Por: Jonas | 27 Outubro 2015
“Agora sou um maloqueiro”, brinca o educador Fernando de Góis (foto), 57 anos, sobre sua nova condição. Desde fevereiro, ele mora numa “maloca” – termo usado pela população de rua para definir um grupo que vive numa determinada quadra, uma espécie de condomínio sem teto munido de marquise. A turma do Fernando é formada por 80 miseráveis e se abriga perto de um estacionamento na Rua São Bento, Praça do Patriarca, Centro Velho de São Paulo. Seu banheiro – a estação de metrô que dá nome à via. Comparado a outros, é lugar bom, limpo e seguro. Não sai barato.
Fonte: http://goo.gl/ulNSau |
A reportagem é de José Carlos Fernandes, publicada por Gazeta do Povo, 24-10-2015.
Para garantir pouso na maloca da São Bento, Góis teve de ganhar a confiança do dono da circunscrição, morador de um prédio abandonado, sujeito dado a distribuir catiripapos nos aventureiros que se assanham no território alheio. “Tive medo. Quando cheguei, encontrei gente machucada, mulheres chorando”, admite o criador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, ativista social dos mais respeitados, sobre as regras de convivência em seu novo endereço, o relento. Não faltou quem tentasse convencê-lo a sossegar a ideia. Em vão.
Góis nutre atração pela rua desde os tempos de frade carmelita, na década de 1980, quando largou o convento para viver numa favela da Vila Lindoia, em Curitiba. Pencas de religiosos à época fizeram o mesmo, inspirados pela Teologia da Libertação. A intenção de Fernando, contudo, era radicalizar. Sua opção pelos pobres incluía dormir no sereno – chegou a flertar com a Praça Rui Barbosa. O plano durou até ser tragado pelo projeto da chácara de Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba, a partir de 1992. Foram 22 anos de serviços prestados, tempo em que acolheu 800 crianças e adolescentes vítimas do abandono, da violência e do abuso. Não tinha quarto, não tinha folga. Difícil quem entenda, mas a rua, agora, é seu sabático.
Tíquetes
Nas imediações da Sé, não esconde a que veio – está ali para provar na carne o que o povo da rua sente. É experiência mística, à moda de Charles de Foucauld, o mendicante irmãozinho de Jesus, mas também ação política. Já bateu na porta do Ministério Público de São Paulo para tratar da truculência de alguns agentes públicos. E das filas que duram quatro horas. Sua fala diverte: acha as filas grandes o bastante para consumir um dia inteiro, entre tíquetes para pegar toalha, tíquetes para banho, tíquetes para um prato de comida. A burocracia é tamanha que desistiu de dormir em albergues: calculou que gastaria o mesmo tempo para atravessar o Mar Vermelho e o deserto do Sinai. Outros moradores devem achar o mesmo – e permanecem onde estão.
Fernando virou um expert no métier. “Sabia que tem de dormir atravessado? É para caber mais gente...” Dorme num saco de lixo bem grosso, “melhor do que colchão”. Recomenda. Durante o dia, parcerias: dois irmãos alcoólicos cuidam dos poucos objetos do ex-frade. Sua lida começa cedo – às 7 da manhã, uma hora antes dos “projetos” abrirem suas portas. Cata latinhas vez em quando, por uns trocos. À noite, conversa com a turma. Reza salmos com alguns. Os donos da rua perceberam que há calmaria onde quer que ele esteja, por isso deixaram que ficasse por ali. Sem ônus, ganhou seu lugar entre as praças do Patriarca e a Sé.
Em quase nove meses de rua, Góis se tornou uma notícia fresca para a pá de movimentos sociais e igrejas que atendem os deserdados do Centro paulistano, algo como mil pessoas. Chama atenção. Pobre de Marré Desci, mostra-se asseado e polido do alto de suas inseparáveis sandálias de borracha. Um nobre trajando brins. É o homem a quem um governador do Paraná desqualificou, apelidando-o de “monge pé de chinelo”. Sua presença ali é uma prova de que algo de fabuloso acontece no epicentro da pobreza da maior cidade da América do Sul.
É de cinema sua descrição das noites em que dezenas de freiras e frades dormem no chão da Sé, aninhados entre os esfarrapados. Parece ficção quando conta da “Igreja de Pedra”, expressão usada pelo padre Júlio Lancelotti para descrever as missas na Cracolândia, debaixo de “três mil” cachimbos sendo acesos durante a cerimônia. Em vez de cânticos, gritos daqueles a quem o juízo disse adeus: “Padre, roubaram meu cobertor”. Ouve choros de mulheres.
Cachimbos
“Descer” até a Cracolândia não estava nos planos de Fernando de Góis. Ao chegar à Sé, dois moradores de rua – Luís Ricardo e Francisco – o acolheram na Rua Boa Vista, por uma semana, com uma condição: que se alistasse como voluntário no projeto Restaura-me, da congregação dos missionários xaverianos, no bairro do Brás. Gostou do que encontrou e passou a desenvolver ali a “Pedagogia dos Sonhos”, dinâmica criada para os meninos de 4 pinheiros. Vai a pé, duas, três vezes por semana, e ali constrói um ninho, à revelia da decisão de que não iria se vincular a um único movimento. Quem sabe em visita ao bairro da Luz, onde grassa o crack, encontrasse um ponto de fuga.
Ninguém o encorajou – era perigoso. Marcou de ir num sábado, com guias de uma congregação do ramo franciscano, que faz trabalho pastoral na região. Mas a seu modo, desobedeceu – foi na sexta, sozinho. Desabou. “Tive a impressão de que tudo o que aprendi em mais de 30 anos de ação social não servia para nada. Qualquer coisa que eu fizesse não teria efeito. À noite rezou salmos e lembrou a máxima de que o rio corre para o mar em desespero, pois vai ser engolido, mas que o mar é feito de rios. E decidiu voltar. Como desistir de um irmão?” Parte dos dias da semana agora são passados na Cracolândia, onde Fernando de Góis se fez aprendiz. Sua única estratégia é sorrir, abraçar e beijar as pessoas – é o que se pode fazer.
Logo ao primeiro abraço que ofereceu ouviu um solene não – “Não, não posso aceitar seu abraço, e sabe por quê? Porque eu moro no inferno. Além do mais, faz três meses que não tomo um banho”, escutou de um homem em andrajos. Deu o abraço mesmo assim, a contragosto do freguês. A cena se repete com outros moradores da região, beneficiados pelos abraços de Góis. “Na Cracolândia, até os cachorros são tristes”, diz, sobre o local que desafia todas as lógicas.
Um livro
O inquilinato na maloca tem lhe servido de escola. Diz: “Você sabia que os moradores de rua só falam a verdade depois da meia-noite?” Ouviu isso de uma freira, acatou. Quando a cidade se esvazia e não há mais razão de encenar dramas, para conseguir comidas e favores, os sem teto se dão a conhecer. Gostam de contar suas histórias – Fernando registrou até agora 30 delas, que pretende publicar num livro. Chega a formar uma fila, não para pegar a toalha, mas para se sentar ao lado do escrevinhador e lhe dizer o passado. Cansa. As sessões costumam varar a madrugada, “mas enquanto tiver forças, vou continuar ouvindo. Ouvir é o que tenho de fazer”, resume o cidadão que depois da “Pedagogia dos Sonhos” desenvolve a “Pedagogia dos Ouvidos” e a “Pedagogia dos Abraços”.
Ao ouvir que a “Pedagogia dos Abraços” tem autor – o frei capuchinho Pedrinho Brondani a usa com os soropositivos há mais de uma década –, Góis responde com seu humor conventual – levemente safo. “Frei Pedrinho recomenda 12 abraços por dia. Eu digo que tem de ser 19”. Não vai patentear a ideia, mas bem que podia. No trabalho que faz junto aos moradores de rua, no Brás, deu de aplicar o abraço. Emocionou-se dia desses. Ninguém queria. Mas quando se tocaram, ficaram 15 minutos agarrados. “Ninguém dá a mão para essa gente.” O passo seguinte foi sugerir que pedissem perdão ao corpo. Teve quem pedisse perdão pelos tiros, pelas facadas, pelas surras, pelos abortos provocados por um companheiro violento. Epifania.
“Estou com saudades”, comentou, há duas semanas, em visita a Curitiba. Queria estar lá o tempo todo. Admite que em certo sentido se preparou a vida inteira para essa experiência. Além do mais, a sopa servida por um movimento social, nos fins de tarde, “é uma delícia”. Fernando já reclamou com os cozinheiros – “desse jeito, nunca mais vou sair daqui”. Esse é o cara.
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Fernando de Góis dá abraços na Cracolândia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU