06 Outubro 2020
Pressionada pela indústria de comida-porcaria, agência dá mais um passo para ignorar evidências científicas favoráveis a modelo de alertas sobre excesso de sal, açúcar e gorduras.
A reportagem é de João Peres, publicada por O Joio e o Trigo, 05-10-2020.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) caminha para piorar uma decisão que já era problemática. O órgão público apresentou a proposta final para a adoção de um modelo para a rotulagem frontal de alimentos processados e ultraprocessados com excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. Como esperado, inclina-se para que as embalagens tenham um sistema de lupas inspirado no que foi adotado pelo Canadá.
A resolução e a instrução normativa que a acompanha precisam ser aprovadas pela diretoria, passo final para um processo que se arrasta desde 2014. Em seguida haverá um prazo para que a sociedade civil faça uma última tentativa de melhorar aquilo que foi proposto pela agência. Do outro lado, é esperado que a indústria mantenha a intensa pressão que exerceu nos últimos anos.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) entrou na sexta-feira com um mandado de segurança para que a agência seja obrigada a tomar uma decisão esta semana. A falta de diretores, um feito do governo Jair Bolsonaro, ameaça atrasar ainda mais a sequência do processo, iniciado em 2014 e previsto para terminar no mês passado.
O sistema brasileiro tem tudo para ser o pior entre os adotados em toda a América Latina nos últimos anos. A Anvisa decidiu ignorar o sistema de alertas criado no Chile em 2016, alvo de intenso lobby contrário de corporações como Nestlé, Coca-Cola, Danone, Unilever, Pepsico. Dezenas de pesquisas científicas comprovaram que esse modelo, em formato de octógonos de fundo preto, é o que melhor funciona no sentido de desencorajar o consumo de ultraprocessados. De lá para cá, Uruguai, Peru e México caminharam no mesmo sentido. Esse sistema tem o apoio dos principais pesquisadores em alimentação e nutrição do mundo.
Modelo proposto pela Anvisa
Na etapa anterior, a Anvisa havia usado “medo” como justificativa para não adotar o sistema de alertas. A agência chegou a dizer que esse sentimento apareceu em uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília. Como mostramos no Joio, a Gerência-Geral de Alimentos distorceu evidências científicas para chegar a esse resultado, desautorizado pelas próprias pesquisadoras.
O novo relatório da agência deixou de lado essa argumentação. Mas, ainda assim, finca pé no sistema canadense. Dá dois anos para o início da implementação da medida, o que é tempo suficiente para que a indústria reformule produtos a fim de evitar que estampem as lupas (o que é um problema, como veremos).
Em linhas gerais, a decisão da agência parece muito mais baseada naquilo que o ambiente político do país permite aprovar do que na ciência. Os alertas que tanto contrariam a indústria poderiam não sobreviver ao presidente da agência, bolsonarista, e aos desmandos do ministro da Saúde e do presidente da República.
O problema é que essa medida significa vidas salvas ou perdidas. Uma forte redução no consumo de açúcares, gorduras e sal poderia ao menos conter o crescimento dos índices de diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças que são as maiores responsáveis por mortes no país.
Modelo de alertas foi adotado no Chile, no Peru, no Uruguai e no México
Em outras palavras, uma medida frágil ou malfeita significa que o Brasil promoverá um experimento massivo em sua grande população. Teremos um sistema de rotulagem pior que o dos vizinhos, e com muito atraso. Para piorar, demorará alguns anos para saber se o sistema adotado funciona ou não. Uma decisão em contrariedade à ciência tem menor chance de ser efetiva. E, então, pode ser tarde demais para tomar o caminho correto.
A proposta de resolução apresentada pela Anvisa tem algumas fragilidades importantes:
1. Os pontos de corte
O perfil de nutrientes, ou seja, os índices utilizados para definir se um produto é “Alto em”, é mais brando que o recomendado pela Organização Panamericana de Saúde (Opas). Será preciso que pesquisadores apliquem a proposta da Anvisa sobre centenas de produtos disponíveis nos supermercados para que tenhamos uma ideia mais precisa sobre fragilidades e virtudes do modelo apresentado.
Mas uma observação rápida de marcas líderes permite vislumbrar problemas. Nas imagens a seguir, utilizamos o modelo proposto pelo Idec e pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, junto ao perfil de nutrientes da Opas.
A bolacha Levíssimo Água e Sal, por exemplo, escapa do selo de Alto em Sódio
O Nescau Prontinho Light escapa do selo de Alto em Açúcares Adicionados, mesmo tendo 12 gramas por embalagem – a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda um consumo máximo aproximado de 50 gramas para adultos, e esse é um produto voltado a crianças
O Club Social e o Club Social Integral escapam do selo de Alto em Gordura Saturada
O molho Pomarola não terá o selo de Alto em Sódio
Uma questão importante relacionada à rotulagem frontal é que qualquer mudança pode mudar a percepção das pessoas e, portanto, a eficácia da medida. O tamanho das letras, a posição do “Alto em”, as cores, tudo isso tem sido testado ao longo dos últimos anos para ver o que funciona melhor para guiar decisões que são tomadas em segundos diante de uma prateleira repleta.
Nada indica que a Anvisa tenha testado o funcionamento do design adotado. Não sabemos se ele é mais ou menos legível que o sistema canadense, ou que os sistemas de alertas.
Como o relatório da agência enfatiza, o Brasil tem um alto índice de analfabetismo e, mesmo entre pessoas alfabetizadas, os rótulos dos alimentos podem ser difíceis de entender. O sistema de alertas tem mostrado um bom funcionamento entre esses grupos populacionais porque, na pior das hipóteses, a pessoa pode comparar o número de alertas: como diz a publicidade oficial do governo chileno, quanto menos selos, melhor.
Ao juntar todos os nutrientes críticos num único símbolo, a Anvisa dificulta a comparação entre produtos. Levar mais tempo para entender um rótulo pode fazer com que muitas pessoas simplesmente o ignorem. Teremos de descobrir na prática como será o funcionamento.
No mesmo sentido, o Brasil será o único país da região a contar com a expressão “adicionado” ao lado de açúcares. A alegação é de que é preciso diferenciar entre os açúcares naturalmente presentes e aqueles que foram incorporados no processo industrial.
O problema é que isso dificulta ainda mais a compreensão. O propósito central do sistema de rotulagem é simplificar as escolhas. Na luta entre lobby e evidência científica, o caminho do meio pode acabar sendo o caminho dos sonhos da indústria – e dos pesadelos da saúde.
O México será o primeiro país a ter um aviso sobre a presença de adoçantes, expressando com clareza que o produto não deve ser consumido por crianças. É uma vacina àquilo que aconteceu no Chile, onde as corporações substituíram massivamente o açúcar por edulcorantes na tentativa de evitar um selo de Alto em.
No Brasil, a Anvisa descartou logo de cara o pedido da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável em favor de um aviso. Agora, perto da resolução final, admite que esse é um risco e pede que haja um acompanhamento da situação para, quiçá, futuramente promover uma alteração.
“Esse monitoramento possibilitará uma compreensão mais precisa da extensão de uso dos diversos tipos de edulcorantes na composição dos alimentos ofertados no país e permitirá que sejam realizadas avaliações de exposição mais realistas para verificar se o consumo destas substâncias pela população brasileira ou por certos grupos, como crianças e gestantes, supera os respectivos limites máximos de segurança que estão estabelecidos.”
Mais um pedaço de história que reforça a ideia de que passaremos por um experimento. Pode parecer pouca coisa para um país que está em meio a um experimento massivo com a pandemia do novo coronavírus. Mas, quando pensamos que doenças relacionadas a alimentação estão entre os piores problemas de saúde do país, e quando observamos que essas mesmas doenças são um dos motivos para haver tantas mortes por Covid-19, o problema não é tão pequeno assim.
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Pressionada pela indústria de comida-porcaria, Anvisa se aproxima de decisão frágil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU