Fermento para uma nova cultura. Artigo de Moema Miranda, Rosana Manzini e Francys Silvestrini Adão

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11 Dezembro 2020

“O fermento não existe em função de si, mas voltado à existência de um pão ou de um bolo mais nutritivos, saborosos, leves. O bolo e o pão, por sua vez, também não existem em função de si mesmos, mas para alimentar a vida e proporcionar mais prazer e alegria àqueles e àquelas para quem eles foram feitos. Do mesmo modo, só podemos desejar – e colaborar ativamente com isso! – que a nova humanidade que está sendo gestada no interior desta crise pandêmica aprenda que a partilha de tudo o que somos e possuímos com quem não é e não possui da mesma maneira que nós é a condição para o surgimento de um mundo mais bonito, diverso, humano e divino, onde todos possam crer, esperar e amar”, escrevem Moema Miranda, Rosana Manzini e Francys Silvestrini Adão em artigo publicado nos Cadernos Teologia Pública, Nº 149, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Moema Miranda. Professora na Ordem Franciscana Secular (OFS), é antropóloga, com Mestrado em Antropologia Social, pelo Museu Nacional da UFRJ e doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio. Integra a equipe docente do Instituto Teológico Franciscano (ITF). É assessora da Comissão Episcopal Pastoral Especial para Ecologia Integral e Mineração, CEEM/CNBB. É secretária da Rede Iglesias y Minería, da qual participam 70 entidades da América Latina, e membro da Coordenação Nacional do Serviço Inter-franciscano de Justiça e Paz e Ecologia (SINFRAJUPE). Atua como assessora na Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) tendo participado como Auditora no Sínodo para a Amazônia.

Rosana Manzini. Bacharel em Teologia pela Faculdade Dehoniana, pelo aproveitamento de Curso Livre cursado na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção - SP (1991), Mestrado Canônico em Teologia Moral pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção - SP (1994), Mestrado em Teologia Prática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professora da PUC-SP, onde leciona disciplinas de Teologia Moral. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Doutrina Social da Igreja da PUCSP. Assessora da REDLAPSI (Rede Latinoamericana del Pensamiento Social del la Iglesia).

Francys Silvestrini Adão. Jesuíta, bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE-BH (2005) e em Teologia pelo Centre Sèvres - Facultés Jésuites de Paris (2011). É mestre em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio (2013). É doutor em Teologia Fundamental e Sistemática pelo Centre Sèvres - Facultés Jésuites de Paris (2019). Professor de teologia sistemática na FAJE. Área de pesquisa: estudo de método(s) e epistemologia teológica, com especial atenção à relação entre Teologia e Cultura(s).

 

Eis o artigo.

“Das grandes provações da humanidade, dentre elas a pandemia, ou se sai melhor ou pior. Não se sai igual”. Esta frase do papa Francisco traz um grande alerta: um mundo novo já está surgindo das entranhas desta pandemia, mas a qualidade humana deste mundo ainda é uma incógnita, não é autoevidente. Tudo dependerá das opções que, pessoal e coletivamente, iremos fazendo. É necessário, então, lidar com este tempo atípico como uma krisis: um tempo que apela ao juízo, que traz a urgência de despertar consciências e tomar as melhores decisões. Segundo nosso título – retomando uma inspiração evangélica –, a Igreja não está nem acima nem abaixo dos outros atores sociais, mas deseja ser como um “fermento”. Gostaríamos de nos apoiar nesta metáfora inspiradora para refletir sobre o papel das discípulas e dos discípulos de Jesus na construção de uma nova Cultura mais solidária, compassiva e fraterna.

Destacamos quatro características do fermento que nos parecem bastante instigantes. Primeiramente,

(1) o fermento não é o ingrediente principal de uma receita: ele só realiza aquilo que lhe é próprio quando provoca transformações na mistura dos outros ingredientes, dos quais ele reconhece o protagonismo. Em segundo lugar,

(2) o fermento é um ingrediente discreto: no resultado final de uma receita, ele já não é mais visto em sua forma original, mas é percebido pelos efeitos que provoca quando entra em comunhão com o diferente. Em terceiro lugar,

(3) sua função principal é fazer crescer, evitando, assim, que um pão ou um bolo fiquem “solados”, demasiadamente compactos, pesados e, poderíamos dizer, colados ao “solo”. E, por fim,

(4) é curioso o processo por meio do qual ele provoca transformações: o fermento faz brotar o ar, o sopro, o vento no próprio interior da massa, abrindo e, às vezes, rasgando nela espaços necessários a seu crescimento, leveza e sabor. Se a Igreja é chamada a ser, neste mundo, um sacramento da humanidade reconciliada, podemos sonhar que, na nova Cultura emergente, a humanidade poderá realizar-se mais plenamente ao assumir sua condição de fermento neste mundo. Integrando com leveza e cuidado a comunidade da vida, a humanidade pode ser porta-voz do louvor a Deus que se expressa em toda a Criação, escutando e dando voz às sutis boas notícias dos seres silenciosos e às dores de todos os seres brutalmente silenciados. Vejamos o que isso poderá significar.

I. Tecer novas relações e apreciar o protagonismo do diferente. Durante séculos – e de modo mais acelerado a partir da modernidade ocidental –, a separação entre Natureza e Cultura foi sendo enfatizada, com sérias consequências éticas, sociais, teóricas e espirituais. A consciência da distinção entre os seres humanos e os outros seres foi caminhando rumo a uma cisão, alimentando processos hegemônicos e despóticos, não somente entre a humanidade e o conjunto da Criação, mas também entre os próprios seres humanos, ampliando conflitos sociais, étnicos, religiosos, sexuais, geracionais etc. Deixando-se iluminar pela nova Cultura ecológica em gestação – já tão antiga em tantos povos originários! –, os discípulos e discípulas de Jesus podem descobrir e ajudar seus irmãos humanos a descobrirem uma nova faceta de sua dignidade: o que é mais próprio da dignidade humana é nossa capacidade de dignificar, de reconhecer a dignidade dos outros, a dignidade de toda a Criação de Deus. Só há dignidade de tudo e de todos onde foram vencidos o autocentramento, a autorreferencialidade, o sentimento e o pensamento que justificam uma pretensa superioridade de uns sobre os outros.

II. Alegrar-se por sermos parceiros e parceiras discretos de um projeto maior do que nós. Não haverá nova Cultura, nova humanidade, novas relações sem uma nova capacidade de diálogo, de debate de ideias, de escuta da diversidade de valores presentes em nossas sociedades plurais. Neste sentido, a discrição do fermento inspira novos modos de viver os processos sociais transformadores. Dignas de nota são as diversas iniciativas promovidas pelo papa Francisco desde o início de seu magistério, inspiradas no princípio de sinodalidade, a arte de caminhar juntos. Vários foram os encontros com movimentos sociais, cientistas, educadores, economistas, povos originários... À base desses encontros, uma certeza comum: ninguém detém, sozinho, as respostas para superar as crises da humanidade e avançar rumo a um mundo mais conforme ao Reino de Deus. Por isso, a atitude de escuta mútua revela-se como a única via lúcida para que os diversos atores sociais intuam e construam juntos novos caminhos para a ciência, para a educação, para a economia, para a ecologia, para a Igreja.

III. Reconhecer que o crescimento de uns só faz sentido com o crescimento de todos. Há várias maneiras de se conceber o tipo de crescimento que pode trazer alegria ao mundo que irá surgir neste pós-pandemia. Alguns modelos de crescimento, fundados na ilusão de um progresso ilimitado, mostraram-se predatórios, incentivando a devastação das riquezas naturais dos distintos biomas para a reprodução, em larga escala, de alguns poucos produtos (normalmente grãos e gado), com benefícios para um pequeno grupo de privilegiados. A nova consciência ecológica alerta para a importância da biodiversidade e denuncia o caráter homogeneizador das práticas de produção das grandes indústrias agropecuárias. Um olhar espiritual contemplativo também é capaz de reconhecer, na beleza da Criação, a verdade contida na máxima “quanto mais diverso, mais divino”. Assim, o crescimento a ser buscado nesta nova Cultura pós-pandêmica deveria ser duplo: o cuidado e a conservação da riqueza natural que nos foi confiada pelas gerações que nos precederam e o aumento da qualidade de vida dos grupos menos favorecidos, que não são beneficiados pelas produções em larga escala. É urgente e imprescindível promover o aprendizado e a valorização da partilha como antídoto contra o desejo insustentável de acumulação. Além disso, é necessário falar de um crescimento ético que se faz urgente e necessário: o estabelecimento de limites à nossa capacidade produtiva. Na encíclica Laudato Si’, o papa Francisco, de modo recorrente, convida a humanidade a experimentar a realização mais completa de sua liberdade diante da escolha de uma autolimitação consciente e responsável. O paradigma da não-destruição deverá reger as decisões relativas ao crescimento ou à desaceleração.

IV. Devolver a saúde pneumática ao mundo, sem temer os possíveis conflitos. Devemos reconhecer que a pandemia atual traz consigo uma poderosa metáfora. A enfermidade que este vírus provoca afeta o sistema respiratório, provocando uma espécie de asfixia. O parasita, inconsciente e inconsequente, sufoca seu hospedeiro, decretando, ao mesmo tempo, o fim de sua própria existência. Não tem sido esse o comportamento da humanidade, nos últimos séculos, em relação aos recursos de nosso planeta? O fermento, como vimos, faz brotar o ar dentro da massa, criando novos espaços. Todas as religiões e tradições espirituais são convocadas a colaborar com a elevação ética da humanidade, ajudando as pessoas e as sociedades a tomarem consciência de que a vida saudável depende do respiro: inspiração e expiração, recepção e doação, personalização e comunhão. Porém, rasgar novos espaços numa massa compacta, embora seja fundamental, não será sempre uma atividade confortável. É necessário dar nome a tudo aquilo que prende esta massa ao solo, que não lhe permite ganhar a leveza e o sabor aos quais ela é chamada. Faz parte da missão das religiões identificar e nomear as forças do mal, aquilo que, em regime cristão, chamamos de Anticristo e Antirreino. Aqui, uma vez mais, o papa Francisco é um grande líder inspirador. Ele não hesita em denunciar uma economia que mata, uma indústria que prefere as armas ao alimento, uma política que manipula e corrompe, ao invés de liderar processos de superação da desigualdade, um nacionalismo que fecha as portas à fraternidade, uma igreja mais preocupada com seus privilégios históricos do que com o Evangelho de Jesus Cristo.

Não podemos ser ingênuos: existem e sempre existirão grupos humanos poderosos que resistirão à emergência de qualquer Boa Nova para os pobres, os cativos, os cansados, os desesperados... Com o avanço técnico e tecnológico, esses grupos ampliaram exponencialmente sua capacidade de produção, mas também de destruição. Agem como predadores da Natureza e de outros seres humanos, com uma voracidade sem limites. Como deveremos lidar com eles? Não há, evidentemente, respostas prontas. Mas se as Escrituras cristãs, por um lado, falam em “não resistir ao violento”, por outro, falam também, em linguagem apocalíptica, do grande combate contra o Dragão devorador. A emergência de uma nova Cultura e de uma nova humanidade depende da vitória de uma humanidade propriamente eucarística – capaz de viver o dom de si para o sustento de toda a Criação – contra uma lógica autocentrada e voraz.

O fermento não existe em função de si, mas voltado à existência de um pão ou de um bolo mais nutritivos, saborosos, leves. O bolo e o pão, por sua vez, também não existem em função de si mesmos, mas para alimentar a vida e proporcionar mais prazer e alegria àqueles e àquelas para quem eles foram feitos. Do mesmo modo, só podemos desejar – e colaborar ativamente com isso! – que a nova humanidade que está sendo gestada no interior desta crise pandêmica aprenda que a partilha de tudo o que somos e possuímos com quem não é e não possui da mesma maneira que nós é a condição para o surgimento de um mundo mais bonito, diverso, humano e divino, onde todos possam crer, esperar e amar.

Igreja e evangelização: provocações da pandemia

Igreja e evangelização: provocações da pandemia. Parte III - Vinho novo, odres novos. Cadernos Teologia Pública Nº 149 

Este artigo integra a terceira parte do projeto editorial intitulado “Igreja e evangelização: provocações da pandemia”, organizado pelo Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral” – do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), publicado na 148ª edição de Cadernos Teologia Pública.

Acesse aqui os Cadernos Teologia Pública na íntegra.

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