18 Novembro 2020
A pandemia de Covid-19 criou um novo tabuleiro mundial: o mercado de vacinas contra a infecção. Estes medicamentos são, no momento, a ferramenta mais promissora para superar uma crise sanitária e econômica total. Grandes atores como os Estados Unidos, China, Rússia e Grã-Bretanha buscam um lugar preferencial nesse cenário, conforme revela a bateria de anúncios sobre projetos de vacina que se sucedem.
A reportagem é de Raúl Rejón e Analía Plaza, publicada por El Diario, 16-11-2020. A tradução é do Cepat.
No dia 9 de novembro, a farmacêutica estadunidense Pfizer declarava que sua vacina contra o SARS-CoV-2 mostrava uma eficácia, preliminar, de 90%. Abarcou as manchetes em todo o mundo. Apenas dois dias depois, os desenvolvedores da vacina russa Sputnik V contra-atacam: seu produto aponta para 92% de eficácia. Nesta segunda-feira, a empresa Moderna afirmou que sua vacina chega, no momento, a 94,5%. Tudo aconteceu em apenas uma semana.
Os anúncios servem para, por um lado, para avalizar as posições das empresas no mercado de vacinas contra a Covid-19, que inclui toda a população mundial. Todos os países precisam de vacinas. E, previsivelmente, irão necessitar por anos, enquanto houverem surtos sazonais de Covid-19. Por outro lado, supõem um aumento do valor destas empresas na bolsa de valores. A Moderna subiu 11% nesta segunda-feira. A Pfizer subiu 8%, há sete dias.
“Veremos uma enxurrada de anúncios. A partir de agora, isto será uma constante”, avisa a coordenadora de campanha na Fundação Saúde por Direito, Irene Bernal. O fato, conforme se observou na última semana, é que as cotações do setor farmacêutico estão muito condicionadas aos resultados de suas pesquisas e aos momentos em que são comunicados. As boas notícias aquecem o valor das empresas na bolsa, as más o afundam.
Bernal explica que “é o momento destas empresas porque estão aparecendo seus dados da fase III que lançam alguma luz e têm um grande impacto em suas cotações e previsões financeiras. Agora, se destaca porque estamos muito atentos, mas é o comportamento padrão das farmacêuticas. Todas as grandes empresas de vacinas estão envolvidas nisto e todas querem comunicar bons resultados porque isso repercute em suas ações”.
O diretor de mercado de capitais da Caja de Ingenieros, Bas Fransen, concorda que esta dinâmica é comum. “O espetacular”, pondera, “é a situação que vivemos e como, na medida em que se aproxima a recuperação econômica, os investidores pulam de certos valores para outros”.
Alguns anúncios se baseiam no que as farmacêuticas querem comunicar. A Pfizer informou que 94 sujeitos haviam sido infectados em seu ensaio com 40.000 voluntários. A russa Gamaleya afirmou que foram 20 infectados em seu trabalho com outras 40.000 pessoas. A Moderna disse que conta com 95 infecções, 90 delas no grupo que recebe placebo de seu ensaio com 30.000 voluntários. Nada a mais. O presidente da Associação Espanhola de Vacinologia, Amos García Rojas, avalia que “convém que esses resultados preliminares sejam apresentados em publicações de impacto, mais do que em notas de imprensa”.
García Rojas, que se confessa “tremendamente otimista”, acrescenta: “Não duvido da veracidade desses resultados, mas gostaria de analisá-los com precisão e para isso devem ser publicados”. Uma das vacinas promissoras da empresa chinesa Sinopharm, em união com o Instituto de Virologia de Wuhan, publicou seus “resultados intermediários” de fases 1 e 2 na revista The Lancet, no último dia 15 de outubro. “Uma vacina promissora”, definiu-a. Uma semana depois, iniciou sua fase III.
O vacinólogo espanhol alerta que como “fruto destas comunicações por meio de notas de imprensa, é possível que os cidadãos passem a pensar que estamos diante de uma corrida para ver quem chega antes e melhor posicionado. O importante é que sejamos conscientes de que a única corrida é a de conseguir conter a pandemia, com prudência, com calma e com evidências”.
Mas a corrida existe. Na medida em que a pesquisa avança com boas perspectivas, mais estados decidem garantir o fornecimento. “Nos países de renda alta haverá uma concorrência entre as farmacêuticas que primeiro se certificarem como seguras e efetivas”, conta Miriam Alía, coordenadora médica de emergências da organização Médico Sem Fronteiras.
“Entre os de renda baixa, entendemos que haverá ajuda com o mecanismo solidário COVAX e um preço menor, ainda que o acesso permaneça sendo mais difícil. Contudo, existe um montão de países de renda média que não estão nesse mecanismo de ajuda, nem podem assinar contratos de risco”, analisa Alía.
“Os acordos de compra e recompra e as reservas exigem ter dinheiro, e que tem dinheiro? Os países com renda alta. Parece cada vez mais difícil que as vacinas cheguem sem problemas aos países mais empobrecidos e de renda média”, acrescenta Irene Bernal.
Nestas circunstâncias, o que se está ocorrendo até o momento é certa monopolização da produção por parte dos países mais desenvolvidos. A Intermón Oxfam denunciou que 50% das doses já estão reservadas para os países ricos. Apenas no caso da vacina da Pfizer-Biontech, o Observatório Justiça Global reuniu os anúncios dos diferentes estados sobre acordos de compra e concluiu que seus pedidos significam 37% da capacidade teórica de produção. Caso sejam acrescentados os pré-pedidos, chegariam a 1,1 bilhões de doses sobre uma capacidade anunciada de 1,3 bilhão (82%). Essas operações cobrem uma população de 1,4 bilhão de pessoas, 14% do total mundial.
Segundo o que reuniu a revista científica Nature, quando se olha o projeto de vacina da Johnson & Johnson – que só exige uma dose, ou seja, reduz o esforço pela metade -, para os Estados Unidos, União Europeia e o Reino Unido já estão contabilizados 30% da fabricação estimada. Antes do anúncio desta segunda-feira da Moderna, os Estados Unidos tinham reservado quase toda a produção prevista para 2020. Os Estados Unidos têm acordos de fornecimento que supõem duas doses para cada cidadão (com possível expansão para mais de 4) e o Reino Unido já acordou o fornecimento equivalente a 5 doses por habitante. A União Europeia assinou contratos equivalentes a duas doses por europeu, com possível ampliação para quase três.
Nesse panorama e com as vacinas da Moderna e da Pfizer a um preço inicial de mais de 30 e 20 dólares por unidades respectivamente, abriu-se um campo gigantesco para outras opções mais baratas e simples de distribuir.
O Centro Nacional Russo Gamaleya foi conquistando partidários para o seu Sputnik V, uma vacina baseada em adenovírus. E, ao mesmo tempo, o fundo soberano russo FIDR foi fechando acordos. Fornecerá ao menos 50 milhões de doses ao estado brasileiro da Bahia. O México reservou de início 32 milhões de doses. O Peru também assinou contratos com o FIDR. A secretária de Acesso à Saúde argentina, Carla Viizzotti, viajou em segredo para a Rússia, no dia 17 de outubro, para depois encomendar 25 milhões de doses. O laboratório indiano Reddy tem um acordo para estudar e fabricar 100 milhões de doses da Sputnik V.
Em uma linha parecida, a China aproveita estas circunstâncias para desenvolver o que se está chamando de “diplomacia da vacina” e ampliar suas relações com países em vias de desenvolvimento. Suas biotecnologias têm três vacinas na última fase de ensaio. E os acordos para distribui-las crescem. Vão do Emirados Árabes Unidos ao Peru, Paquistão, Sérvia, Turquia, Bangladesh, Tailândia, Laos, Vietnã, Mianmar, Camboja, Filipinas e Marrocos. A Sinovac, uma das empresas chinesas com uma vacina em fase III, afirma ter acordado a distribuição de 60 milhões de doses no estado de São Paulo (Brasil) e outros 40 milhões na Indonésia.
O presidente chinês, Xi Jinping, começou a desenvolver esta estratégia em maio passado, quando afirmou que a vacina seria “um bem de interesse público”. No entanto, e ainda que o Executivo chinês tenha dito que poderá fabricar 600 milhões de doses em 2020 e 1 bilhão no ano que vem, a população chinesa a ser vacinada chega a 1,4 bilhão de pessoas. A margem para a exportação é limitada. Irene Bernal admite que “não há acesso ao acompanhamento dos contratos das vacinas chinesas e russas”.
Algumas opções ocidentais como a vacina da Universidade de Oxford e Astrazeneca afirmam que distribuirão seu produto sem buscar lucro. O preço é de pouco mais de três euros. Isto a tornou uma candidata prioritária para chegar a uma grande quantidade de países com poucos recursos, por meio do fundo de financiamento COVAX, que inclui outras farmacêuticas. A Moderna avisou que, embora imporá uma margem de lucro, não pensa em exigir os direitos de suas patentes para que suas descobertas possam ser aplicadas sem custo. Nos dois casos, as empresas acrescentam que essas disposições durarão até que a pandemia seja superada. Quem decide isso? Elas próprias.
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Pandemia dispara a corrida entre as grandes potências e farmacêuticas para aproveitar o novo mercado de vacinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU