05 Outubro 2020
‘Santo’ ou ‘Profeta’ não chega a ser um exagero para quem de fato o conhece. Fernando de Góis tem uma trajetória de vida desconcertante e inquieta a todos que se assumem como seguidores de Cristo, comenta Cesar Sanson, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, colaborador e parceiro do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 04-10-2020.
Por ocasião da celebração do dia de São Francisco de Assis, 04 de outubro, lembrei que outro dia recebi de um amigo num desses grupos de whatsapp a sugestão para assistir um vídeo com a mensagem: “Vale a pena tomar um tempo e assistir, conhecer um Santo de nossos dias. Arriscaria dizer, um São Francisco de nosso tempo”.
O “um Santo de nossos dias” é uma referência a Fernando de Góis que se ordenará padre aos 62 anos em novembro na Prelazia de São Félix do Araguaia: “Fernando... Escolhido de Deus! Em São Félix para continuar o serviço de dom Pedro Casaldáliga”, comentou outra colega em outra mensagem do grupo. Muitos consideram Fernando um profeta. ‘Santo’ ou ‘Profeta’ não chega a ser um exagero para quem de fato o conhece. Fernando tem uma trajetória de vida desconcertante e inquieta a todos que se assumem como seguidores de Cristo.
É Fernando de Góis quem fala um pouco de sua trajetória num diálogo com Frei Gilvander Moreira. A íntegra do vídeo encontra-se no final desse texto.
Filho de uma família de sete irmãos, de pais sergipanos, como ele mesmo conta, acabou no seminário dos frades Carmelitas em Curitiba (PR) pela influência religiosa da mãe. Não ficou, porém, muito tempo da Congregação. “Resolvi abraçar uma vida mais radical” ao comentar a sua opção em se dedicar as crianças e adolescentes moradoras de rua na fria Curitiba. Sobre o rompimento com a Ordem dos Carmelitas comenta: “A Congregação não concordava com o meu trabalho nas ruas. Então eu falei que se não fizesse isso estava negando o evangelho e para ser fiel ao evangelho eu deveria estar no meio do povo. No meio de desavenças, entre a Ordem dos Carmelitas e os pobres, eu fiquei com os pobres”.
E foi assim. Saindo da Congregação foi morar em uma vila na periferia de Curitiba, na comunidade Profeta Elias: “O profeta que lutou por terra e justiça, um profeta de luta, de resistência, que não se entregou ao poder capitalista”, diz ele.
O barraco na favela era apenas uma referência. A maior parte do tempo vivia com as crianças nas ruas e dessa convivência nasceu um projeto que se tornou uma referência no trabalho com crianças e adolescentes: a Chácara Meninos de Quatro Pinheiros. Após 22 anos coordenando esse trabalho, Fernando se sentiu desafiado para novas missões e pôs o pé na estrada. No caso, pôs o pé literalmente mesmo. Fernando sempre calçou a vida inteira sandálias de borracha, essas que conhecemos como havaianas. Lembro que me impressionava muito quando o via, ainda jovem, mesmo no rigoroso inverno curitibano sempre de sandálias. Foi até mesmo chamado por um ex-governador de Estado de “monge pé-de-chinelo”, mas no caso o comentário era depreciativo porque Fernando sempre incomodou os poderosos com suas denúncias.
Sobre essa nova opção de vida, Fernando comenta: “Fui fazer uma experiência de andarilho e morar nas ruas de São Paulo, na Cracolândia (...) porque Deus pede a nossa presença nos lugares aonde ninguém quer ir”.
Caminhou 600 km entre trecheiros, andarilhos, moradores nas estradas e prostitutas. Nessa caminhada que posteriormente se estendeu de São Paulo até o Nordeste levou pouca coisa. “A bagagem mede o tamanho da vaidade do viajante e eu só tenho um corpo, pra que carregar um monte de coisa desnecessária (...) Fui rezando, refletindo e me ‘alimentava’ com a história de vida dos trecheiros e andarilhos”. Quando encontrava alguém na estrada “me perguntava, quanto tempo faz que esse cidadão não recebe um abraço, dava um abraço, rezava um salmo e fazia a escuta (...) Eu sempre fui evangelizado pela população de rua pela escuta pedagógica e amorosa”. Descreve a experiência de trecheiro e andarilho como um “momento forte de conversação e humanização”.
Por quase dois anos conviveu com os moradores da Cracolândia em São Paulo. “Quando me deparei com a Cracolândia foi o momento mais difícil da minha vida, foi a experiência que mais me desafiou. Como vou rezar com um povo tão desumanizado, desvalido e judiado”? Mas respondeu a si mesmo: “Se você não consegue viver com eles, você não tem o direito de rezar o Pai Nosso e receber a comunhão”. Continua Fernando: “O que eu podia fazer era escutar, fazer silêncio, ficar vendo eles, um período de muitos desafios e muito aprendizado”.
Nessa caminhada desenvolveu a pedagogia dos sonhos que define como “uma forma de motivar as pessoas... se você tem sonho, tem esperança... e sonhar pequeno ou sonhar grande dá o mesmo trabalho, então vamos sonhar grande, enquanto se tem vida, tem esperança e o nosso Deus é o Deus da vida não quer ver ninguém sendo maltratado”.
Depois de um tempo nas ruas de São Paulo pôs o pé na estrada novamente e foi para o Nordeste. Chegou a Barra (BA) para visitar e escutar Dom Luis Cappio (bispo profundamente místico e que ficou conhecido pela greve de fome contra a transposição do rio São Francisco). Sobre Dom Cappio comenta Fernando: “Comblin diz que a gente precisa morrer na sombra de um profeta”. Foi em Barra que Fernando amadureceu a sua ida à Prelazia de São Félix do Araguaia. Incentivada por uma amiga, pôs o pé na estrada de novo.
“Quando cheguei a São Félix, o meu coração acelerou”, diz ele. Em São Félix conheceu dom Pedro Casaldáliga e chegou a conviver com ele por quase quatro anos. “Você sente quando uma pessoa é profeta... Só de ver ele mexer os lábios, a força de seu testemunho, só de estar perto sentia a sua luz e a sua esperança. Ele pegava a mão das pessoas e demorava para soltar”.
A ideia da ordenação veio com a visita aos presídios. “Ninguém queria ir para os presídios”. Fernando foi e lá muitos pediam o perdão, os sacramentos. “Então me senti provocado, o dever de levar o sacramento para essas pessoas”. Veio daí a motivação para a ordenação. “Mas eu não vou ser um padre de paróquia. O meu altar será nas ruas, nos prostíbulos, no lixão, nos presídios. Quero ser um padre das causas sociais, ligado as populações marginalizadas. Celebrar a vida, levar o sacramento, lutar pela justiça”, diz ele.
Ainda sobre a ordenação comenta Fernando: “Eu não quero me tornar um ministro ordenado, mas um servo ordenado para servir melhor essa população desumanizada e desfigurada. Levar vida, esperança e dar gás para que eles possam se unir, buscar caminhos alternativos de inclusão”.
Atualmente Fernando está em Confresa (MT), na diocese de São Felix do Araguaia. Lugar muito pobre. Foi para lá porque ninguém queria ir em meio a pandemia. “Deus me mandou nessa época... os caminhoneiros sem frete, as mulheres da prostituição sem programa pra fazer e em depressão, os presos em crise porque não podiam receber visitas, os hospitais abandonados pelos padres e pastores porque ficaram com medo da pandemia... Me chamaram e eu disse: eu vou, se eu morrer já tenho 62 anos e já vivi bastante e se Deus não me levar vou continuar trabalhando para Ele”. Em Confresa Fernando passou a cuidar dos mais pobres, sobretudo, indo atrás de comida. Segundo ele, “ninguém pode passar fome e quando a gente partilha, Deus multiplica”.
Sobre a sua ordenação que acontecerá no dia 01 de novembro comenta que será no meio dos pobres “as pessoas preferidas de Jesus Cristo”: “Vou me ordenar no meio do povo simples e a população marginalizada vai se fazer presente na minha ordenação, vai ser uma festa com o povo pobre e os pobres vão se sentar numa mesa farta”.
Conclui afirmando: “Os ricos já tem muitos padres se dedicando a eles, o meu tempo é para dedicar as pessoas que mais precisam”.
Acompanhe o diálogo de Fernando Gois com Frei Gilvander Moreira:
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“Um Santo de nossos dias. Arriscaria dizer, um São Francisco de nosso tempo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU