25 Março 2021
Foi "de dentro da bolha" que Michele Prado acompanhou o surgimento do bolsonarismo nas redes sociais. Antipetista e sempre alinhada à direita, a microempresária e pesquisadora participa de discussões políticas na internet e se identifica como influenciadora digital desde meados dos anos 2000 – antes mesmo de Facebook e Twitter serem populares no Brasil.
Ao longo desse percurso, Prado se distanciou do extremismo que observava, cada vez mais radical. E passou a se aproveitar desse papel de espectadora privilegiada para tentar compreender o fenômeno.
Desde o fim de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, ela passou a sistematizar uma pesquisa sobre o tema, que agora resulta no livro Tempestade ideológica – bolsonarismo: a alt-right e o populismo i-liberal no Brasil, lançamento da editora Lux.
Para seu trabalho, a influenciadora de direita consultou mais de 2 mil títulos, entre livros e artigos acadêmicos sobre o assunto, e confrontou essa bibliografia com o que via, em tempo real, nas bolhas bolsonaristas. Por fim, ela crava, sem dúvidas: "As principais pautas, retóricas e métodos [do bolsonarismo] são todos inspirados na extrema direita e na direita radical internacional."
Em entrevista à DW Brasil, Prado lamenta a gestão do governo federal na pandemia de covid-19, culpa o negacionismo pelos resultados atingidos, mas diz que a postura de Bolsonaro é apenas coerente com essas ideologias de extrema direita.
"Sem dúvida, se não tivéssemos um extremista no poder, muitas vidas poderiam ter sido salvas. Centenas de milhares", afirma. "O presidente e sua militância sabotam, de todas as formas possíveis, todos os esforços para o combate à pandemia que foram propostos e sugeridos por profissionais da ciência, agentes sanitários e prefeitos e governadores."
Ao longo de um ano de pandemia, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, combateu medidas de isolamento social, promoveu curas sem eficácia, criticou a vacina e tentou sabotar iniciativas paralelas de vacinação e combate à doença lançadas por governadores e prefeitos em resposta à inércia do seu governo na área.
Nesta quarta-feira (24/03), sob forte pressão em meio ao colapso sanitário e após mais um recorde de mortes por covid-19, Bolsonaro finalmente anunciou a criação de um comitê para coordenar as ações de enfrentamento à pandemia.
A entrevista é de Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 24-03-2021.
Como surgiu o interesse em pesquisar a extrema direita no Brasil?
Minha pesquisa começou para valer no fim de 2018, de forma independente, por curiosidade intelectual particular. Eu queria compreender o que de fato estava acontecendo na direita e o que era, realmente, o bolsonarismo. As análises que eu lia sempre pareciam que mantinham inclinações ideológicas, à direita e à esquerda, ou deixavam muitas pontas soltas.
Assim que comecei as pesquisas, eu observava de dentro da bolha da direita que, durante anos, havia acontecido um processo de esvaziamento do termo "extrema direita". De um lado, a esquerda categorizava toda a direita como a extrema direita; por outro lado, muitos influenciadores da direita se esforçavam para esvaziar ainda mais o termo. Dessa forma, no início eu queria compreender a radicalização da qual fui espectadora, mas não tinha ainda conhecimento teórico embasado a respeito do extremismo de direita. Conforme fui aprofundando nas pesquisas, se tornou inevitável estudar sobre a extrema direita para compreender a respeito do bolsonarismo.
Foram dois anos de muita leitura sobre temas variados […], conversas muito produtivas com alguns especialistas de fora do Brasil e observação dos discursos nas redes sociais a partir de dentro da bolha.
Você se identifica como antipetista e integrante da direita democrática, certo?
Isso. E liberal de acordo com os conceitos mesmo do liberalismo, não à essa redução que radicais fizeram de relacionar o termo liberal apenas ao espectro econômico.
Você votou em Bolsonaro?
Votei no segundo turno, infelizmente. Fiquei na dúvida entre o nulo e o voto mas decidi por votar para evitar mais um mandato do PT, apesar de todos os receios que eu sempre deixava explícito. Sem querer me eximir de minha responsabilidade, eu esperava que os formadores de opinião da direita seriam tão críticos quanto o eram diante do governo petista, até porque sempre se colocaram como virtuosos e teoricamente contra o populismo como modelo de governo. Errei na análise. A maior parte deles não apenas já eram radicais como foram fundamentais no processo de radicalização aqui no Brasil. E também a maior parte se tornou 100% propagandista bolsonarista.
Quando você se tornou oposição ao atual governo?
A partir do primeiro mês após as eleições, ao observar mais retóricas e comportamentos cada vez mais execráveis dos bolsonaristas em geral, eu fiquei ainda mais crítica e oposicionista. No dia da posse, escrevi um texto criticando a presença de Carlos Bolsonaro no carro presidencial e o discurso da primeira-dama. A meu ver, [isso] era imiscuir a vida privada com a coisa pública. Passei a ser ainda mais atacada pelas hordas digitais bolsonaristas.
Fui a primeira pessoa na direita a denunciar os ataques coordenados para constranger e calar os críticos, e de novo sofri assédio virtual. Até que mais pessoas, incluindo ex-apoiadores, começaram a perceber aquilo que eu denunciava e também a se tornar alvos.
Diferenças eu sempre tive [em relação aos apoiadores de Bolsonaro]. E sempre afirmei publicamente nas minhas redes sociais. A radicalização começou há muitos anos e eu sempre ficava preocupada e profundamente incomodada com aquilo que eu assistia ocorrer. Então eu denunciava e sofria ataques virtuais.
Meu candidato ideal para 2018 seria Henrique Meirelles. No entanto, quando ele não subiu nas pesquisas no dia das eleições, votei no primeiro turno em João Amoedo para apoiar o projeto do [Partido] Novo – que, com o tempo, foi radicalizado pelo bolsonarismo.
Como você analisa o bolsonarismo?
É um movimento de massa, populista e de extrema direita. Houve um longo processo de radicalização […], essencialmente online, que saiu das redes e culminou na eleição de Jair Bolsonaro. Suas principais pautas, retóricas e métodos são todos inspirados na extrema direita e direita radical internacional. E não é um movimento apenas local. É transnacional. Buscam uma ordem autocrática, antiliberal. Uma ruptura institucional, centralização de poder no Executivo e sem compromissos com princípios de uma democracia liberal: separação de Poderes, Estado de direito, proteção às minorias, respeito às liberdades individuais e imprensa livre.
E qual sua análise de Bolsonaro no combate à pandemia?
A postura do presidente é coerente com a extrema direita e as retóricas que alimentam essa ideologia antiliberal: a teoria do antiglobalismo, por exemplo, faz com que o presidente não respeite sugestões de organismos e agências supranacionais, como a Organização Mundial da Saúde. Soma-se o fato da essência de Bolsonaro, um populismo autoritário. [Ele] precisa alimentar a criação de inimigos sistematicamente: ora a China, ora uma suposta elite má, um grande complô marxista ou a criação de inimigos imaginários na própria oposição doméstica, como prefeitos e governadores. Existe um ecossistema digital muito forte que retroalimenta essas narrativas e muitos radicais que chegaram à imprensa mainstream e criam um processo de legitimação dessas teorias.
Sem dúvida, se não tivéssemos um extremista no poder, muitas vidas poderiam ter sido salvas. Centenas de milhares. O presidente e sua militância sabotam, de todas as formas possíveis, todos os esforços para o combate à pandemia que foram propostos e sugeridos por profissionais da ciência, agentes sanitários e prefeitos e governadores.
Você acredita que o bolsonarismo ainda resistirá às eleições de 2022?
Eu tenho a impressão de que ele [Jair Bolsonaro] tentará uma ruptura [institucional]. E com certeza veremos situações semelhantes aos acontecimentos nos Estados Unidos [com a recusa de Donald Trump em aceitar a derrota nas eleições e a invasão do Capitólio]. Caso ocorra uma real coalizão de democratas, talvez seja possível que ele [Bolsonaro] não chegue ao segundo turno. Assim espero.
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"Sem um extremista no poder, muitas vidas poderiam ter sido salvas" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU