Umas das principais contradições da pandemia do coronavírus é de tornar protagonistas pessoas que não expõem seus nomes, seus rostos ou tampouco podem sair à praça pública. As narrativas mais importantes para salvaguardar a vida, sobretudo no Brasil, não estão sobre as grandes lideranças políticas e econômicas, mas naqueles que com prudência sustentam em seus lares, famílias e locais de trabalho a esperança de superar a crise e as mortes.
No dia 19 de março celebra-se o dia do “santo de todos esses anônimos”. Neste ano, a data é especial, pois o Papa Francisco anunciou que de 08 de dezembro de 2020 a 08 de dezembro de 2021 estava proclamado o ano de São José, em comemoração ao 150º aniversário da Declaração de São José como Padroeiro da Igreja Universal.
Em razão desta festa, selecionamos nesta página alguns dos diversos conteúdos publicados pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU sobre José.
"Meu bom José", por Rita Lee. Versão original é do cantor e compositor George Moustakis, "Mon vieux Joseph"
Na carta apostólica Patris Corde, Francisco destacou a importância de celebrar a vida de José em meio à pandemia. José é pouco anunciado nas Escrituras, mas citado no papel crucial de proteção e acompanhamento ao de Jesus e Maria, bem como no discernimento e paciência sobre os caminhos a serem tomados. Para o Papa, as vidas “sustentadas pelas pessoas comuns, habitualmente esquecidas” podem encontrar em São José “um intercessor, um amparo e uma guia nos momentos de dificuldade”. O papel de José é semelhante aos inúmeros anônimos que se doam neste tempo de pandemia: “aparentemente escondidos têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação”.
O jornalista italiano Andrea Tornielli relata, nesta reportagem publicada pelo IHU, como o Papa Bento XVI, na festa de São José de 2006, também fez a lembrança da ação responsável de José mesmo no ocultamento: “a grandeza de São José, junto com Maria, ressalta ainda mais porque sua missão foi desempenhada na humildade e no ocultamento da casa de Nazaré”.
O teólogo Leonardo Boff, que é autor do livro São José: a personificação do Pai (Petrópolis: Vozes, 2005), relata, em artigo publicado pelo IHU, que, por séculos, José foi esquecido da história oficial da Igreja, mesmo que em Evangelhos apócrifos sua história tenha sido marcada como uma verdadeira paternidade e cuidado para com Jesus e Maria. O único anúncio de “protagonismo” partiria justamente de Jesus, conforme sublinha Boff do Evangelho apócrifo de José, o Carpinteiro: "Quando fordes revestidos de minha força e receberdes o Espírito Paráclito e fordes enviados a pregar o evangelho, pregai também a respeito de meu querido pai José".
Em outra celebração de São José, em 2017, o Papa Francisco ressalta que o santo “pode nos dizer muito, mas não fala, é o homem escondido, que tem a maior autoridade naquele momento, sem demonstrá-la”. Um homem que sabe da sua missão, mas não a exalta, tampouco exacerba qualquer traço de masculinidade autocentrada: “É o homem que não fala, mas obedece. O homem da ternura, o homem capaz de levar adiante as promessas para que se tornem firmes, seguras. O homem que garante a estabilidade do Reino de Deus, a paternidade de Deus, a nossa filiação como filhos de Deus”. O Papa gosta de pensar nele “como guardião das fraquezas, das nossas fraquezas: é capaz de fazer nascer muitas coisas bonitas das nossas fraquezas e inclusive dos nossos pecados”.
Em outra citação a São José, na comemoração de 1º de maio, Dia do Trabalhador, Francisco recorda como é o exercício de poder à luz da vida do santo: “Não nos esqueçamos nunca de que o verdadeiro poder é o serviço e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar cada vez mais nesse serviço que tem sua fonte luminosa na Cruz; deve ser o serviço humilde, concreto, rico da fé de São José”.
Outra relação da vida de José ao tempo pandêmico pode ser feita pelo recolhimento familiar e a centralidade do núcleo familiar como resguardo de segurança. Não obstante, as contradições da sociedade patriarcal sobrecarregaram o papel da mulher na obrigação do cuidado do lar e provocou a muitas um isolamento com seus próprios agressores. A figura de José pode ser a inspiração de superação do patriarcalismo, da masculinidade e da paternidade violenta, tendo em vista um novo homem, “capaz de acreditar em sua mulher, se converter, e, nesse sentido, ser um verdadeiro pai”, como descreve o teólogo basco Xabier Pikaza, em artigo publicado pelo IHU.
Vitral de José com o menino Jesus, enquanto Maria, a mãe, descansa. Foto: Gregory Shemitz | CNS
Mais que a confiança e a conversão, José foi suporte para sua família – “não um pai brando, mas forte e amoroso”, afirma Pikaza. Essa postura é, como descreve Leonardo Boff entrevista concedida ao IHU, é a inspiração necessária para os dias de hoje:
“Ele nos oferece algumas virtudes, como pais da acolhida e pais da coragem criativa, pois muitos estão desamparados e com grande abatimento a ponto de entregar os pontos. Precisamos de pais que acolhem os desamparados e que tenham coragem para iniciativas em sua rua e bairro para atender aqueles que não têm condições de se defender, como ocorreu exemplarmente no bairro Paraisópolis em São Paulo e na favela da Maré no Rio de Janeiro”.
Gilberto Gil e George Moustakis cantam "Mon vieux Joseph"
O padre Nelito Dornelas, em seu último artigo publicado pelo IHU, em dezembro de 2020, descreveu o compromisso de José como a própria personificação do Deus-Pai: “a figura mais adequada para receber em sua vida a encarnação do Pai que também veio morar conosco, podendo ser apresentado como a personificação do Pai celeste. Assim temos a família divina encarnada na família humana. A totalidade do mistério da Santíssima Trindade entrou em nossa história e a santificou. São José é parte desta entrega total do Deus-família à família humana”.
O Papa Francisco descreve o José-pai com sete virtudes: pai amável, pai de ternura, pai de obediência, pai de acolhida, pai de coragem criativa, pai trabalhador, pai na sombra. Em sua oração, o papa roga: “A vós, Deus confiou o seu Filho; em vós, Maria depositou a sua confiança; convosco, Cristo tornou-Se homem. Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós”.
"São José". Poema de Pedro Casaldáliga, musicado por Zé Vicente.
"São José, o carpinteiro", de George de la Tour (1640). Fonte: Wikicommons
José não é apenas o padroeiro da Igreja Universal, mas também, o Carpinteiro, o Operário, o santo dos trabalhadores, como frisa Leonardo Boff:
“Ele é um representante da 'gente boa', da 'gente humilde', sepultados em seu dia a dia cinzento, ganhando a vida com muito trabalho e suor e levando honradamente suas famílias pelos caminhos da honradez, da solidariedade e do amor. Orientam-se mais pelo sentimento profundo de Deus que por doutrinas teológicas sobre Deus. Para eles, como para José, Deus não é um problema, mas uma luz poderosa para os problemas”.
E esse é o traço popular de José, reconhecido há pouco pela Igreja, mas já presente na devoção popular, destaca Boff: “A bem da verdade, ele ficou quase esquecido pela Igreja oficial. Mas o povo guardou-lhe a memória, pondo o nome de José a seus filhos, a cidades e a ruas e a escolas. Ele é o símbolo dos sem-nome, dos sem-poder, dos operários e da Igreja dos anônimos”.
O padre Alfredo J. Gonçalves recorda a prudência e a coragem de José em migrar para salvar sua família. Para ele, “José não deixa de ser, também, a fisionomia da migração”. Para Alfredo, a fuga para o Egito teria sido apenas um dos recorrentes deslocamentos para acompanhar a missão de Jesus, comparando à história de milhões de pessoas que incessantemente seguem em movimento para salvarem suas vidas:
“Não é essa a trajetória de inúmeros migrantes? De tribulação em tribulação, de fuga em fuga, de sonho em sonho, de busca em busca... Sempre perseguindo o futuro, e este como que sempre lhes escapando entre os dedos. Josés, milhões de pessoas sem terra nem lugar, sem rumo nem pátria... Josés a caminho! Josés que, por sê-lo, vivem inquietos e irrequietos. Rompem obstáculos e fronteiras, abrindo com os ombros curvados os horizontes de um novo amanhã. É nome comum de um povo acostumado à estrada. Não costuma figurar entre as famílias milionárias, nobres e aristocráticas, assentadas solidamente sobre suas fortalezas e suas jazidas de ouro e prata”.
"A fuga para o Egito", arte atribuída a Rembrandt. Fonte: Wikicommons
A devoção a São José tem um significado especial no nordeste do Brasil. A figura de José que levou sua família ao exílio é também refletido nos milhares de retirantes que fogem da seca, mas também uma marca para os que ficam ou sonham em retornar. O dia de São José, 19 de março, é a data da esperança da chuva. A pedra de sal posta ao relento é para muitas famílias o sinal de se as próximas semanas serão de fertilidade ou mais aridez.
Na cultura popular brasileira essa devoção é retratada em diferentes canções. Em “Triste Partida”, poesia de Patativa do Assaré, e musicada por Luiz Gonzaga, o eu lírico retirante conta os meses de seca e a esperança da chegada do mês de março sob a bênção de José.
“Apela pra março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
(Meu Deus, meu Deus)”
A esperança da chuva também é cantada em forma de oração, como na interpretação de Maria Bethânia:
“Meu divino São José
Aqui estou a vossos pés
Dai-nos chuva com abundância
Meu divino São José”
Festa de São José, o padroeiro do Ceará, em Maracanaú. Foto: Prefeitura de Maracanaú
Fragmento da obra "José e a Encarnação de Deus", de Beate Heinen.
São José é um dos santos que Francisco “mais faz trabalhar”, como relata Andrea Tornielli nesta reportagem publicada pelo IHU. A imagem de São José dormindo foi uma das poucas levadas de Buenos Aires ao Vaticano por Bergoglio, e sob ela, o papa deposita “bilhetinhos” com pedidos de graça.
O Papa Francisco, em homilia de 18 de dezembro de 2018, ressaltava também a transposição do José, que procurava no abstrato, nos sonhos, a orientação e guia para as ações terrenas – para si e sua família: “Deus muitas vezes escolheu falar nos sonhos. E o fez muitas vezes, na Bíblia se vê, não? Nos sonhos. Mas José era o homem dos sonhos, mas não era um sonhador, não tinha fantasias. Um sonhador é outra coisa: é aquele que crê… vai… está no ar e não tem os pés no chão. José tinha os pés no chão”.
A esperança que nascia com Jesus foi cuidada pelas mãos de José. A mesma esperança que o santo desperta nos atingidos pela seca. Com o seu silêncio, como reflete Andrea Monda, neste artigo publicado pelo IHU, protegeu em uma gruta de Belém, "a graça do Natal, os cristãos têm a tarefa de se alimentar daquela luz e transmiti-la, contá-la, possivelmente sem que perca seu frescor, sem degradar a sua força, sem desperdiçar o seu perfume. Edith Stein falava de profetas e santos. Talvez a estes possamos acrescentar os poetas: precisamos destas pessoas, humildes instrumentos de 'algo' maior, para captar o bem que opera no mundo e contá-lo, colocando-o de volta em circulação. Assim fez São José, o escondido carpinteiro, poeta e sonhador de Nazaré".
O teólogo Patrik Bruno Furquim dos Santos, em artigo publicado pelo Cadernos IHU Ideias, em análisa da narrativa do Evangelho apócrifo de José, o Carpinteiro, compreende que na morte de José, Jesus confirma a esperança do Reino dos Céus e a sua devoção: “Percebe-se que a devoção a José está estritamente ligada à opção pelos mais pobres. Compartilhar alimento com os que não têm o que comer é fazer o Reino de Deus acontecer no meio de nós [...] Jesus Cristo eleva o nome de seu pai José e promete abençoar, especificamente os pobres, com segurança aquele que honrar o nome de seu pai José [...] Tais capítulos da narrativa apontam em direção de que a esperança cristã tem que ser vivida diariamente como algo concreto dos cristãos”.
José é a contradição entre a discrição e intensidade, homem de poucas palavras, mas que pelo discernimento, e ações seguras se expandiu em uma diversidade de imagens, e sobretudo por ter “confiado na salvação do mundo que vinha do ventre de Maria”, como destaca Maureen McCann Waldron, neste artigo de 2014. Recordá-lo em meio à hecatombe do coronavírus e praticar o cuidado e a prudência a seu exemplo, pode reacender mais um sinal de esperança, já afirmava.
Como Francisco descreveu naquela homilia de dezembro de 2018, a conversão de José nasceu dos seus sonhos, e com os pés no chão, também hoje se pode: “sonhar sobre nossa família, sobre nossos filhos, sobre nossos pais. Sonhar como sonham os jovens, que são ‘descarados’ no sonhar, e ali encontram um caminho. Não perder a capacidade de sonhar, porque sonhar é abrir as portas ao futuro. Ser fecundos no futuro”.