24 Novembro 2020
“O transumanismo busca cumprir o sonho especista, por meio da imposição de uma quarta revolução industrial de caráter informática e neurocientífica, para desse modo deixar para trás o mundo natural ao qual pertencemos, junto com o restante dos seres vivos, e ultrapassar qualquer tipo de limitação biológica existente, evidenciada com o contágio em massa, na pandemia atual”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 21-11-2020. A tradução é do Cepat.
A propósito do anúncio de uma nova neurotecnologia elaborada pela empresa Neuralink, chamada Moonshot, após experimentada em um porco, com a implantação de um chip em seu crânio para o conectar com um computador e assim medir sua atividade cerebral, abriu-se uma discussão mundial sobre as possibilidades e perigos de tais práticas para o futuro da humanidade.
Exponho isto, pois o que esta empresa do bilionário Elon Musk almeja é gerar neurodispositivos que permitam fazer o mesmo com os seres humanos e, desse modo, levar aos computadores nossos próprios pensamentos, sentimentos, emoções e experiências, para ser descarregados na rede por qualquer pessoa e a qualquer momento.
Embora este anúncio de Musk parece ter sido retirado de um filme de ficção científica, marca-se dentro do chamado discurso transumanista, que nasce nos Estados Unidos, nos anos 1980, e que foi impulsionado tanto pelo Fórum Econômico Mundial, como por instituições como Humanity Plus e pessoas como Raymond Kurzweill, Nick Bostrom, Max Moore, Vernor Vinge, Natasha Vita-More, James J. Hughes, David Pearce, que pretendem transformar os homo sapiens em verdadeiro meta-humanos ou ciborgues, por meio da fusão entre humanos e máquinas.
Ou seja, construir um mundo em que o sofrimento humano e seus limites biológicos deixem de existir para sempre, graças ao desenvolvimento tecnológico, que é fetichizado por todos eles, ao ponto de se acreditar na possibilidade da imortalidade dessa nova espécie a ser criada no futuro.
Daí pensarem que por meio da inteligência artificial, nanotecnologia, clonagem, robótica e engenharia genética, as distinções entre os humanos e as máquinas ou entre a realidade física e a virtual serão algo inevitavelmente superado em prol de um mundo em que o progresso tecnocientífico será a única alternativa possível para viver.
É por isso que este contexto de pandemia pela Covid-19 é visto como uma oportunidade e não uma ameaça para este discurso, já que o desenvolvimento da inteligência artificial e big data é utilizado para elaborar diferentes softwares e aplicativos que permitem detectar este novo vírus e estudar seu comportamento.
Alguém poderá dizer que estas novas biotecnologias contribuem para a prevenção e diagnóstico da Covid-19, de um ponto de vista médico. Não obstante, isto está acompanhado por novas formas de controle político e econômico, por meio de novos algoritmos e chips, produzidos por grandes empresas de inteligência artificial, provenientes do Vale do Silício e da China, como são Alphabet, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Banjo, DJI, IBM e Alibaba, que estão armazenando milhões de dados das pessoas.
Além disso, ao se concentrar em “vencer a Covid-19”, o que se faz é invisibilizar as causas estruturais de fundo das grandes pandemias, que possuem relação com um processo histórico de colonização do mundo da vida, exacerbado com a hegemonia da civilização ocidental, que a partir da revolução industrial gerou condições muito mais favoráveis para a liberação de patógenos pelo desmatamento, o tráfico de animais, a perda de biodiversidade e o desenvolvimento da agroindústria intensiva.
Como consequência, o transumanismo busca cumprir o sonho especista, por meio da imposição de uma quarta revolução industrial de caráter informática e neurocientífica, para desse modo deixar para trás o mundo natural ao qual pertencemos, junto com o restante dos seres vivos, e ultrapassar qualquer tipo de limitação biológica existente, evidenciada com o contágio em massa, na pandemia atual.
Frente a tudo isto, o transumanismo é uma verdadeira distopia para um mundo pós-pandemia, ao acreditar estar acima dos ecossistemas e fora da Mae Terra, a partir de uma concepção da evolução que está convencida da existência de um indivíduo racional, desconectado da Natureza e da comunidade, e com uma inteligência lógico-matemática infinita a ser desenvolvida.
Além disso, estas visões futuristas não percebem que nós, seres humanos, somos o que somos graças a um processo de interdependência com o restante dos seres vivos, há milhões de anos. Alguém pode dizer que nossa relação e experiência com as máquinas também são inegáveis nos últimos dois séculos, mas não por isso se deve cair em reducionismos e determinismos tecnológicos.
É por isso que as alternativas ao transumanismo também não devem vir de um novo tecnoprogressismo moderno, que apenas critica os perigos da mercantilização da inteligência artificial e a imposição de um neoliberalismo digital, sem questionar as bases racionalistas e antropocêntricas que a sustentam.
Em outras palavras, o discurso tecnoprogressista também explicita ideias cerebrocêntricas, como os neurodireitos, por exemplo, que seguem confiando de maneira cartesiana que a mente está dentro do cérebro e que funcionamos como máquinas.
Assim, desconhecem que a mente, como bem expuseram em seu momento os neurocientistas pós-racionalistas Francisco Varela e Humberto Maturana, não é algo localizável fisicamente, mas o resultado imanente de múltiplas relações e experiências de vida, em diferentes contextos.
Trata-se, portanto, não só de regulamentar pelos Estados as novas neurotecnologias e dispositivos digitais, mas, sim, de interconectar mundos solidários e sustentáveis, que se situem a partir de um horizonte do Bem Viver e não de um Viver Melhor de caráter tecnocapitalista, para desse modo deixar para trás um discurso transumanista dirigido finalmente a uma elite econômica, política e intelectual, que quer superar nossa condição de seres vivos para se salvar da catástrofe socioambiental.
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Distopia transumanista para um mundo pós-pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU