A Igreja no Brasil no contexto da pandemia. Entrevista com Dom Joel Portella Amado

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18 Dezembro 2020

"Essas experiências nos fizeram ver que era necessário estimular ainda mais a união, num momento da história do país em que as polarizações se firmavam e as pessoas se viam em meio a uma espécie de fogo cruzado de orientações, escreve Dom Joel Portella Amado em uma entrevista transcrita nos Cadernos IHU Ideias,  número 147, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Segundo ele, " a Igreja no Brasil teve e tem clareza de que a pandemia não é apenas sanitária. Como toda pandemia, envolve também aspectos econômicos e sociais, além de políticos e de informação, para me manter nos mais destacáveis. Costumo utilizar o termo multipandemia, que me parece corresponder mais à realidade. Se o lado sanitário se destaca por ser a causa primeira, os demais não podem ser deixados de lado, pois são consequências ou são, como no caso do Brasil, colocados em maior evidência".

Dom Joel Portella Amado. Carioca de nascimento, graduado em Direito (UERJ, 1977) e Teologia (PUC-Rio, 1982), mestre (1987) e doutor em Teologia (PUC-Rio, 1999). Foi professor de teologia na PUC-Rio até 2019 e no Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro, até 2017. Bispo auxiliar do Rio de Janeiro e Secretário Geral da CNBB.

 

Eis a entrevista.

 

As atividades religiosas presenciais, como celebrações, reuniões, encontros de catequese, cursos etc., foram suspensas durante vários meses da quarentena. Na sua opinião, quais foram os impactos que essas restrições tiveram na experiência religiosa das pessoas? O que a Igreja fez para minimizar esses impactos? Que orientações pastorais foram dadas aos fiéis?

 

A Igreja no Brasil teve e tem clareza de que a pandemia não é apenas sanitária. Como toda pandemia, envolve também aspectos econômicos e sociais, além de políticos e de informação, para me manter nos mais destacáveis. Costumo utilizar o termo multipandemia, que me parece corresponder mais à realidade. Se o lado sanitário se destaca por ser a causa primeira, os demais não podem ser deixados de lado, pois são consequências ou são, como no caso do Brasil, colocados em maior evidência.

Diante, pois, da insegurança de orientações e da politização da pandemia sanitária, com, por exemplo, a polarização entre vida e economia e com até mesmo a oposição de informações (usem máscara – não usem máscara; tomem tal remédio – não tomem tal remédio), a CNBB fez a opção de se manter na linha das orientações sanitárias, destacando o distanciamento social e o uso das demais medidas protetoras. Embora cada bispo, em sua diocese, tenha concretizado essa orientação de acordo com a realidade local, o princípio foi esse.

Em segundo lugar, surgiram de modo espontâneo inúmeras experiências de solidariedade, de caridade. Ao longo, por exemplo, do mês de março, recebemos mensagens e reportagens de pessoas e grupos buscando ajudar, com atenção especial para três pontos: conscientização a respeito das regras de proteção, acesso aos alimentos diante da fome e escuta, com aconselhamento algumas vezes.

Essas experiências nos fizeram ver que era necessário estimular ainda mais a união, num momento da história do país em que as polarizações se firmavam e as pessoas se viam em meio a uma espécie de fogo cruzado de orientações. Além disso, havia grupos que tinham necessidades, mas não tinham recursos e, ao contrário, grupos com recursos sem ter para quem os dar. Com isso, a CNBB e a Cáritas Brasileira iniciaram, no Domingo de Páscoa, já em abril, a Ação Emergencial É tempo de Cuidar, exatamente com a finalidade de sustentar a solidariedade diante do risco de esmorecimento, de estimular a criatividade diante das crescentes necessidades e de articular essas diversas necessidades com os recursos disponíveis. Desde então, a ação emergencial tem crescido, no desejo de se fortalecer a solidariedade em rede, independentemente de confissão religiosa ou outra qualquer condição.

A partir daí, juntaram-se alguns aspectos que agora, passados mais de 200 dias em situação excepcional, conseguimos ver com alguma clareza: 1) centrar-se nas orientações das autoridades sanitárias, para além das politizações, 2) estimular a solidariedade tanto no nível material mais imediato, quanto no nível emocional e 3) trabalhar em rede, com instituições que tenham as mesmas finalidades.

Em tudo isso, sem dúvida, o presencial se reduziu a praticamente zero nos primeiros momentos e na maioria dos lugares. Houve reações negacionistas que se queixaram do abandono por parte da Igreja, uma vez que as missas presenciais foram suspensas e essas pessoas não puderam comungar como gostariam. No entanto, a agilidade dos grupos de comunicação, em especial das PASCOMs, foi fundamental para oferecer não apenas missas online, mas também outras formas de oração e contato com a Palavra de Deus. Multiplicaram-se rapidamente essas formas não fisicamente presenciais, mas virtualmente presenciais, e o processo de integração entre evangelização e mundo virtual se acelerou, desaparecendo a desconfiança em relação a esse âmbito da vida. Sempre haverá, é claro, quem se mantenha na desconfiança. Afinal, a novidade sempre assusta. Contudo, a integração entre ação evangelizadora e mundo virtual se firmou. Isso não podemos negar.

O importante é perceber que não se trata de uma espécie de migração definitiva, através da qual se substitui o fisicamente presencial pelo virtualmente presencial. Trata-se da integração de um novo âmbito ou, se quisermos usar um termo já tradicional, de um novo areópago. A chave de leitura deve ser a da integração, não a da oposição. Primeiro porque a presencialidade física é própria do cristianismo. Em decorrência da Encarnação do Verbo, do Verbo que se fez carne, corpo, história, não podemos fugir dessa presencialidade antropologicamente indispensável. Mesmo antes da atual pandemia, as missas pela televisão sempre foram recomendadas para os impedidos de participação presencial, com destaque para enfermos, idosos e encarcerados. Agora e mais ainda quando passar essa fase turbulenta da pandemia, será o tempo de recolher os frutos dessa passagem.

Mesmo agora, ainda durante a pandemia, com tantas pressões e especulações em torno do novo normal, já podemos identificar alguns ganhos, embora permaneçamos tristes com tanto sofrimento e tantas mortes. O primeiro deles é o fortalecimento das PASCOMs, esse grupo generoso e dedicado, que muito tem feito para ajudar pessoas e grupos. São também as lives, uma verdadeira enxurrada atualmente, as videoconferências, os webinars e tantas outras formas de contato. O próprio vocabulário se enriqueceu. E não apenas o vocabulário especificamente pastoral, mas o vocabulário cotidiano de um mundo que descobriu novas formas de se manter conectado.
Mantida, portanto, a hierarquia entre o fisicamente presencial e o virtualmente presencial, com a presencialidade física em primeiro lugar, intuo que o ambiente virtual não perderá o seu valor, pois continuará como forma de unir as pessoas, articular-se diante das grandes causas, fortalecer-se diante dos problemas graves do país e assim por diante. Lives, videoconferências, webinars e outras formas, tenham o nome que tiverem, serão caminhos para otimização do tempo e dos recursos financeiros, mas, acima de tudo, de relacionamentos que não poderão ser perdidos.

A dimensão celebrativa, de modo especial a eucaristia, precisará reassumir sua perspectiva fisicamente presencial, pois, repito, o Verbo se fez carne, se fez presença, se fez corpo. A vida em comunidade, o encontro, pelo menos dominical, dos irmãos e irmãs, é indispensável e não é integralmente substituído pelo encontro virtual. Se, em casos, por exemplo, de uma doença, fazemos uso de alimentação especial, e, assim que curados, regressamos à alimentação regular, o mesmo acontece com a celebração eucarística e com os encontros em comunidade. Respeitadas as orientações sanitárias, as missas vão retornando e, mais adiante, também os demais encontros de comunidade. Sem essa presencialidade física, não há como viver plenamente a fé cristã.

Por isso, não tem sentido dizer que o cristianismo agora vai se tornar predominante ou mesmo exclusivamente virtual. Haverá, sem dúvida, maior espaço para o virtual como complementar ao presencial, com chance de melhorar os contatos, de alargar a geografia das relações, ultrapassando fronteiras etc. Mas, repito, acréscimo e articulação, não substituição.

A possibilidade de substituição total, ao ferir a identidade cristã, também cai na armadilha da individualização e do descompromisso comunitário, tão próprios de nosso tempo, em que o sujeito individualizado, fechado em si, ao estilo das famosas mônadas, é a referência. Pastoralmente, podemos falar em preguiça, acomodação, individualismo e assim por diante. Um olhar mais técnico poderá falar em risco de ajustamento a esse perfil de subjetividade egocentrada, que pode se agarrar ao virtual e se manter numa lógica oposta à da comunidade, a qual só se fortalece com a presencialidade física.

Em tudo isso, podemos dizer que houve um grande impacto na vida de fé. E, podendo parecer estranho num primeiro momento, creio que devamos observar o que existe de positivo nesse impacto. Negativa é a perda da segurança. Negativos são os desequilíbrios, resultantes da perda das referências e mediações. Mas, em nível de experiência cristã, esses momentos, que se iniciam como perdas, podem ser muito ricos.

 

A seu ver, o contexto da pandemia pode ser uma oportunidade para uma nova experiência de fé? Em que sentido?

 

A fé cristã possui uma característica muito fecunda, embora nem sempre valorizada com a amplitude necessária. Trata-se da imagem do deserto. No Antigo Testamento, o povo de Deus caminhou pelo deserto em vista de purificação. No Novo Testamento, Jesus foi ao deserto para enfrentar a tentação. Também os homens e as mulheres de fé em nosso tempo são chamados a fazerem a experiência do deserto. No caso, não se trata do deserto opcional, no qual ingressamos, por exemplo, nos Exercícios Espirituais, mas do deserto indesejado, com causas externas, diante das quais a opção é fugir, é não enfrentar.

No entanto, para aproveitar o título de um dos livros de D. Hélder, O deserto é fértil, ele nos leva a rever uma série de atitudes com as quais estávamos acostumados, incluindo aqui as atitudes diretamente ligadas à vivência da fé. Sabemos que existe uma diferença entre o dado da fé e as formas como esse dado se concretiza em cada tempo e lugar. Se, por um lado, existe articulação entre ambos, dado e concretização, por outro, não existe identificação nem, pior ainda, fusão ou substituição. Dados da fé são os valores, os princípios norteadores, dos quais, por consequência, não podemos abrir mão. Já as concretizações são históricas, socioculturalmente situadas, devendo se transformar conforme os contextos. Essa distinção não é fácil de ser realizada, mas precisa ser feita, sob o risco de se inverter a hierarquia, ou seja, de as formas passarem a valer pelos princípios. Um exemplo é o da oração. Devemos rezar sempre, rezar individual e comunitariamente, de modo que uma forma leve à outra. Se, todavia, estamos temporariamente impedidos de rezar comunitariamente, ou, melhor dizendo, presencialmente, podemos fazê-lo de modo virtual, unindo-nos numa comunidade virtual, como se costuma dizer. O que não podemos – entram aqui os princípios – é deixar de rezar e de nos encontrarmos para rezar, pois rezar faz parte dos princípios irrenunciáveis.

O deserto é, portanto, fértil na medida em que nos ajuda a separar uma dimensão da outra, convidando-nos a permanecermos com o essencial, mostrando-nos que carregamos muita coisa que não é essencial. No âmbito do vestir, para dar um exemplo bem cotidiano, quantas pessoas reduziram a quantidade de roupas que consideravam essenciais. Permanecendo em casa e com outros serviços a serem feitos, optaram por vestes mais simples, mais práticas. Esse é um exemplo bem imediato, mas ajuda a compreender o que deve ser feito no nível da experiência de fé. Para caminhar no deserto, é preciso estar preparado, mas preparado com o essencial, não com a maquiagem. Leva-se para o deserto o que é essencial para a sobrevivência.

No caso da experiência cristã de fé, esse é um tempo para se carregar deserto adentro, em uma vida que se reconfigura, o essencial traduzido em valorização da vida, da pessoa e das pessoas, de todas as pessoas, da natureza, nossa casa comum, do apoio mútuo e da oração, para indicar os exemplos mais imediatos.

Quando nos deparamos com um número tão alto de mortes, despertam em nós diversas atitudes: indignação pelo descaso dos responsáveis, tristeza, saudade, mas também podem se fortalecer o valor pela vida, a luta pela defesa e a preservação da vida em todas as suas instâncias. Quem sobreviver a essa pandemia sanitária, precisará sair dela valorizando mais a vida, empenhando-se por preservar, defender a vida, de modo especial a vida mais vulnerabilizada através da pobreza, da miserabilização, do abandono.

Em segundo lugar, haverá de aprender a perceber que, para cada vida, existe uma hipoteca antropológica, ou seja, ninguém vive para si, mas, na medida em que vivemos todos para Cristo, vivemos também para as irmãs e os irmãos. Somos co-humanos. O subjetivismo fechado, que levou ao que o papa Francisco chama de lógica da indiferença, tem na pandemia uma chance de ser ultrapassado. As ajudas emergenciais, a solidariedade que brotou do coração de pessoas, grupos e comunidades, não podem mais ser vistas como excepcionais, cronologicamente ligadas ao tempo da pandemia. Não podemos retornar a um tempo de individualismo exacerbado, em que atitudes de violência, como as do racismo e da corrupção, têm sido expressões vergonhosas desse fechamento a la Caim: “por acaso sou responsável pela vida do meu irmão?”

Outra descoberta, muito ajudada pela Laudato Si’, em seu quinto aniversário este ano, é a relação com a natureza. Se, por um lado, ficamos impactados com, por exemplo, as queimadas no Pantanal e na Amazônia, só para ficar em exemplos destacáveis, por outro, se pararmos um pouco, vamos perceber que a natureza regressou com força diante da redução dos ritmos de vida e circulação, em especial nas grandes cidades. Os pássaros voltaram a ocupar espaços. Tenho casas de joão-de-barro na janela do meu quarto. Ouço o cantar de inúmeras aves que não ouvia porque não estavam aqui ou porque o barulho da cidade não permitia perceber. Estudiosos dizem que até as placas tectônicas estariam percebendo a redução nos impactos sobre o planeta. Em tudo isso, não se trata de cair em panteísmo, mas de reconhecer, pelos olhos da criação, a presença do Criador. Precisaremos, desse modo, repensar ainda mais a relação da experiência de fé com a casa comum, sem abandonar a relação com as pessoas. O caminhante no deserto contempla e conhece a natureza para melhor conduzir o seu grupo.

Em quarto lugar, citando em uma ordem sem hierarquia na importância, destaco a relação fraterna, em continuidade com o que disse acima. A pandemia nos jogou para dentro de casa, de certo modo obrigando-nos a conviver. Em alguns casos, a suportar mesmo, com atitudes até de reconciliação. Por certo, os mais pobres, com residências menores diante do número de moradores, sofreram muito com a necessidade de ficar em casa. Conheço situações de famílias em que não há lugar para as crianças permanecerem dentro da pequena habitação. A solução, por mais que se dissesse o contrário, foi a de sempre: brincar na rua.

Deixando o detalhamento social para outro momento, agora é tempo de reconhecer que a fraternidade, o convívio, a descoberta ou redescoberta do outro e da outra foram situações que emergiram com força nessa pandemia. Emergiram até mesmo pela via negativa, no sentido de que sentimos falta das pessoas, experimentamos a carência do convívio, do abraço, da saudação e, se assim posso dizer, das confusões que algumas vezes surgem. Tudo isso é humano. Consequentemente, é hora de fortalecer essa experiência, cabendo à Igreja uma responsabilidade muito grande nisso. É hora de chamar a atenção para o ganho fraterno que se está tendo com a chance de um conviver ainda que obrigatório.

No início da pandemia, ainda sem clareza das atividades a fazer, tive a chance de ver um filme, cujo nome nem recordo. Era um filme sobre a Segunda Guerra, com a perseguição aos judeus. Um casal não judeu descobriu uma família escondida no seu porão e, exatamente do convívio, nasceu outra compreensão da realidade. O preconceito desapareceu. Houve perseguição, morte e tudo que costuma acontecer num filme desses, mas quem transcendeu esses aspectos no filme pôde perceber que brotou fraternidade e quebra de paradigmas. Não sei se o exemplo é bom, mas me ajudou a organizar o pensamento naquele período inicial da pandemia, com tudo que eu estava ouvindo. O convívio é libertador.

Por fim, recordo a atitude da oração. Para mim, não existe ato mais livre e libertador do que a oração tal qual Jesus fez e ensinou e o Cristianismo apresenta. Podemos rezar onde, quando e como estivermos. Nada nos é cobrado a não ser a capacidade de abrir o coração e os ouvidos para o mistério de quem ousamos chamar de Deus. Reli, nesse período, alguns relatos do Cardeal Van Thuan, prisioneiro por causa da fé. Lembrei-me de tantos mártires, impedidos de tudo, mas não de rezar. Nós, cristãos, rezamos, como Jesus disse à mulher da Samaria, “em espírito e em verdade”, adaptando-nos às mais diversas e adversas situações, mas nunca deixando de rezar. Se passamos por um momento em que não podemos manter as formas usuais de oração, nem por isso deixamos de rezar. Ao contrário, aprendemos novas formas. O conteúdo, o dado de fé, é rezar. As formas vão se alterando.

No caso da presença sacramental, conforme já indicado acima, precisaremos recuperar a importância da dimensão presencial. Recuperar o valor antropológico e teológico da presencialidade física, da vida em comunidade, onde a celebração, principalmente a eucarística, está diretamente conectada com a fraternidade entre os que ali estão e com as alegrias e dores do mundo todo. As liturgias virtuais permanecerão em sua condição supletiva, atendendo a quem não pode viver o presencial, pois não podemos cair nas armadilhas do individualismo, que, justificando-se na pandemia e num eventual progresso nas compreensões, acaba por querer se perpetuar.

 

Que aprendizagem a pandemia está trazendo para a Igreja no Brasil, em suas várias dimensões: litúrgico-celebrativa, pastoral, missionária, evangelizadora, organizacional etc.?

 

A pergunta é ampla e alguns aspectos já foram respondidos antes. Tendo a subordinar as dimensões mencionadas na pergunta a um único aspecto que penso poder ajudar a compreender a questão. Esse aspecto é a única prioridade das atuais DGAE: as comunidades eclesiais missionárias. Pequenas na composição, articuladas entre si em rede, com diversos serviços e ministérios, sensíveis à solidariedade e ao compromisso socioambiental, constituídas territorial ou ambientalmente, essas comunidades representam o que, já há algum tempo, a Igreja, em vários de seus documentos, vem insistindo tanto. Como, entretanto, mudanças de hábitos e mentalidades são lentas, a pandemia – indesejável sem dúvida – acabou por acelerar um pouco esse processo, na medida em que colocou as pessoas numa espécie de convívio forçado.

A base humana para a experiência de fé é o relacionamento, é a cumplicidade de vida, é o compartilhar das alegrias e dores, como indiquei antes. Isso não pode ocorrer nas grandes aglomerações de pessoas. Essas aglomerações têm outra finalidade, que é a de articular as pequenas comunidades e lhes dar força testemunhal para continuarem caminhando. Antes, porém, do que, na linguagem da pandemia, podemos chamar de aglomerações, existe a experiência de comunidade, das pequenas comunidades. Essa é, a meu ver, a grande reconfiguração que precisa ser feita. A partir dela, tudo mais se reconfigura. Surgem serviços e ministérios, abre-se para o entorno, a missionariedade avança e assim por diante.

Em nível de CNBB, estamos no tempo de construir novo Estatuto. O atual é de 2002 e de lá para cá muita coisa mudou, em termos de mundo e de Igreja. O Estatuto é o modo como a CNBB vai se organizar nos próximos anos. Há dois documentos para orientar essa atuação: o Estatuto e o Regimento. O Estatuto vale como uma espécie de constituição da Conferência. Nele estão os princípios básicos da identidade, da missão e da organização. O Regimento, por sua vez, desce a detalhes mais organizacionais. Além desses dois documentos, a Conferência se rege pelas Diretrizes, que são eminentemente pastorais e que têm vigência por quatro anos.

O novo estatuto está sendo orientado na linha da sinodalidade e da missionariedade. Buscamos, de acordo com os atuais ritmos da vida, integrar as diversas forças evangelizadoras e, em comunhão, discernir caminhos para o anúncio da pessoa de Jesus Cristo e do Reino de Deus.

Mais uma vez, reitero que a pandemia acelerou processos. Assim como colocou às claras inúmeras mazelas do povo brasileiro, como, por exemplo, a desassistência no campo da saúde, também catalisou elementos positivos, como já creio ter indicado antes. Cabe às pessoas e às instituições, dentre as quais a Igreja, saber por onde passar neste momento. Com certeza, haverá os que lacrimejam por um passado que não existe mais, haverá os arautos do negativo, sempre buscando as desgraças e haverá os que procuram o que de positivo se pode tirar de tudo isso. Não se nega que seja necessário, para construir o positivo, mostrar o negativo. O Brasil atual apresenta situações que entristecem e mesmo envergonham. Não basta, contudo, apenas mostrar esse negativo. É preciso construir o positivo também. E isso é mais difícil. Daí a necessidade de a Igreja se fortalecer em pelo menos duas atitudes: a comunhão e o discernimento. Melhor dizendo, a comunhão que leva ao discernimento ou, ao contrário, o discernimento que nasce da comunhão. São dois lados da mesma moeda. Se perdemos um dos dois, a moeda perde o valor.

 

A pandemia do novo coronavírus evidenciou questões graves no cenário social brasileiro: as desigualdades no acesso aos serviços de saúde, aos bens econômicos, ao emprego e às ferramentas digitais, mostrando o fosso que separa pobres e ricos. Qual foi o papel da Igreja na busca por amenizar as consequências dessa desigualdade?

 

De fato, como já indiquei antes e é fato notório, a pandemia do novo coronavírus não só criou situações novas, como explicitou situações gravíssimas experimentadas pelo povo brasileiro, notadamente os mais pobres. A pergunta já indica inúmeros exemplos.

Por certo, não se enfrentam questões estruturais em pouco tempo. Por isso, a primeira atitude da Igreja neste momento pandêmico foi a do atendimento emergencial. Recordo aqui o exemplo da ação É tempo de Cuidar. Ainda estamos neste momento mais conjuntural, sem, contudo, descurar do momento estrutural. Precisamos trabalhar pelas causas, ir até as origens de tantas situações graves. Sem dúvida, temos um modelo econômico e um estilo político que não têm ajudado na superação do grave cenário a que a pergunta alude.

A Igreja compreende sua missão em sentido amplo. Ela anuncia Jesus Cristo e o Reino de Deus, praticando, se assim posso dizer, o que Jesus Cristo fez e mandou fazer. E isso implica compromisso pelo Reino, que é justiça e paz. É, num primeiro momento, socorrer as vítimas, mas, em seguida – ou, às vezes, concomitantemente – questionar as causas dos sofrimentos.

Neste período de pandemia, um dos grandes gestos que a Igreja no Brasil fez e tem feito (permitam-me chamar de grande) é o trabalho com outras instituições, religiosas ou não. Tem dado atenção à questão da fome, mal imediato, decorrente do desemprego e do desaparecimento da renda familiar. Tem igualmente estimulado, como já lembrado antes, a comunicação virtual para esclarecimento diante da desinformação, mas também para a atitude de escuta e partilha da vida. Tem procurado estimular a criatividade de organizações dos mais diversos tipos na descoberta de formas para a geração de renda. Tudo isso feito em parcerias, num aprendizado muito enriquecedor.

Destaca-se aqui a constituição do Pacto pela Vida e pelo Brasil, conforme já divulgado. Construído e oficializado em 7 de março, Dia Mundial da Saúde, o Pacto é mais que um documento. Quer ser, na verdade, um processo de convite à sociedade brasileira a sair das polarizações e ingressar numa construtiva atitude de diálogo e solidariedade, a serviço da vida. As signatárias são instituições diferentes, com inúmeras propostas cada uma. No entanto, a beleza do Pacto está no fato de que essas seis entidades encontraram, no cuidado da vida e do Brasil, seu ponto de convergência. Por isso, se uniram e ainda estão unidas na mesma finalidade.

Interessante observar que essa experiência do Pacto foi muito rica também para a Igreja no Brasil. Não foi uma atitude de apenas uma instituição, seja ela qual for. Ninguém se colocou acima de outrem. Foi, como o nome diz, um pacto, algo que já nasceu como diálogo, propondo o diálogo como caminho de superação. Não é, desse modo, a fala apenas de uma das instituições, defendendo apenas seu ponto de vista, mas é a concordância dialogada em favor do país e da vida de todas as pessoas, especialmente das mais pobres e vulneráveis. Nesse sentido, creio que houve um avanço no estilo de se falar à sociedade brasileira.

 

Como o senhor percebeu as ações de solidariedade junto aos setores da população mais carentes?

 

Penso já ter expressado nas respostas anteriores um pouco do que aqui apenas retomo.

Fiquei impactado por ver a solidariedade brotando espontânea e imediatamente de pessoas e grupos, de comunidades, paróquias e dioceses, logo no início da pandemia. Como já me referi, na questão inicial, pelo menos a que me chegou aqui na Secretaria da CNBB, foi e continua sendo muito ligada à fome.

Num primeiro momento, foram ajudas num raio de ação mais próximo, como é comum acontecer. Num segundo momento, pude testemunhar e mesmo participar de ajudas que saíram de uma região do Brasil e foram para outras bem distantes. Não tanto através de transporte de gêneros alimentícios estradas afora. Mas de articulação, palavra importante em nossos dias. Articulação da Igreja com outras entidades e de entidades entre si, comunicando-se, indagando, avaliando o que poderia ser feito e mesmo solucionando. Sem entrar em detalhes, foi possível chegar a aldeias indígenas totalmente desassistidas. Além de alimentação, levou-se também material de higiene pessoal e ambiental.

Fiquei também positivamente impressionado com a força que a sociedade civil tem para se organizar em vista do bem comum. Como carioca e conhecedor da realidade das comunidades, ou seja, das favelas locais, sei o quanto se necessita ali. Não é a única situação. É a que conheço mais e que serve de referência para uma compreensão mais ampla. A criatividade de organizações já existentes, o reconfigurar de ações pastorais em capelas e paróquias localizadas nessas regiões, a criatividade de pessoas que, digamos assim, do nada, reorganizaram suas vidas em favor do próximo, tudo isso revela, primeiro, o que há de bom em cada pessoa e, em segundo lugar, que podemos nos unir em vista da transformação das causas tristes e vergonhosas de tudo isso.

É claro que essa experiência da solidariedade criativa aprendida neste tempo de pandemia não pode terminar quando se ultrapassar esse quadro tão devastador. Ninguém quer um vírus, seja ele qual for, ainda mais um tão agressivo e letal como esse. Mas, já que ele aí está, precisamos superar a indiferença e o egoísmo, assumindo o aprendizado de caridade, solidariedade e co-humanidade. Reitero aqui a expressão da hipoteca antropológica.

 

A Igreja no Brasil está preparada para se apropriar do universo das mídias digitais, proporcionando experiências celebrativas e de aprendizagem nesta nova linguagem, que se mostrou fundamental no contexto da pandemia?

 

O ingresso no âmbito virtual estava sendo feito, mas a passos lentos. A pandemia o acelerou. Consequentemente, vemos, por um lado, que precisaremos nos adequar bastante, aprender muito. Por outro, vemos o quanto já existia e não valorizávamos. Destaco, por exemplo, a questão das lives. As primeiras, se comparadas às atuais, eram de um improviso grande, pois trouxemos para o virtual a mentalidade presencial e analógica. Não sabíamos ainda que era necessário mudar também o estilo de pensar e a linguagem. Também os instrumentos não eram adaptados, primitivos mesmo. Muitas pessoas não estavam familiarizadas com o uso dos recursos de internet.

O interessante foi perceber como isso foi vencido com certa rapidez. As lives católicas de hoje adquiriram um nível muito bom. Existem limitações tecnológicas que ainda precisam ser vencidas. Há regiões do Brasil onde o acesso à internet é quase nulo. No entanto, o avanço quantitativo e qualitativo do que vem sendo feito no areópago virtual tem sido maior, com capacidade para superar as limitações. Creio mesmo que se poderá pensar em redirecionamento de prioridades, com maior atenção para o mundo virtual, feita a ressalva de que não se trata de pura e simples substituição quanto ao fisicamente presencial.

As paróquias, os movimentos e demais associações estão investindo em aparelhagens e demais recursos, bem como no treinamento do pessoal. Os grupos da PASCOM têm contribuído muito nesse sentido. Em nível de CNBB, cabe à Comissão Episcopal Pastoral de Comunicação ajudar nesse avanço e isso já está sendo feito. Não se avançou mais exatamente por causa da pandemia ainda em curso, o que faz com que o aprendizado se dê em meio à ação. É aprender a cuidar cuidando.

Igreja e evangelização: provocações da pandemia

Igreja e evangelização: provocações da pandemia. Parte I - O fim de um mundo?. Cadernos Teologia Pública Nº 147

Este artigo integra a primeira parte do projeto editorial intitulado “Igreja e evangelização: provocações da pandemia”, organizado pelo Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral” – do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), publicado na 147ª edição de Cadernos Teologia Pública.

Acesse aqui os Cadernos Teologia Pública na íntegra.

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