e com ela, a partir dela, buscar um espaço de vida e de esperança. Nas linhas que seguem, mesmo que de forma breve, queremos oferecer uma reflexão a partir da teologia de Jürgen Moltmann, que pela sua teologia da cruz nos fala de esperança e nos possibilita um entendimento e uma atenção.
Moltmann é um teólogo que, em sua juventude, viveu de perto o sofrimento causado pela Segunda Guerra Mundial e fez daquele espaço de medo um caminho para um espaço vasto e aberto para a presença de Deus, capaz de gerar vida, futuro e esperança. Não como uma fuga da realidade e da história, mas de modo a enfrentar os dramas e as tramas de nossa existência e no convite para a construção de uma nova sociedade, onde todos possam fazer parte e a justiça reine e traga a paz.
Em 1964, Moltmann escreve o livro “Teologia da esperança” e, por ele, oferece um novo entendimento da escatologia cristã, como crítica da história e como proposta antecipatória de um Reino que se abre e nos convida a um futuro novo. O chamado de um Deus promitente nos convida à ação, à missão, à missão da esperança.
Nesta obra, a atenção se concentrava no ressuscitado e como que ele inaugurava este novo tempo. A esperança entra como força ativa e mobiliza toda a ação. Em 1972, em um desenvolvimento de sua teologia, Moltmann nos apresenta uma segunda obra, com um olhar mais crítico à teologia, à sociedade e à postura das igrejas cristãs frente a esta sociedade. Abre caminho para um discernimento político e dá atenção ao sofrimento presente, que é sentido pelo próprio Deus que, em Cristo, assume toda a condição humana. Se na primeira obra a atenção estava mais para o ressuscitado (da cruz para a ressurreição), o olhar teológico agora se concentra na cruz do crucificado (da ressurreição para a cruz), no caminho que a antecede e que é marcado por opções concretas, realizadas pelo homem de Nazaré em favor da justiça e dos últimos da história.
Nesta obra, chamada “O Deus crucificado”, Moltmann abre diálogo com as teologias da libertação que surgiam naquele momento e traz para a sua reflexão teológica uma percepção mais crítica, mais atenta a realidades que nos interpelam e nos questionam nas dimensões humanas, políticas e de fé.
Não iremos aqui trazer um panorama completo da teologia de Jürgen Moltmann. De certa forma, já fiz isso em meu livro de 2014 e que é fruto de minha tese doutoral (O futuro de Deus na missão da esperança, Paulinas). Moltmann é um autor muito estudado, de grande abertura ecumênica e não é difícil encontrar textos e estudos a seu respeito. De modo recente, indico também as obras de Alonso Gonçalves (Jürgen Moltmann e a teologia pública no Brasil, Garimpo, 2017) e de Rogério Guimarães de A. Cunha (A escatologia do amor: a esperança na compreensão trinitária de Deus em Jürgen Moltmann, Vozes, 2020), que tratam de aspectos atuais e centrais no pensamento do autor.
Nossa intenção aqui é aproximar a teologia que ele propõe do cenário pandêmico que nós nos encontramos e verificar se esta expressão teológica pode nos oferecer caminhos de discernimento e de orientação. É evidente que os contextos são diferentes e que o discurso produzido por Moltmann não foi direcionado para esta pandemia. Estamos diante de algo novo, algo que nos interroga e que vai marcar o caminho da humanidade. Contudo, olhando a sua noção de esperança, o modo contextual como desenvolve o seu pensamento, a percepção de Deus em meio ao sofrimento humano e a sua teologia crítica da cruz, entendemos que sim é possível propor um espaço de diálogo e de aproximação; contribuições a partir de seu pensamento.
Isso nos leva a começar com perguntas, com questionamentos, a fim de perceber o quanto e de que forma esta realidade pandêmica nos interpela e de que forma a teologia da cruz de Moltmann pode nos ajudar nesta reflexão. Diante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta semana santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?
Cada vida perdida é uma perda da humanidade, uma chaga que se abre, uma ferida aberta em uma sociedade que não consegue encontrar caminhos de sobrevivência e de resistência, de amor e solidariedade. Diante do sofrimento e mortes prematuras e injustas, usamos aqui uma frase do teólogo Gustavo Gutiérrez (2000, p. 19), tirada de seu livro “Beber em seu próprio poço”, e perguntamos com ele: “como cantar quando a dor de um povo parece sufocar dentro do peito?”. Gutiérrez faz este questionamento na Páscoa de 1983, o que nos leva hoje, em meio a Páscoa de 2021, seguir pela mesma intenção. Nós nos interrogamos: como viver quando nossos irmãos e irmãs padecem em leitos de hospitais, na espera em ambulâncias, morrendo em silêncio, no escuro, sem ar, sem vida, sem afeto e carinho? Como sobreviver quando outros padecem? Como esperar na ressurreição, se a nossa frente só vemos dor, sofrimento e morte? Entre as cruzes e as esperanças, como posicionar a nossa fé e a nossa reflexão sobre ela?
Neste espaço difícil e solitário, muitos são os Cireneus que aparecem no caminho, pessoas que se aproximam e estendem a mão, de modo livre e solidário. São pessoas que tentam oferecer um pouco de vida em meio a morte e que na estrada gritam e passam a esperar por aqueles que já não têm mais forças nem esperança. No entanto, eles não podem ir até o final, eles apenas caminham conosco e nos acompanham por uma parte do caminho, dividem o peso da nossa cruz, mas também a sua força é limitada. O destino de quem padece é isolado, solitário, doloroso, silencioso e de morte. No abandono da vida e na indiferença que mata, clamamos como Jesus na cruz: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Clamamos ainda: por que fomos abandonados por aqueles que deveriam nos ajudar, nos cuidar e nos salvar?... É claro que não há o abandono daqueles que nos amam, embora possamos sentir como se ele existisse.
O que temos é a impotência, o limite divino-humano diante do mal que nos arranca todas as forças e que nos faz sentir como se estivéssemos sós. Sentimos e choramos, sofremos e nos entregamos a um fim que parece estar perto e que nos amedronta. Da mesma forma aqueles que nos amam e da mesma forma os profissionais da saúde, que mesmo na impotência frente a este mal, no limite do que podem fazer, se entregam totalmente, se fazem solidários, seguram a mão de quem está só e tentam fazer com que cada segundo possa ser pulsado como um sinal de vida e esperança, um sinal de amor e de entrega total. Também eles sofrem, também eles se sentem sozinhos e impotentes diante de uma doença que domina e faz com que a morte siga mais perto.
Esta pandemia nos fez perceber pessoas e espaços entre as cruzes, pois todos somos vítimas e todos somos tocados por este estado de dor que nos deixa impotentes, sem ação, com medo, sem razão e sem voz. Há aqueles que padecem e há aqueles que padecem com eles. Há aqueles que morrem e há aqueles que morrem com eles, numa relação que revela a humanidade e a amplitude dos limites e das relações existentes entre nós. Se, por um lado, sofremos o descaso do Estado, tomado pela arrogância e com pessoas insensíveis diante da morte, por outro lado, as atitudes daqueles que se entregam e se doam aos outros fazem com que possamos perceber que a vida ainda resiste, que a esperança insiste e que o amor persiste. Em seu livro, O Deus crucificado, Moltmann dirá que “através dessa dor desperta um amor que não pode ser mais indiferente a tudo, mas que procura o outro, o feio, o indigno de amor para amá-lo. Na dor, cessa aquela apatia, na qual tudo é desinteressante, porque, na dor, sempre há o encontro com o igual e com o conhecido” (2011, p. 62). Esta pandemia nos possibilitou o encontro com a humanidade, com os limites do humano. Ela desperta o pior e o melhor de nós, e a cruz, ao ser sentida em meio ao limite humano, favorece o encontro que pode libertar e nos conduz a uma nova humanidade, na sensibilidade, na solidariedade, na entrega, na vida.
Esta é uma tese central na teologia da cruz de Moltmann, que é o grito do Cristo abandonado que soa como um grito de todos os abandonados da história, das vítimas de nosso tempo. Este grito, ao ser refletido por Moltmann, questiona a nossa imagem de Deus, a nossa percepção do Cristo e nossa atitude enquanto humanidade e igreja. Neste momento pandêmico, quando morte e solidão se entrecruzam, esta é uma percepção válida e ela nos faz olhar com profundidade a esta questão. Que Deus buscamos e a que Deus clamamos? Que Cristo esperamos? E que Igreja somos, que humanidade construímos e fazemos parte? Muitos são os abandonados, muitas são as vítimas, muitas são as cruzes que se enfileiram nesta pandemia e que acusam a nossa falta de amor e de sentimento para com o outro, de quem deveríamos nos fazer próximos. A cruz, de que fala Moltmann, não deve ser adorada e não deve ser sinal de conformação. Não se assume o sofrimento passivamente, mas ativamente, na luta para superá-lo e no enfrentamento do mal que nos ameaça. A cruz nos abraça e no abraço nos acolhe. Tudo aponta para ela, toda dor, todo pecado, todo o mal, todo sofrimento; tudo aponta para a cruz, mas a cruz transcende para a vida e aponta para a ressurreição. A cruz nos faz olhar a nós mesmos e nos convida a percorrer o caminho daquele que deu à cruz um sentido novo, que fez da justiça a causa de um Reino, que no amor nos reuniu e que na esperança nos libertou para uma vida que se faz sempre nova. A cruz nos consola, mas também nos liberta e nos convida a protestar contra toda a injustiça. Na cruz protestamos contra os agentes do mal, contra o poder que oprime e exigimos vida e liberdade.
Sobre este ponto, fizemos uma reflexão em nosso livro (O futuro de Deus na missão da esperança), que reproduzimos abaixo:
[...] para compreender um Deus que seja solidário com o sofrimento humano, Moltmann nos convida a observar a atitude depositada pelo homem de Nazaré. Nesta atitude, Jesus (Deus-Homem) não olhava o outro apenas como outro, não o via como alguém estranho a si mesmo, mas sim se aproximava dele, tornando-se próximo, colocando-se junto, ao lado, sendo solidário (cf. Lc 10,25-37). Nisso consiste a atitude cristã que decorre da prática de Jesus. Aí ele é solidário, e também sofredor, pois faz da nossa vida algo importante a ele, vive-a em seu ser, sofre conosco, é solidário. Por isso nos liberta e por isso nos redime e nos salva. É a obra do amor, que é participativo e convidativo, que enche de esperança (2014, p. 89).
Nesta citação acima, temos o olhar e a ação solidária de Jesus, ao assumir a dor e o sofrimento, que indica, consequentemente, como deve ser a nossa ação e atitude cristãs, a nossa postura frente a este tempo que nos interpela e nos convida a um momento novo. Esta percepção se faz presente na teologia da cruz de Moltmann, pois a cruz, de Cristo, torna-se ponto de interrogação para as igrejas cristãs, para a prática que assumem e para a postura que se deve ter frente ao mal presente na sociedade. Na cruz mostramos a identidade e a relevância de nossa fé. Ao sermos interrogados pela cruz, poderemos perceber se estamos pertos ou distantes da prática de Jesus e se a nossa atitude humana-cristã é capaz de produzir vida e esperança. Em meio ao tempo pandêmico que estamos vivendo, onde os prédios eclesiásticos se tornam vazios e quando todos somos convidados a um novo entendimento do ser cristão, do ser Igreja, esta provocação feita por Moltmann ganha toda relevância. A cruz da Igreja nem sempre se assemelha a cruz de Jesus, principalmente quando a Igreja (e sua cruz) insistem em se manter firmes em um mundo que padece e agoniza no sofrimento. A cruz pela cruz se torna vazia de conteúdo e significado.
A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento. É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude.
Mas a cruz não é fim em si mesma. Ela pertence a história, ao tempo, ela está ligada a este mundo. Por esta razão todas as dores, sofrimentos, doenças, pecados e morte apontam para a cruz. Mas a cruz recebe tudo isso e transforma em vida, em ressurreição, abre o tempo para um espaço novo. Este é o sentido da Páscoa e este é o fundamento da nossa esperança. Não se trata de ignorar a cruz e o sofrimento, mas ao assumi-los criticamente, tentar ver além deles, no desabrochar de uma vida que não pode ser vencida, onde a morte já não existe e o sorriso enxuga toda lágrima. A vigília da semana santa nos faz recordar os passos de Jesus, seu caminho e proposta, sua práxis e opções e meditar com ele a experiência da cruz. Cruz que é consequência de uma vida, de uma vocação assumida e que traz a nós um espaço de liberdade. Mas a vigília da semana santa, onde o pão é repartido e a paixão é assumida, tem o sábado da espera, do silêncio, do tempo que irrompe e que abre a Páscoa da ressurreição. Este é o sentido e é aqui que repousa toda esperança.
É desta forma que devemos entender este tempo pandêmico, quando a dor e a morte batem a nossa porta e aqueles que nos são próximos, aqueles que amamos são levados e se tornam estatísticas de uma triste realidade. Nunca serão esquecidos e nunca esqueceremos. A experiência da cruz não nos deixará passivos frente a esta dor, mas nos dará forças para resistir e enfrentar. Aquele que morreu solitário também se fez solidário para que ninguém se sinta solitário e que aprendamos, com ele, a viver de modo solidário, levando vida e esperança para todos. As muitas mortes que temos, as muitas cruzes que vemos questionam a nossa vida e a nossa sociedade. Que possamos viver, resistir e sentir. A esperança é mais. Na linha teológica de Moltmann, ele dirá que a teologia da cruz não nos apresenta um Deus morto, mas um Deus que se fez vida, que se fez pão, que se fez justiça, que se entregou a todos e que se fez solidário. A teologia da cruz nos convida à fraternidade com o Deus de Jesus Cristo, ao encontro do crucificado-ressuscitado, na abertura ao Espírito que nos renova e nos liberta e reacende em nós a chama da esperança.
Entre as cruzes e esperanças vemos um Deus que nos liberta e que nos enche de sentido.