"Que implicações têm nos sabermos feitos à semelhança de Deus? Como realizar esta semelhança? Deus nos chama a ser sua luz no mundo, reflexo de sua imagem. O evangelho nos convida a nos inspirarmos em Jesus, que não se deixou seduzir por falsos elogios. Vivemos em um tempo de simulacros em que tudo parece, e na verdade não é. Um mundo com apelo profundamente narcísico, idólatra da própria figura, circunscrito em si mesmo, sem abertura para Deus e expansão dos seus potenciais que pode nos ludibriar e diminuir, nos confundir de quem somos e o que realmente é essencial."
A reflexão é de Soraia Dojas Melo Silva Carellos. Ela possui graduação em psicologia pela PUC Minas (1983) e mestrado em psicologia pela Universidade do Rio de Janeiro - UFRJ (2001). Atualmente é professora no curso de Psicologia da PUC Minas. É membro da Rede Celebra, coordenadora da Equipe de Liturgia na Paróquia Igreja de Santana Serra em Belo Horizonte, onde também participa de grupos de leitura orante da Palavra.
1ª Leitura - Is 45,1.4-6
Salmo - Sl 95,1.2a.3.4-5.7-8.9-10a.c (R. 7ab)
2ª Leitura - 1Ts 1,1-5b
Evangelho - Mt 22,15-21
A liturgia deste domingo nos conduz à experiência de Deus como único Senhor da história e de cada um de nós. Não existe outro, Ele é o Senhor de toda a humanidade. Refletimos a sua luz no mundo, uma vez que somos sua imagem e semelhança.
No evangelho (Mt 22,15-21) Jesus está em Jerusalém e, como acompanhamos nos últimos domingos, a cada momento os conflitos se acirram entre Jesus e as lideranças religiosas e políticas daquela época. Neste episódio são os discípulos dos fariseus e os herodianos que armam uma cilada para Jesus. Os fariseus que rejeitavam o poder dos romanos, mas não se rebelavam, usufruindo das benesses. Para eles era possível conciliar fidelidade a Deus e normalizar sujeição ao sistema que os dominava. Já os herodianos apoiavam e reconheciam o poder imperial do César. Eles chegaram fazendo elogios a Jesus e trouxeram uma questão ardilosa: “É lícito ou não pagar imposto a César?” Pergunta provocadora, que colocaria dificuldades ao Mestre de Nazaré. Se Jesus respondesse sim ao pagamento do tributo trairia o povo e se respondesse não estaria incitando a subversão contra o César.
Jesus percebeu a falsidade dos elogios e a maldade contida na questão colocada. Explicitou a hipocrisia dos seus interlocutores e pediu que lhe mostrassem a moeda e dizendo de quem era a figura e inscrição nela contida, Jesus os coloca diante do equívoco da própria pergunta. A moeda era instrumento de poder político, o tributo tem lugar de dominação. Aí está a preocupação central deles, estão preocupados com o poder e com dinheiro. Reconheciam a soberania de César, mas não reconheciam a soberania de Deus.
A partir da resposta deles de que César figurava na moeda, Jesus os surpreende dizendo: “Dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Esta resposta de Jesus, em um primeiro momento, nos intriga, nos desinstala. Ele não negava a existência e a exigência da ordem política e econômica, mas apontou definitivamente para Deus. Onde está e qual é a imagem de Deus? Qual a relação entre o que está colocado a César e a Deus? Quem era o soberano verdadeiro?
Jesus, ao fazer esta distinção, nos possibilita perceber que o que é de César, a moeda, estava circunscrita a um espaço, a um império de um rei circunscrito. As dimensões ficam claras. Deus não tem circunscrição! Frente a todos os poderes, a sua soberania é universal.
Mas, e o que pertence a Deus? A Deus pertence toda a humanidade, toda a criação, inclusive o metal da moeda. A imagem de Deus está em cada ser humano. Fomos feitos à sua imagem e semelhança. Como nos diz um estudioso: “até mesmo os césares pertencem a Deus”. Aqui se desvela onde está centrada a preocupação de Jesus: no ser humano. O humano é de Deus, ele é quem tem valor para Deus. Santo Agostinho diz:
“Assim como César busca a sua imagem em sua moeda, assim Deus busca a sua em tua alma”, e noutra parte, “O que Deus te pede? Sua imagem.”
A primeira leitura (Is 45,1.4-6) na sua relação com o evangelho nos ajuda a aprofundar um pouco mais a compreensão dos ensinamentos de Jesus.
O imperador Ciro, da Pérsia, depois de conquistar a Babilônia, liberta o povo de Israel permitindo que voltassem para sua terra. Diz o texto, Deus o tomou pela mão, escolhendo um rei estrangeiro para realizar a justiça. Ciro, chamado ungido de Deus, que quer dizer messias, abriu caminho para o povo de Deus.
Jesus, o verdadeiro Messias, ao dizer “dar a Deus o que é de Deus” abriu caminho para o ser humano voltar-se para Deus, possibilitando que o homem retornasse a ser quem ele é de fato, a imagem do criador. Na sua morte Jesus atraiu para si tudo o que desfigura o ser humano e na sua ressurreição ele restituiu a imagem de Deus a cada pessoa, homem e mulher. Assim, Jesus aponta para o que é essencial, para o que realmente importa.
Que implicações têm nos sabermos feitos à semelhança de Deus? Como realizar esta semelhança? Deus nos chama a ser sua luz no mundo, reflexo de sua imagem. O evangelho nos convida a nos inspirarmos em Jesus, que não se deixou seduzir por falsos elogios. Vivemos em um tempo de simulacros em que tudo parece e na verdade não é. Um mundo com apelo profundamente narcísico, idólatra da própria figura, circunscrito em si mesmo, sem abertura para Deus e expansão dos seus potenciais que pode nos ludibriar e diminuir, nos confundir de quem somos e o que realmente é essencial.
Além disto, observamos o inaceitável se normalizar. Os valores estão invertidos. Parece natural que em tempos de pandemia nos preocupemos prioritariamente com a economia, o lucro em detrimento da vida. O poder econômico é o que move o mundo, e não o dinheiro justamente distribuído para que a dignidade humana e da criação se afirme. Parece que é assim que os césares de hoje querem. Está faltando, nessa história humana tão patriarcal, espaço para o feminino de Deus que cuida da vida.
O que é ser cristão neste contexto? Jesus convida-nos a ser presença de Deus no mundo. Ele não foge aos seus interrogadores. Ao contrário dos fariseus, Ele mostra não ser possível harmonizar a semelhança de Deus normalizando injustiças. Nossas responsabilidades civis têm que estar subordinadas à nossa realidade de filhos de Deus. Como o salmista, que possamos entoar cânticos de louvor ao Senhor do Universo, reconhecendo Nele toda a verdade e o sentido da vida. Que a existência seja um louvor, agradável e verdadeiro como Deus quer.
Paulo, na segunda leitura (1Ts 1,1-5b), agradece a Deus a fé, o amor e a esperança da comunidade dos tessalonicenses. Essa ação de graças nos ajuda mais um pouco a pensar que é preciso para realizarmos a imagem de Deus em nós: aderir a Jesus, transformar as relações entre as pessoas e não perder a esperança. Neste momento, que todo o mundo passa por desafios semelhantes, é preciso reafirmar estas realidades comuns e buscar avivar a esperança e a solidariedade. Nós, mulheres e seguidoras de Jesus deste tempo, precisamos não perder de vista a importância de nos colocarmos e de lembrarmos às mulheres próximas e distantes o seu valor, dando voz a muitas que são silenciadas. De não nos furtarmos aos nossos lugares no mundo, inclusive na Igreja, promovendo relações de parceria e cancelando relações de sujeições. Precisamos nos abraçar e fazer expandir o feminino que está faltando na figura deste mundo.
Quero encerrar lembrando a oração pós comunhão: “Dai-nos ó Deus, colher os frutos da nossa participação na Eucaristia para que, auxiliados pelos bens terrenos, possamos conhecer os valores eternos”. Que os bens terrenos possam ser instrumento e ocasião de viver e experimentar os verdadeiros valores, pois só assim o ser humano se realizará. Que possamos “dar a Deus o que é de Deus”.
Paz e bem a todos e todas!