“O cristianismo cumprirá uma nova função no mundo que está por nascer”. Entrevista especial com Marcel Gauchet

Num tempo de incertezas e de transição epocal, recuperamos a entrevista publicada em 2004, que ainda conserva questões pertinentes ao nosso tempo, como os desafios e as respostas que o cristianismo é capaz de dar até hoje

Foto: Cathopic

08 Janeiro 2021

Ainda na primeira década dos anos 2000, o mundo se acostumava com a popularização da informática, da internet e do mundo online. Vivia-se uma transformação, ainda sem saber muito bem aonde chegar, com profundas implicações éticas, sociais, econômicas e políticas. Esse era o contexto em que, no número 128, em 20 de dezembro de 2004, a revista IHU On-Line publicou a entrevista com o filósofo e historiador Marcel Gauchet. À época, o desafio era buscar entender que respostas o cristianismo era capaz de dar ao mundo moderno em constantes transformações. “Do ponto de vista europeu, o século XXI se anuncia como o século da marginalização social e política do cristianismo. Mas uma marginalização que abre ao cristianismo a possibilidade de jogar um papel espiritual e moral muito importante”, avaliou Gauchet.

 

Mesmo agora, quando já entramos na segunda década dos anos 2000, em que a informática e as revoluções tecnológicas já parecem ser algo constante e inerente à sociedade pós-moderna, os pontos levantados por Gauchet parecem ainda mais atuais. Afinal, de fato, em meio a tantas transformações e outras crises que vêm eclodindo, de 2004 para 2020 parece realmente que o cristianismo vem sofrendo uma certa marginalização. No entanto, temos visto como resposta a essa ação uma reação que flerta com o conservadorismo mais radical. “Seguramente, o fundamentalismo vai continuar a fazer muito barulho durante o século XXI, mas o verdadeiro problema está além. Trata-se de saber o que as religiões em geral e o cristianismo em particular podem aportar às sociedades que elas não dominam nem organizam mais”, já anteviu o pensador.

 

Para Gauchet, esse não pode ser o caminho. “O cristianismo só poderá continuar exercendo um papel significativo no futuro se ele renunciar à vontade de controlar a sociedade e a política”, apontou. “Ele não tem mais recursos para isso, mesmo lá onde ele aparece, ainda, com muita força. Está sendo chamado para uma outra função no mundo que está por nascer”.

 

Por fim, ainda inspira a pensar nas relações com instituições dos estados modernos, como a democracia, com a secular tradição judaico-cristã. “A democracia não inventou tudo. Mas ela realiza as aspirações que existiam antes e isso faz uma grande diferença”, observou. Ele vai além e considera que “aceitar a democracia significa não só admitir o pluralismo das religiões, mas admitir que não há uma ordem social cristã, que não há uma política cristã, que Deus não se ocupa escrevendo constituições”. Afinal, compreende que “democracia significa a liberdade dos homens de definir as regras do mundo, eventualmente baseadas em convicções religiosas, mas sabendo muito bem que são convicções humanas”.

 

Marcel Gauchet (Foto: Dissent Magazine)

Marcel Gauchet é historiador, filósofo e sociólogo francês, professor emérito do Centre de recherches politiques Raymond Aron na École des Hautes Études en Sciences Sociales e redator-chefe do periódico Le Débat. Tem produzido obras sobre questões como as consequências políticas do individualismo moderno, a relação entre religião e democracia e os dilemas da globalização. Entre suas inúmeras publicações, destacamos Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion (Paris: Gallimard, 1985), La Religion dans la démocratie. Parcours de la laicité (Paris: Gallimard, 2001), La Démocratie contre elle-même (Paris: Gallimard, 2002), La Condition Historique (Paris: Stock, 2003). Ainda com Luc-Ferry, publicou o livro Le religieux après la religion (Paris: Grasset, 2004) e Un monde désenchanté? (Paris: L’atelier, 2004). Em 2018, publicou Robespierre: L'homme qui nous divise le plus (Paris: Gallimard, 2018).

 

A entrevista foi originalmente publicada na revista IHU On-Line nº 128, de 20-12-2004, em que o tema foi ‘Cristianismo e ultramodernidade’.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é o lugar que tende a ocupar o cristianismo no século XXI? Qual é o verdadeiro debate em torno da questão religiosa, segundo seu ponto de vista?

Marcel Gauchet – Depende muito do ponto em que a gente se situa. A situação não é a mesma na Europa, nos EUA, na América Latina. Do ponto de vista europeu, o século XXI se anuncia como o século da marginalização social e política do cristianismo. Mas uma marginalização que abre ao cristianismo a possibilidade de jogar um papel espiritual e moral muito importante. Podemos dizer que se trata de uma situação excepcional em todo o mundo, se a comparamos com a grande vitalidade que o cristianismo institucional tem na América do Norte ou Sul ou nas outras regiões do mundo. Eu acredito que é um erro. A Europa, neste ponto, anuncia o futuro.

O cristianismo só poderá continuar exercendo um papel significativo no futuro se ele renunciar à vontade de controlar a sociedade e a política. Ele não tem mais recursos para isso, mesmo lá onde ele aparece, ainda, com muita força. Está sendo chamado para uma outra função no mundo que está por nascer. Aparentemente, lendo os jornais, o debate prioritário em torno da questão religiosa hoje é aquele que diz respeito ao fundamentalismo. Mas este, na realidade, é um debate do passado.

Seguramente, o fundamentalismo vai continuar a fazer muito barulho durante o século XXI, mas o verdadeiro problema está além. Trata-se de saber o que as religiões em geral e o cristianismo em particular podem aportar às sociedades que elas não dominam nem organizam mais.

 

 

IHU On-Line - Para a construção da pessoa e a construção de um outro mundo alternativo ao atual, a religião é ou não importante?

Marcel Gauchet – É preciso iniciar dizendo claramente que a religião não é capaz de construir por ela mesma um mundo alternativo àquele no qual nós vivemos. O Sermão da Montanha não é um programa social e político.

 

 

A religião pode contribuir na edificação de um mundo alternativo somente se admite que ela não será mais que um componente entre outros, ao lado de componentes não religiosos, e que a regra deste mundo deverá ser feita por pessoas que vivem fora da religião.

 

 

IHU On-Line - Qual é a relação entre religião e valores? Liberdade, igualdade e fraternidade são aspirações anteriores à democracia. Como podem as religiões em geral e particularmente o cristianismo enriquecer a democracia?

Marcel Gauchet – É verdade. A democracia não inventou tudo. Mas ela realiza as aspirações que existiam antes e isso faz uma grande diferença. Para enriquecer a democracia, é preciso começar por aceitá-la sem mais nem menos, até o fim. Poucos cristãos são ainda capazes, hoje, de fazê-lo plenamente. Aceitar a democracia significa não só admitir o pluralismo das religiões, mas admitir que não há uma ordem social cristã, que não há uma política cristã, que Deus não se ocupa escrevendo constituições. A democracia significa a liberdade dos homens de definir as regras do mundo, eventualmente baseadas em convicções religiosas, mas sabendo muito bem que são convicções humanas.

Se as religiões e o cristianismo em particular tiverem aceitado sem reservas esta autonomia metafísica da sociedade humana, elas terão a possibilidade de se tornarem referências essenciais do debate público, enquanto um neoclericalismo de esquerda as faria serem rejeitadas. Elas poderão ser, então, um verdadeiro poder filosófico.

O que ameaça a democracia, hoje, é o vazio, a futilidade, o esquecimento, a facilidade, o curto prazo, a superficialidade. As religiões e o cristianismo, em particular, têm o sentido do essencial, do trágico, do mistério da aventura humana, todas as coisas que a democracia facilmente ignora. Elas podem ser decisivas para a democracia.

 

 

IHU On-Line - O que as religiões e o cristianismo podem ainda dizer aos problemas de nossos contemporâneos?

Marcel Gauchet – Creio ter dito o principal na minha resposta precedente. O cristianismo fala aos nossos contemporâneos tudo aquilo que o mundo democrático tende espontaneamente a esquecer, mas que está aí, a começar pela doença, o sofrimento e a morte. Não há e dificilmente poderá haver uma cultura democrática destas realidades. Assim, as religiões continuam e continuarão a dizer algo mesmo para pessoas que não são crentes.

 

IHU On-Line - Como a sociedade do mercado influencia a religião e como se poderia esperar influência inversa?

Marcel Gauchet – Como em tudo, há um mercado das religiões. As religiões lutam, num certo sentido, para se vender! Para sair da lógica do mercado, há somente um caminho: a aceitação por parte dos indivíduos e das coletividades da autolimitação das suas necessidades, frente às ofertas de toda espécie que lhes são oferecidas. Serão as religiões capazes de armar os indivíduos e as coletividades para esta autolimitação? Elas podem contribuir, mas é evidente que elas sozinhas não são suficientes para tal tarefa. Elas devem se aliar a outras forças morais e filosóficas para isso. É uma mobilização que devemos fazer e que diz respeito a todos os cidadãos.

 

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