17 Novembro 2020
A piracema é um fenômeno da reprodução dos peixes, que se deslocam até as nascentes dos rios, igarapés e lagos com bastantes plantas para desovar. Há três anos este processo natural não vem ocorrendo no rio Xingu, no Pará.
A reportagem é de Roberta Brandão, publicada por Amazônia Real, 15-11-2020.
Atualmente, os igarapés que alimentam o manancial, como Altamira, Ambé e Trindade, formam lagos quase secos que vão se cobrindo de peixes mortos. As comunidades ribeirinhas e indígenas são as mais prejudicadas pela falta do principal alimento das populações locais. Elas passaram a presenciar a situação todos os anos após o represamento da barragem da usina hidrelétrica de Belo Monte, administrada pela empresa Norte Energia.
Indígena Munduruku mostra peixe que não faz a piracema
(Foto: Divulgação)
Com a falta de peixes e a baixa vazão do rio Xingu, os indígenas da etnia Kuruaya estão isolados, pois já não é possível navegar de barco como antes. Também não há água potável e, mesmo morando ao lado de uma estação da gigante da hidrelétrica, muitas comunidades, ironicamente, permanecem no escuro – é um apagão recorrente. A usina entrou em operação em 2016.
Sofrendo graves problemas de insegurança alimentar, cerca de 150 pessoas, entre pescadores, ribeirinhos, pequenos agricultores e indígenas Kuruaya e Xipaya dos municípios de Altamira, Senador José Porfírio, Brasil Novo, Anapu e Vitória do Xingu interditaram a rodovia 230 (Transamazônica), na altura do quilômetro 27, no dia 9 de novembro.
Apenas ambulâncias e carros de pequeno porte podiam passar pela rodovia. O protesto seguiu ao longo da semana. O ato pacífico foi acompanhado Polícia Rodoviária Federal (PRF), mas não houve tentativa de remoção dos manifestantes. O protesto acabou na sexta-feira (12) após uma reunião das lideranças no Ministério Público Federal.
De acordo com as lideranças, o ato exigiu a liberação, entre novembro de 2020 e março de 2021, de água suficiente para possibilitar a ocorrência da piracema na Volta Grande do Xingu. A vazão precisa ser mantida em 16.000 metros cúbicos de água por segundo para que a piracema volte a ocorrer, afirmou um manifestante.
Em outubro passado, a empresa Norte Energia deixou entrar na Volta Grande do Xingu apenas uma média de 800 metros cúbicos de água por segundo, afirmam as lideranças.
O protesto na rodovia Transamazônica aconteceu como um ato de desespero em meio à necessidade de isolamento da pandemia de Covid-19. Também foi uma forma de chamar a atenção diante do silêncio e da falta de diálogo da empresa Norte Energia. A resposta da hidrelétrica tem sido entrar na Justiça.
“O povo perdeu o rio. Em alguns pedaços, o rio Xingu virou uma poça d’água no meio do caminho”, denunciou a educadora social Ana Barbosa, do Movimento Xingu Vivo. Sem uma vazão mínima de 16 mil metros cúbicos por segundo na Volta Grande do Xingu, os peixes não conseguem nadar rio acima para se reproduzirem. A seca do Xingu em 2020 é uma das mais severas dos últimos tempos. Em outubro, o volume de água do rio sofreu uma diminuição de quase 40% em relação ao mesmo mês do ano passado.
“Eu moro aqui há 64 anos e nunca tinha visto um sequeiro desses, com os peixes morrendo. Nessa área da vazão reduzida, não tem mais peixe. É uma situação de pobreza extrema, empobrecimento extremo causado por Belo Monte. As pessoas não têm mais segurança alimentar”, disse ao site Brasil de Fato, Antonia Melo, fundadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), uma organização que atua para proteger as comunidades da região desde 2008.
Vazão diminuiu 80% A Norte Energia tem demandado um volume de água para uso na usina de Belo Monte que chega a diminuir 80% da vazão normal da Volta Grande do Xingu. É o que a empresa chama de “hidrograma de consenso”, esquema que queria aplicar desde novembro de 2019. Até o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na gestão do ministro Ricardo Salles, considerou essa proposta inviável e emitiu um despacho no início deste ano para elaborar um hidrograma alternativo.
A empresa entrou na Justiça com um recurso contra o despacho do Ibama, que foi indeferido em primeira instância. O processo está tramitando no Tribunal Regional Federal da 1a. Região (TRF1), em Brasília. Ao mesmo tempo, a empresa diz estar em diálogo com as comunidades locais.
“A Norte Energia sempre solta nota [a última publicada no jornal O Liberal], através das suas terceirizadas, afirmando que tem diálogo. Só que esse diálogo não existe. Sempre é um diálogo do ponto de vista do empreendedor, daquilo que ele acha que deva ser feito com as pessoas que tiveram seus direitos violados”, diz a ambientalista Ana Barbosa. “Isso se estende desde 2011 quando ela começou a se instalar. Isso não é falácia e nem mentira, porque estão sempre ocorrendo ações. A última ação contra a Norte Energia é da Defensoria Pública estadual. Que ganhou, inclusive a última ação, por conta de uma condicionante que não foi cumprida.”
A região da Volta Grande do Xingu tem 23 comunidades e a presença de quatro etnias indígenas – Kuruaya, Xipaya e Yudjá/Juruna -, sendo que duas ainda lutam pela demarcação de seus territórios. Essas populações habitam o trecho de 100 quilômetros entre as cidades de Altamira, Anapu, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu, e estão sendo as mais prejudicadas pela seca do rio.
As mudanças drásticas no meio ambiente são sentidas diariamente pelas populações tradicionais. A indígena Lorena Curuaia viu a vida de seu povo se transformar em um pesadelo. “Os impactos que a gente sente são todos. Primeiro na nossa vida cultural, na nossa paz, na nossa saúde mental que tá terrível, porque a gente não tem mais condição de vida na Volta Grande. Àgua é vida, né? E você perder um direito que é primordial é perder, praticamente, a vida, né?”, lamenta Lorena.
Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que as questões de vazão reduzida no rio Xingu são de competência do Ibama. Em nota, o órgão de proteção à vida indígena afirma que pode apenas monitorar o cumprimento das medidas de obrigação do empreendedor. Mas, mesmo no caso de violação, a Funai se restringirá a levar o fato ao conhecimento do Ibama. No parecer da Funai ao Ibama acerca da emissão da Licença de Operação, a fundação se manifestou favorável à vazão, desde que fossem garantidos o modo de vida dos povos impactados.
“Eles acham que queremos baderna. Mas você acha que é fácil ficar aqui na estrada debaixo do sol? Em tempos de pandemia, expondo as nossas vidas? Mas não vamos parar o ato, porque não deram uma resposta. Estamos sendo tratados como bichos e não como seres humanos. Quem pode tomar aquela água? Morar ao lado de uma hidrelétrica e não ter luz e ainda querem implementar mais um hidrograma”, crítica Lorena.
O hidrograma da Norte Energia, ao qual se referem a indígena Lorena Curuaia e a Funai, é o planejamento da empresa que estabelece os valores mínimos de água do rio Xingu. É eles que serão utilizados para viabilizar o funcionamento das turbinas hidrelétrica de Belo Monte. Se já não bastasse uma das secas mais duras dos últimos 50 anos, o estresse hídrico que a usina tem gerado no rio tem causado a morte da flora e fauna em torno do Xingu.
Desde o início do funcionamento de Belo Monte, a vazão normal da Volta Grande do Xingu, um trecho de cerca de 100 quilômetros no curso do rio, foi alterada drasticamente para desviar as águas que movem as turbinas da usina. A Norte Energia propôs a liberação de um volume de água considerado de longe insuficiente para a reprodução da fauna por especialistas de cerca de oito universidades brasileiras (o chamado Painel de Especialistas), pelo Ministério Público Federal, pelo Ibama e pela Funai.
Em 2019, o Ministério Público Federal (MPF) promoveu vários eventos para tratar do hidrograma da Volta Grande do Xingu. Foi realizada uma vistoria em fevereiro do ano passado, que resultou em um relatório. O documento revela o abandono de comunidades que sofrem os danos mais graves da barragem de Belo Monte.
“Eu faço parte das mobilizações pelos núcleos. Queremos ter os direitos os nossos direitos reconhecidos, os direitos que nos assistem devido aos impactos de Belo Monte e Belo Sun”, afirmou um garimpeiro artesanal da Volta Grande do Xingu que prefere não se identificar com medo de represálias. “Hoje a sociedade e órgãos vêm tentando nos incriminar e nós não somos criminosos. Ontem eu quase não dormir, mas amanhã estarei lá, fechando a Rodovia desde às 4 horas.”
Procurados pela Amazônia Real, o Ibama e a empresa Norte Energia não retornaram os contatos da reportagem.
Em nota publicada em seu site, a Norte Energia disse que “parte dessas reivindicações não tem relação alguma com as obrigações da Usina Hidrelétrica Belo Monte, pois foram encaminhadas por comunidades que não estão situadas na área de influência do empreendimento”. “Com relação às pautas que dizem respeito às áreas onde há influência do empreendimento, particularmente os indígenas ribeirinhos, a Norte Energia está à disposição para agendamento de reunião, tendo como condição para tal, a liberação prévia e total da BR-230.”
As lideranças reunidas no protesto da rodovia Transamazônica pediram apoio do Ministério Público Federal, para o órgão ingresse com uma ação judicial contra a empresa e diversos órgãos federais.
“Requeremos que sejam acionados juridicamente os seguintes órgãos: Ibama, responsável pelo licenciamento de Belo Monte; Agência Nacional das Águas (ANA), responsável pela outorga de águas do Xingu para a Norte Energia; SPU, responsável pela gestão territorial das ilhas e margens do Xingu; Funai, responsável pela política indígena; Norte Energia, responsável pela hidrelétrica de Belo Monte; Prefeituras de Altamira, Senador José Porfirio, Brasil Novo, Anapu e Vitória do Xingu, responsáveis pelas políticas públicas para as comunidades da Volta Grande do Xingu, e trechos a jusante e montante de Belo Monte, afetadas pela hidrelétrica;e SEMAS, responsável pelos licenciamentos ambientais estaduais.
“O pedido de ação judicial se dá em função da situação de calamidade a que estas comunidades estão submetidas em função da seca do Xingu e de seus afluentes, ocasionada, entre outros, pelo desvio das águas do rio para as turbinas de Belo Monte, e que tem levado a quase extinção da fauna aquática e da flora que alimenta a mesma, além de impossibilitar a navegação, a atividade comercial e de subsistência da pesca, e a agricultura as margens do Xingu, como amplamente noticiado pela imprensa, apontado por estudos científicos e verificado pelos próprios órgãos federais competentes”.
O documento, do qual a Amazônia Real teve acesso, foi assinado pelas lideranças ribeirinhas, indígenas, pescadores e colonos dos Núcleo Guardião do Pará: PA Ressaca; Travessão do Miro; Belo Monte do Pontal Belo Monte 11; Ilha Canari; Ilha do Amor; Passaí; Escalasso; Espelho; Jabotá Jabuti; Bambu; Paranã; São Francisco; Três lrmãos; Muriá; Boa Esperança e Comunidade Ressaca; além de indígenas da Kuruaya da Aldeia Yawá; Xipaya da Aldeia Kaniama da Volta Grande do Xingu; Juruna da Terra lndígena Paquiçamba: comunidades Kamypa, Mayaka e Pupekuri; e da Associação lndígena da Volta Grande do Xingu.
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Rio Xingu não tem piracema por causa de Belo Monte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU