02 Março 2021
María Neira, diretora de saúde e meio ambiente da Organização Mundial da Saúde – OMS, está na linha de frente de combate à epidemia do coronavírus. “Às vezes, tive uma sensação de incredulidade, ao pensar: ‘isto não pode estar acontecendo, logo sairemos desta...!’. E, em seguida, há também momentos de reflexão sobre a irracionalidade em certas coisas”, confidencia.
Neira tem consciência do muito que resta a fazer para melhorar a saúde. “Nós nos protegemos diante de uma doença infecciosa, mas não somos capazes de parar de fumar, e morrem mais de 7 milhões de pessoas de forma prematura pela poluição”, diz em uma conversa telefônica, de Genebra.
A entrevista é de Antonio Cerrillo, publicada por La Vanguardia, 01-03-2021. A tradução é do Cepat.
Qual é a origem do coronavírus SARS-CoV-2 e da pandemia?
Há várias hipóteses, mas o mais provável é que seja uma doença transmitida por algum animal, que seja uma doença de origem zoonótica. Agora, será necessário ver como foi transmitida, o que aconteceu, como circulou.
Algum dia, saberemos?
Tudo isso levará tempo, mas acredito que estamos avançando em boa direção, mas não no sentido detetivesco, pensando que será fácil encontrar uma pista e que, com isso, já conseguiremos compor todo o quebra-cabeça. Levará tempo, mas cada vez sabemos mais, e sobretudo sabemos que devemos ir a fundo. Precisamos saber como chegamos até aqui. E nesse ponto a parte ambiental desempenha um papel fundamental, que não deve ser desconsiderado.
Com quais hipóteses se trabalha? Existem várias, não?
A primeira, conforme disse, é sobretudo que a origem seja zoonótica, que tenha sido transmitido de um animal, de uma espécie de uma reserva para um humano. A segunda é que exista uma espécie de animal hóspede intermediário, que ainda não sabemos qual é. Também se trabalha com a possibilidade de que tenha havido a participação da cadeia alimentar, sobretudo, um produto congelado. Mas não pelo produto em si, mas pelo papel que sua superfície poderia desempenhar na transmissão. A última é um incidente em um laboratório.
E qual considera a mais provável?
No momento, a que parece mais provável é a introdução através de uma espécie animal intermediária ou diretamente que seja uma origem zoonótica. É a principal via para a qual todos os investigadores se dirigem.
Os ecólogos também entraram neste debate. Estão preocupados com a “saúde” do planeta. A saúde já não é somente uma preocupação de médicos ou epidemiologistas. São caminhos paralelos?
São caminhos que não deveriam ser paralelos, mas convergentes. Efetivamente, esse triângulo que chamamos “One Health”, uma saúde, tem a ver com a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. Não se sabe onde começa uma e onde começa outra. Sabemos que há algumas interconexões fundamentais.
Muitas vezes, a ruptura dessa barreira entre o animal e o humano também tem a ver com um estresse ambiental que provocou mudanças, de forma que os vírus que estavam confinados, mas que já estavam aí, encontram melhores condições para ser transmitidos por meio de um animal intermediário.
A pandemia também foi relacionada ao desmatamento.
O desmatamento é um desses elos porque tem a ver com esse estresse ambiental que mencionei, com esses maus-tratos aos quais estamos submetendo nossos ecossistemas, com essa perda de biodiversidade e a destruição dos ecossistemas que, ao final, são os que nos dão de comer, de beber e nos permitem respirar.
Precisamos dar fim a esse mito segundo o qual se ocupar da ecologia é algo próprio apenas de setores ambientalistas e ecologistas e à margem do interesse geral. Vivemos em ecossistemas, não é aceitável que todas as coisas que tocamos, poluímos ou destruímos. Pelo nosso próprio interesse, não devemos ir por esse caminho.
Não há pois uma saúde humana independente da saúde do planeta... Isso significa que disciplinas que pareciam antagônicas deveriam caminhar de mãos dadas, não é?
Sim, é isto. Falamos dessas três peças do quebra-cabeça: saúde animal, saúde das pessoas e saúde ambiental. Vivemos em um ambiente comum. Nós nos alimentamos do animal e, muitas vezes, utilizamos produtos, como agrotóxicos ou fertilizantes, para que a terra nos dê alimentos em certas condições muito destrutivas para o meio ambiente e, ao final, geramos mudanças que afetam a nossa saúde, que no fundo é muito vulnerável.
Às vezes, pensamos que somos os reis do planeta, a espécie que confere a si todos os privilégios e os direitos. E talvez possa ser assim, mas desde que, em troca, reconheçamos que não se deve pisotear o chão onde você está colhendo os seus tomates. Vai contra toda a lógica...
Os focos de poluição e risco de doenças infecciosas também estão relacionados com os mercados de fauna selvagem destinados à venda de carne para o consumo humano, muito populares na China. A OMS considera que este é um ponto sobre o qual convém agir?
É evidente que existem muitas (dessas) práticas, e não só na China. Neste momento, os mercados animais selvagens não estão regulamentados. E isso não acontece só na China. Reforçar esses níveis de segurança alimentar é fundamental para a saúde de todos. O controle da compra e venda de animais procedentes de mercados de fauna selvagem é algo que deve ser reforçado e mudado. Mas também devem mudar práticas agrícolas muito intensivas e muito poluentes, que fazem com que esses animais saiam de seu habitat normal e entre mais em contato com o homem.
Precisamos corrigir o uso indiscriminado de antibióticos para a produção de animais de consumo em granjas... No momento, falamos de vírus, mas as bactérias também estão aí, e estamos ficando sem antibióticos, por causa desse uso excessivo e abusivo. Estamos diante de uma agressividade na produção de alimentos que devemos revisar. Temos que revisar todo o ciclo produtivo, de consumo e de eliminação de resíduos.
Está preocupada com a possibilidade de uma outra pandemia? O que podemos fazer para preveni-la?
Claro que pode ocorrer. Se revisarmos os documentos da OMS de mais de 20 anos atrás, de alguma maneira este cenário já era concebido. Tivemos sorte, porque ocorreram princípios de pandemias antes. Temos aí a AIDS e a gripe, que também matam todos os anos. Não esqueçamos que vivemos em um mundo de vírus e bactérias.
É necessário entender quais são as barreiras que nos permitem ter alguns habitats bem conservados para reduzir ao mínimo possível os riscos e nossa vulnerabilidade. E isso supõe que, além de reforçar todos os sistemas de vigilância epidemiológica, com trocas de informação, melhoras na detecção de epidemias e das doenças emergentes infecciosas, devemos ir além, adentrar nessa origem. Nisto, são importantes as prescrições que a OMS lançou em um manifesto “Recuperação saudável e verde pós-covid”.
Qual seria a primeira?
Devemos recuperar uma correta relação com o meio ambiente, ou seja, deixar de destruir, de poluir e de eliminar a biodiversidade e os ecossistemas, porque, obviamente, ao final, isto se volta contra nós. Mais de 70% dos últimos surtos de doenças infecciosas emergentes têm a ver com o salto de uma doença zoonótica para o humano, ao produzir a ruptura da barreira homem/animal pela alteração das condições ambientais.
E a segunda?
Em segundo lugar, devemos fornecer serviços básicos de saúde a toda a humanidade, e falo de coisas muito básicas como água e eletricidade. Há centros de saúde que não têm acesso à água potável, nem a saneamento, e isso ocorre em meio a uma pandemia, na qual uma das recomendações mais básicas é lavar as mãos.
Para mais da metade do planeta, lavar as mãos não é fácil. Em 40% dos centros de saúde da África subsaariana não há acesso a saneamento e a sabão. Daí podem surgir muitas doenças infecciosas. Falta de água potável, doenças diarreicas, abuso de antibióticos...
Como o modelo energético influi neste problema de saúde?
Devemos mudar as fontes de energia. Precisamos abrir mão dos combustíveis fósseis, deixar de queimar, fazemos combustão de tudo. E essa queima de combustíveis fósseis supõe, entre outras coisas, mais de 7 milhões de mortes prematuras, como resultado da poluição do ar. Essa combustão vai parar no ar e, depois, nós inalamos essas partículas, e não vão apenas para os nossos pulmões, vão para o resto do organismo.
Devemos acelerar essa transição energética?
Indiscutivelmente, devemos acelerar essa transição energética o quanto antes, pois, além disso, irá gerar muito emprego. São gerados quatro empregos para cada emprego nas energias fósseis, que, além disso, são finitas. Quanto mais rápido ocorrer essa transição para as energias limpas, melhor. Disporemos de uma barreira fundamental frente à poluição.
Os combustíveis fósseis estão destruindo o meio ambiente, mas, ao mesmo tempo, destroem nossos pulmões, nosso cérebro e nosso sistema cardiovascular. E também outra recomendação da OMS, mesmo que não pareça, em favor de nossa saúde: temos que deixar de pagar incentivos aos combustíveis fósseis. Basta!
Por quê?
Esse é um péssimo investimento, sobretudo levando em consideração que são destinados 400 bilhões de dólares para subsídios aos combustíveis fósseis e, depois, ao mundo, custa 5 trilhões de dólares absorver o custo sanitário das doenças causadas por esses combustíveis. Não é um bom investimento. Não ajudará em nada na recuperação econômica. Agora que os países estão dedicando grandes quantidades de dinheiro para a recuperação, temos que garantir que esses fundos estejam em uma direção saudável e verde. Caso contrário, voltaremos a cometer os mesmos erros que se voltarão contra a nossa saúde, que é muito vulnerável.
Também me falou da necessidade de mudar o modo de produção de alimentos...
Devemos pensar mais em nosso modo de produção, de consumo e de geração de resíduos. Precisamos buscar um sistema de produção de alimentos sustentável, do início ao fim. Racionalizar esse uso de agrotóxicos. Um terço desses alimentos são jogados. Precisamos de alimentos produzidos localmente para que não contribuam com a geração de gases do efeito estufa no transporte e outros.
É uma mudança de modelo...
É necessário um modelo mais racional e sobretudo um planejamento do tipo de alimentos que produzimos. Pensar onde, com que custo e como alimentar uma população que cresce cada vez mais.
Falamos de um problema global...
É um absurdo pensar que despejar milhares de milhões de toneladas de resíduos de plástico que acabam nos oceanos não terá consequências. Isso acaba em alguma parte e iremos comê-lo. Fazendo a comparação com um cartão de crédito de plástico, no mundo, cada cidadão, em média, come um cartão por semana. São substâncias poluídas.
Não é bom ter oceanos poluídos. Não é bom ter o ar poluído. Podemos inverter o argumento: ‘Você acha que é bom que o ar e a água estejam poluídos?’ ‘Não’. Então, trabalhemos em um sentido mais positivo e de autoproteção.
Vivemos em cidades e normalmente não são o melhor aliado para a saúde.
Uma das razões pelas quais somos vulneráveis às epidemias é porque vivemos em grandes núcleos com muita população, nos quais a transmissão de doenças obviamente é mais rápida que em um núcleo rural, onde as pessoas vivem mais afastadas. E acredito que as cidades também precisam abordar a transição para um planejamento saudável. Isso seria fundamental para evitar a poluição do ar.
Como?
As cidades devem melhorar as condições de habitabilidade. Devemos almejar ser cidadãos, não pedestres. E nos falta muito. Se em 20 anos, 70% da população humana viverão em uma cidade, teremos um problema se não administrarmos as cidades de outra forma. É preciso pensar em seu modelo energético, de transporte público, como administramos os resíduos.
Você acompanha muito de perto as conferências do clima...
As prescrições da OMS são de fato uma contribuição à luta contra a mudança climática, algo relevante em um ano em que será celebrada a conferência do clima de Glasgow, em novembro. Caso o tratado de Paris sobre a mudança climática seja colocado em marcha de forma ambiciosa, estaremos diante de um grande avanço para a saúde pública, porque todo o seu conteúdo vai na linha de proteger a saúde. Tudo isso deriva das medidas para mitigar a mudança climática.
O que foi bem feito na pandemia?
Na Espanha, fizemos bem em ter um sistema de saúde público de cobertura sanitária pública e gratuita. É preciso melhorá-lo, mas tem que ser valorizado. Acredito que também demos o papel que a ciência merece, que deixou de estar em laboratórios obscuros e à sombra. Espero que se complete o reconhecimento social que merece.
Se não queremos nos flagelar, devemos investir em pesquisa e ciência. O país que fizer a transição energética e investir em pesquisa, será o país ganhador. Também vimos que os cidadãos demonstraram o lado mais nobre e deram bons exemplos de solidariedade, mesmo que também tenhamos visto exemplos de como surgiu o mais irracional do gênero humano.
Vimos um negacionismo, como uma expressão política relevante nos Estados Unidos, no Brasil e até mesmo em setores da Espanha. Pessoas que se negam a colocar a máscara...
Ainda que prestemos muita atenção nestes comportamentos, acredito que representam uma parte pequena. Fico com o comportamento de cientistas que colaboraram com grande generosidade, sem precedentes, e com exemplos de solidariedade incríveis. A parte ruim dos humanos sempre surgirá, em qualquer circunstância, mas a outra face pode mais. Mas é verdade que não deveríamos polarizar ou politizar as coisas. Devemos estar abertos a um debate social, presidido pelo imperativo do bem comum.
E nesta lista de prescrições da OMS, o que a indústria alimentar pode fazer? Pode fazer muito mais pela nossa saúde? A indústria agrária evoluiu em um sentido industrial e hiperprodutivista.
Se a indústria alimentar souber aproveitar a lição de tudo isso, e acredito que aproveitará, prestigiará quem produz esses alimentos, valorizará o camponês, o sitiante. É preciso retornar ao básico, à origem de onde vem as coisas, de onde são produzidas. A indústria alimentar pode agora se propor como objetivo proteger a saúde, proporcionando alimentos que sejam saudáveis e menos caros.
Agora, se você deseja comer comida menos cara, precisa comer comida muito processada. A indústria deve se apresentar, acredito, como quem protege o setor primário e lhe dá as oportunidades de nos oferecer o melhor e contribui para forjar esse modelo sustentável. É por aí que as coisas devem ir e acredito que estão compreendendo. A alimentação é a base de tudo. Não esqueçamos que estão aumentando os lucros no setor da alimentação.
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“Mais de 70% dos surtos infecciosos de doenças emergentes são de origem animal”. Entrevista com María Neira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU