16 Novembro 2020
"O apelo à unidade, à fraternidade, à comunhão, em nenhum caso servirá para manter um sistema tantas vezes denunciado pelo Papa Francisco como destruidor e esclerosante: o clericalismo", escrevem Patrice Dunois-Canette, ex-jornalista especialista em aconselhamento e formação em laicismo e religiões, Jean-Louis Loirat, ex-diretor de assuntos sanitários e sociais da administração pública e Hélène Loirat, professora e pesquisadora emérita de química, em artigo publicado por Le Monde, 11-11-2020. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Segundo os signatários deste artigo, a Igreja Católica deve voltar com urgência à cultura de debate que tinha nas suas origens, caso contrário, no Ocidente corre o risco de ser reduzida à museologia.
Os termos "unidade", "fraternidade", "comunhão", mobilizadores pelo que prometem, tornaram-se demasiadas vezes, na Igreja, "palavras-escudo", usadas para evitar ter que colocar em discussão um sistema que produz crimes sexuais e abusos espirituais. Mas também para consolidar uma "ordem sagrada" que fala, age e decide por si mesma, condena em nome de Deus, estabelece uma segregação de fato entre os batizados (clero e leigos) e mantém um insuportável desnível entre os sexos. "Unidade", "fraternidade", "comunhão" são muitas vezes, nos lábios das autoridades eclesiásticas, mas também dos praticantes da sensibilidade devocional ou que querem espiritualizar tudo, "palavras totem", que impedem criticar livremente os modos de ser e de celebrar, o modo que a Igreja tem de entender o amor e a sexualidade, sua relação com as mulheres, sua governança e outros temas delicados, que são sempre postergadas para um tempo futuro ou para uma instância superior.
São hoje “palavras-amuleto” colocadas em primeiro plano para tentar estancar as consequências das experiências vividas pelos batizados, de forma ainda mais aguda neste período de crise sanitária: as relações com os sacerdotes fornecedores de devoção eucarística; os difíceis confrontos com autoridades que polemizam, de forma bastante irresponsável, a retomada da participação à Missa. Como esquecer que é importante, antes de tudo, mobilizar os fiéis para que o verdadeiro culto seja prestado ao irmão aflito, doente, pobre, isolado; que o mais importante é reduzir a pressão sobre os profissionais de saúde, proteger médicos e enfermeiros idosos? E o que revela sobre a Igreja Católica essa obstinação em dar a sensação de que se existe apenas "com" e "para" o culto, o que nos diz sobre sua forma de entender a vida cristã? Essas perguntas permanecerão, seja qual for o perímetro que poderá ser estabelecido para reuniões em locais de culto.
E, finalmente, é realmente necessário citar as palavras pelo menos questionáveis de bispos que parecem não querer entender o que a expressão “Je suis Charlie” significa? Quem parece rejeitar a ideia de que as caricaturas possam ser um antídoto poderoso para os "demônios" das religiões e que possam contribuir para os debates que libertam de lógicas religiosas às vezes mortais?
O apelo à unidade, à fraternidade, à comunhão, em nenhum caso servirá para manter um sistema tantas vezes denunciado pelo Papa Francisco como destruidor e esclerosante: o clericalismo.
Hoje, na Igreja, todas as vozes devem ser ouvidas. Com sua raiva, seu sofrimento, sua impaciência, suas paixões ou seus preconceitos. Todas as vozes, inclusive as que se irritarão com o ponto de vista aqui apresentado, ou com algumas de nossas afirmações.
Sim, o debate comporta um sofrimento, o de ser contraposto, ferido por opiniões contrárias. Comporta também um sentimento de culpa, de contrastar e magoar com opiniões contrárias ... Sim, o debate abala a tranquilidade de uma identidade herdada, de uma forma de se relacionar, dentro da Igreja, que ainda muitas vezes faz dos batizados usuários passivos, indivíduos deferentes e dóceis, e não pessoas livres. Sim, colocar em discussão uma unidade-uniformidade paralisante e empobrecedora pode ser um teste duro para os católicos, pode até levar alguém a se afastar, a se separar, a escapar desse pertencimento... Quem pode negá-lo? Quem divide?
Mas em vez de nos perguntarmos "É possível evitar debates e divergências na Igreja?", a verdadeira pergunta talvez seja: "Em que condições conduzir esses debates e admitir essas divergências"? A Igreja dos primeiros séculos tinha como nome justamente "Fraternidade". Aqueles que, socialmente divididos, eram reunidos pela Igreja, eram convidados a dialogar, discutir, propor, debater. Como debater hoje, como assumir o risco dos desentendimentos e tentar, apesar de tudo, já viver a condição dada pelo batismo de irmãos e irmãs de Cristo, e de filhas e filhos de um mesmo Pai?
Não pode haver unidade, fraternidade, comunhão na Igreja sem passar pelo debate, sem que o debate seja buscado, promovido, instituído, organizado, conduzido de forma confiante, livre e democrática. Debater na Igreja hoje é entender que a intuição dos fiéis, o bom senso - o sensus fidei, para falar como um teólogo – não pode ser confundido com a imaturidade, a inexperiência, a inconsciência, a incoerência ou a irresponsabilidade.
Significa dar a si mesmo a oportunidade de adquirir aquela “cultura do debate” com direitos e deveres, regulamentação e respeito pelas regras do jogo que nós, católicos, não temos.
Quem divide? Os partidários de restaurações impossíveis? Ou aqueles que pressentem que terão que abandonar os velhos hábitos, abalar a tranquilidade de uma identidade herdada? Quem divide? Os defensores da "Igreja de sempre", que contestam o Concílio Vaticano II ou aqueles que veem claramente que, se nada mudar, a Igreja no Ocidente corre o risco de ser reduzida a museologia? Aqueles que testemunham o colapso, ficando assustados, temerosos, amedrontados e passivos, ou aqueles que querem o debate para que a Igreja viva, se reinvente, se refunde, esteja ao serviço de todos?
Quem divide? O temor digno de pesadelo do debate na Igreja, em nome de uma suposta unidade a ser preservada a todo custo, é destrutivo e suicida.
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“A recusa do debate na Igreja, em nome de uma unidade que se acredita que deva ser preservada, é suicida” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU