25 Fevereiro 2021
"A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Ao mundo dos sócios temos que fazer valer o mundo dos irmãos e das irmãs. Esta é proposta inovadora, um verdadeiro novo paradigma civilizacional do Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti: um modo de habitar a Casa Comum", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro.
A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa lógica cria continuamente tensões, conflitos e guerras. E provocou a intrusão do Covid-19 que encontrou num presidente “um Trump dos grotões” que a considerou uma “gripezinha” e assim se dispensou de cuidar do povo, assistindo sem qualquer empatia à morte de mais de 240 mil vítimas, para escândalo nacional e internacional.
Dos 3.400 anos de história da humanidade, que podemos datar, diz-nos o historiador Georg Weber, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 não foram certamente de paz, mas de preparação para outra guerra.
Praticamente em todos os países as festas nacionais, seus heróis e os monumentos das praças são ligados a feitos de guerra. Os meios de comunicação levam ao paroxismo e magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado no programa noturno de uma das televisões sob o título “Tela Quente”. E para vexame geral nosso presidente defende a tortura dos tempos da ditadura militar e exalta torturadores sanguinários.
Nos vários países, o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Conta mais o rico empresário da Fiesp do que o pobre homem de Deus, que cuida da população de rua e, só por isso, sempre ameaçado de morte: o padre Júlio Lancellotti. Nos processos de socialização formal e informal, a cultura da violência não cria mediações para uma cultura da paz, do diálogo e da fraternidade universal.
Esta situação faz suscitar sempre de novo a pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein colocou a Sigmund Freud nos idos de 1932: é possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar diretamente o instinto de morte (thánatos). Pode, entretanto, percorrer vias indiretas. Tudo o que faz surgir laços emotivos entre os seres humanos age contra a guerra. Tudo o que civiliza, trabalha contra a guerra”. Mas conclui com uma forma resignada: “esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”(Obras completas III: 3, 215).
Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam fortes estruturas que rompem os possíveis laços de fraternidade. Se não as controlarmos, se torna verdade o que Thomas Hobbes sustenta em seu Levitã (1561): o ser humano é lobo para o outro ser humano.
A primeira estrutura é o caos sempre presente no processo cosmogênico e antropogênico. Somos todos filhos e filhas do caos primordial, daquela imensa explosão silenciosa, o big bang que ocorreu há 13,7 bilhões de anos. A expansão e a evolução do universo constituem uma forma de criar ordem (cosmos) neste caos e não permitir que seja só caótico, mas que seja também generativo. Ele gera novos corpos celestes, galáxias, estrelas e buracos negros. Mesmo assim o caos e o cosmos (novas ordens) sempre acompanham evolução do universo. Ele atua também no ser humano, fazendo que seja simultaneamente amoroso e violento, luz e sombra.
Essa estrutura de caos produziu cerca de cinco grandes dizimações em massa de seres vivos, ocorridas há milhões de anos. Na última, há cerca de 67 milhões de anos, pereceram todos os dinossauros. Possivelmente a própria inteligência também nos foi dada para limitar a ação destrutiva do caos e potencializarmos sua ação generativa de novas ordens.
Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou, há mais de dez séculos, a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições assentadas sobre o uso legítimo da violência pelo Estado, mas presente no exército, na guerra, nas classes, no projeto da tecnociência posto a serviço dos processos de produção que implicam uma sistemática depredação da natureza e uma desumana injustiça social.
Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal usou da repressão, do medo, do terror e da guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, explorando a força do trabalho humano e devastando a natureza. Seu objetivo é o lucro e não a vida, sua lógica é a competição e não a cooperação, o individualismo e não a interdependência entre todos. Sua dinâmica excludente origina desigualdades, injustiças, violências que ceifam milhares e até milhões de vidas humanas. A intrusão do Covid-19 impôs a todos uma pausa nessa voracidade pois tudo teve que parar, a produção e a circulação dos seres humanos, sujeitos ao confinamento social. Limou os dentes do lobo, mas não lhe tirou a ferocidade. Os especuladores acumulam fortunas fantásticas agravando a desigualdade social.
Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da dominação e da violência, atitudes contrárias a qualquer tipo de fraternidade. Elas nos desumanizam a todos, fazendo-nos no dizer da encíclica do Papa Francisco Fratelli tutti, não mais irmãos e irmãs, mas apenas sócios ao redor de interesses pessoais ou corporativos (cf.n.12;101). Não basta sermos a favor da paz. Temos que ser contra a guerra e no Brasil denunciar a ausência de um projeto oficial para deter o Covid-19, tornando o seu principal responsável, o chefe da nação “um gendarme da burguesia”, que não cuida das vidas de seu povo e não mostra empatia para com as famílias e pessoas que perderam entes queridos, como se tivesse feito uma lobotomia.
A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Ao mundo dos sócios temos que fazer valer o mundo dos irmãos e das irmãs. Esta é proposta inovadora, um verdadeiro novo paradigma civilizacional do Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti: um modo de habitar a Casa Comum, como frater irmão e irmã, na qual vigora uma fraternidade sem fronteiras entre os humanos e também com os demais seres da natureza da qual é parte, em contraposição ao paradigma da modernidade assentado sobre o dominus, o ser humano como senhor e dono da natureza e não parte dela.
Tal proposta é imperativa, porque as forças de destruição já por séculos romperam o contrato natural com a Terra e a natureza e estão ameaçando, por todas as partes, quebrar o contrato social mínimo pela ascensão da direita e da extrema direita que não respeita as leis e a Constituição criando um Estado pós-democrático e sem lei (R.R. Casara). É imperativa esta proposta papal porque o potencial destrutivo, em termos de armas de destruição em massa já montado, mais o aquecimento global pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da fraternidade universal, do amor social e da paz perene, como o proclama de forma entre angustiada e esperançada o atual Pontífice, ou conheceremos, no limite, um caminho sem retorno. A decisão cabe à nossa geração.
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Hoje conta mais o banqueiro que o bom Pe. Júlio Lancellotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU