15 Agosto 2020
"Noventa anos após sua redação, oitenta anos após o assassinato de seu autor", escreve Mário Maestri, 71, historiador e autor de Domenico Losurdo: um farsante na terra dos papagaios, publicado por Pravda, 12-08-2020.
"A posteridade o recordará como o historiador e o dirigente da Revolução de Outubro". Jamais houve uma "versão tão grandiosa e esplêndida" dos sucessos de 1917 como A história da Revolução Russa de León Trotsky. Foi assim que, em 1963, Isaac Deutscher referiu-se àquela obra, ao publicar, em inglês, o terceiro e último tomo de sua monumental biografia do dirigente bolchevique. Devido à importância dada ao livro referencial, aquele autor dedicou-lhe -e ao seu autor, enquanto historiador- um inteiro capítulo de Trotsky: o Profeta Banido. Há noventa anos da aparição do primeiro volume de História da Revolução Russa, dedicado à Revolução de Fevereiro, e oitenta do assassinato de seu autor, por um esbirro estalinista, a obra não desmentiu Isaac Deutscher e segue como a opera magna sobre o sucesso histórico luminar de inícios do século 20: a conquista do poder pelos trabalhadores no vastíssimo império tzarista.
A que se deve o caráter singular da História da Revolução de León Trotsky? Autor que o mesmo Isaac Deutscher, homem de profunda cultura, propôs como o único "historiador de gênio que a escola do pensamento marxista produziu", definindo-o, na arte historiográfica, superior ao próprio Karl Marx, que escreveu trabalhos históricos magníficos como O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1851-2, e A Guerra Civil na França, de 1871. (destacamos). Para George Lukacs, o sucesso de um romance histórico nasce do encontro de um grande tema e um grande escritor. Podemos dizer o mesmo para a historiografia. Portanto, a explicação da singularidade de A história da revolução russa seria simples, na complexidade das circunstâncias que a materializaram. Como a Revolução de 1789, a Revolução Russa, de 1917, é material excelente para a historiografia.
Mas o que permitiu a León Trotsky tornar-se o historiador referencial de um tema visitado por uma miríade de autores talentosos. Em Minha Vida, concluída em 1929, no início de seu exílio, León Trotsky registrou seu encantamento, ainda menino, ao escutar narrativas lidas por seus maiores e, mais tarde, no ensino médio, o orgulho por sua habilidade em congelar impressões e sentimentos no papel, sob a forma de palavras. Desde a infância teria sido tomado pelo "entusiasmo pela palavra". Seu heróis dessas épocas eram os "escritores, jornalistas, atores". Em sua primeira prisão, quando estudante universitário, lia o que lhe caía nas mãos.
León Trotsky foi produto de seu meio. A Rússia tzarista fora a pátria de mestres imortais da literatura universal - Pushkin, Dostoiévski, Tolstoi, Gogol. Após a Revolução de 1905, de volta à prisão, o jovem revolucionário devorou trabalhos filosóficos, sociológicos, econômicos. Entretanto, consumia também avidamente a grande literatura européia, com destaque para a narrativa francesa, que lia no original. Sobre ela, registrou: "A arte de contar é (...) francesa por excelência". Mesmo durante a "guerra civil, cruzando o território russo" em seu trem militar brindado, encontrava sempre "uma hora livre" para aquela literatura. Acompanhava igualmente a literatura alemã e inglesa.
Apesar do amor pela ficção em prosa, jamais teria passado pela cabeça de León Trotsky cruzar a fronteira que separa o leitor do produtor de ficção. A literatura era-lhe fonte de prazer e parte de sua bagagem cultural. Em seu primeiro ensaio histórico-político de destaque, a Revolução de 1905, escrito um ano após os fatos, se serviu abundantemente de referências, metáforas, analogias, etc. literárias. A obra registra os excepcionais dotes narrativos de um autor de apenas 27 anos, em amadurecimento, e sua preocupação estética ao escrever. Se não tivesse optado pela revolução, poderia ter sido um ficcionista magistral. Portanto, o tema era magnífico e o narrador exímio. As fontes documentais não eram um problema, já que abundantemente recolhidas, trabalhadas e publicadas sobretudo pelo Instituto de História da Revolução, de Moscou e Leningrado. O autor descobriu fatos desconhecidos - selecionou-os e narrou-os, com a preocupação de jamais tratar sua História da Revolução como obra auto-biográfica, apesar de seu protagonismo nos acontecimentos. Refere-se a si na terceira pessoa e minimiza sua participação, destacando a de Lênin.
A produção da obra monumental deu-se em situação e momento oportunos. Na ilha de Prinkipo, na Turquia, primeira etapa de seu exílio sem retorno, Trotsky dedicou mais de dois anos, entre outras tarefas, à conclusão do trabalho, possivelmente com três grandes objetivos. Primeiro, responder às calúnias que o estalinismo lançava, aos baldes, sobre sua pessoa e sua participação em 1917. Segundo, apresentar relato detalhado da Revolução Russa para os revolucionários de todo o mundo, uma sua antiga obsessão. O terceiro propósito, mais prosaico, era financiar, com sua pena, os gastos pessoais e familiares, poucos, já que vivia quase como asceta, e as necessidades, estas sim custosas, da Oposição de Esquerda Internacional que animava - correspondência, publicações, viagens, etc. A obra conheceu consagração de público e financeira. Apenas sua publicação, em capítulos, na revista semanal estadunidense Saturday Evening Post, rendeu-lhe uns oitocentos mil dólares atuais. Trotsky socorria habitualmente amigos e companheiros em necessidade.
A arquitetura geral do livro, em dois tomos, o primeiro dedicado à Rússia pré-revolucionária e à Revolução de Fevereiro, o segundo, à Revolução de Outubro, fora delineado em conferências, artigos e ensaios anteriores, sobre as revoluções de 1905 e de 1917. Em 1906, Trotsky publicara Balanço e perspectivas, apoiado nas lições de 1905, revolução que tratou em livro homônimo, como proposto, da mesma época. Nesses trabalhos enunciaria sua tese profética sobre a "Revolução Permanente" - a capacidade e a necessidade da revolução russa de assumir um caráter socialista, para cumprir também as tarefas democrático-burguesas. E de se espraiar para a Europa, para não ser engolida pela contra-revolução, como finalmente ocorreu, em 1991. Não houve justificativa post facto na narrativa da História da Revolução Russa, como proposto por críticos conservadores. Ouve, sim, previsão ante facto da necessidade e possibilidade daquela revolução xx, no contexto marxista das duas categorias, a partir da compreensão luminar dos nexos internos profundos da sociedade russa.
Em 1919, Trotsky publicou igualmente o ensaio Da Revolução de Outubro à Paz de Brest-Litovsk, ditado de memória, destinado aos trabalhadores do exterior, de larguíssima difusão. Em 1924, publicou As lições de outubro, como introdução a dois volumes que apresentavam seus escritos do primeiro ano da Revolução. Nesse último trabalho, esboçou telegraficamente a estrutura da História da Revolução Russa. Em seus trabalhos teóricos, afinou a apresentação de sua interpretação do movimento revolucionário na Rússia, necessariamente socialista, desenvolvida através de quase duas décadas de estudos, reflexões e debates. A singularidade de História da Revolução Russa nasce precisamente da fusão entre singulares capacidades narrativa e interpretativa. Interpretações enriquecidas e testadas na prática do movimento revolucionário russo, que resultou na conquista do poder. Nesse trabalho único, a forma se funde harmonicamente com o conteúdo, apresentando cinematograficamente os sucessos aos leitores, obrigados a refletir permanentemente sobre eles.
Os prefácios dos dois volumes da História da Revolução Russa são apresentações sintéticas e elegantes do método historiográfico marxista. Neles, León Trotsky rejeita, para o horror dos hipócritas e tacanhos, qualquer neutralidade historiográfica, exigindo porém que o historiador se apoie no estudo dos fatos objetivos e que desvele as relações e desdobramentos necessários entre eles. Define sua opção pelo método científico que compreende as classes como forças essenciais da história e a revolução como a eclosão dos explorados na arena social e política para a solução de suas contradições essenciais. León Trotsky anima protagonistas, antagonistas, figurantes do movimento revolucionário como em uma quase ficção novelesca, para descrever sobretudo o movimento real das massas operárias e camponesas em 1917, verdadeiras demiurgas dos sucessos apresentados. Propõe: "O traço mais incontestável da Revolução é a intervenção direta das massas (...)." Revolução que nasce, para ele, não de crise econômica ou sucessos excepcionais, mas da tomada de consciência das classes revolucionárias de suas necessidades, nas condições históricas dadas.
A Revolução de 1789 foi referência habitual da narrativa do autor e de seus contemporâneos. É quase impossível não traçar paralelos entre a História da Revolução Russa, de Trotsky, de 1930, e a A Grande Revolução (1789 - 1793), do Príncipe Kropotkin, de 1909, que interpretou com enorme maestria a revolução francesa como resultado da explosão das massas populares, sobretudo camponesas. León Trotsky tinha em grande estima aquele trabalho do anarquista, seu patrício. Porém, ao assenso dos oprimidos como motor da revolução, o líder bolchevique associava a necessidade inelutável do partido revolucionário, consciência refletida e concentrada das classes exploradas. "Sem organização dirigente, a energia das massas se volatiza (...)."
"As particularidades do desenvolvimento da Rússia" e a "Lei do desenvolvimento desigual e combinado", que explica os saltos das nações atrasadas, da era da flecha à era da pólvora. A "dualidade do poder", quando as massas revolucionárias iniciam a impor seu poder nascente, mesmo geograficamente, ao Estado e às instituições conservadoras. O ato insurrecional, como arte e, portanto, com leis próprias e necessárias de serem obedecidas. Essas são algumas das questões centrais da revolução, não apenas russa, abordadas ao longo dessa obra magnífica ou em capítulos específicos.
Apesar de poder e ser lida quase como um romance histórico, História da Revolução Russa jamais deixa de ser estudo construído para discutir, a partir dos sucessos referenciais de 1917, os caminhos mais fáceis para a revolução mundial, ontem como hoje. Com razão, em 2003, Ian Thatcher, autor liberal-conservador, denunciou aquela livro como uma espécie de manual revolucionário. Apenas o temor que o autor e suas obras, com destaque para a História da Revolução Russa, despertam ainda hoje nos senhores da Rússia da restauração capitalista explica a produção da séria russa "Trotsky", apresentada pela Netflix, que reviveu e retomou as narrativas caluniosas e terraplanistas do estalinismo sobre o construtor do Exército Vermelho, estendendo-os a Lenin, ao Partido Bolchevique e à Revolução de 1917.
Isaac Deutscher falhou ao propor que León Trotsky seria reconhecido pela posteridade como "historiador", além de "dirigente da Revolução de Outubro". Fora as exceções felizmente não poucas, nas últimas décadas, a historiografia que se reivindica ou tem referência no marxismo se constituiu sobretudo nos quadros do mundo acadêmico, separando cuidadosamente a prática profissional da práxis política. Rompeu com a proposta fundacional de Marx e Engels de compreender o mundo para transformá-lo. A cada vez mais rara integração de historiadores acadêmicos a organizações políticas de esquerda serve, mais comumente, para melhor alavancar suas carreiras. E não para alimentarem suas reflexões, aproximando-as das "massas" sobre as quais se debruçaram em seus escritórios. A atual Era Reacionária, aberta com a restauração capitalista na URSS, em 1991, fortaleceu enormemente essa tendência.
A falta de notas e referências bibliográficas e eruditas em trabalhos historiográficos, por mais fiéis que sejam aos fatos, tem servido para desqualificar os historiadores ditos "não profissionais", ou seja, desprovidos de títulos acadêmicos de graduação e pós-graduação. Trotsky e sua História da Revolução Russa são acusados comumente desses pecados. O simples aceno a leis determinando tendencialmente a sociedade causam pruridos em meios acadêmicos pequeno-burgueses penetrados pela sedução conservadora da indeterminação, do relativismo e da subjetivização dos indivíduos e dos fatos históricos. Mesmo quando simpáticos às classes ofendidas, grande número de "historiadores profissionais" mantem-se estranho à luta de classe, inclusive quando seu tema seja esse. A redação de obras historiográficas com cuidados estéticos, escrita para o grande público e não para as bancas avaliadoras ou para os colegas, não raro é vista com desconfiança. A historiografia escrita com elegância e preocupações estéticas é comumente deslocada para o gênero ficcional.
Noventa anos após sua redação, a História da Revolução Russa conhece saltuariamente críticas conservadoras diretas e circunstanciais, que se propõem a impugná-la como trabalho científico, não raro propondo-a como obra ficcional, pelas razões apenas assinaladas. Entretanto, seus detratores jamais apresentaram alternativas minimamente consistentes ao trabalho magnífico. Ao contrário, produzem mais comumente obras ideológicas desarticuladas, eivadas de erros factuais grosseiros, nascidos da ignorância do tema ou plantados para susterem propostas fantasiosas. Entretanto, essas obras capengas são apresentadas como trabalhos sérios, avanços historiográficos, e são abraçadas por multidões de acadêmicos.
A História da Revolução Russa de León Trotsky foi reapresentada no Brasil, em 1967, pela Editora Saga, em três volumes:
1. A queda do tzarismo
2. A tentativa de contrarrevolução
3.O triunfo dos sovietes
Esse livro, como os Profetas, editados pela Civilização Brasileira, no ano seguinte, forjou boa parte da melhor juventude revolucionária que participou da retomada da luta de massas em 1967 e 1968. Em 2017, a Editora do Senado reeditou o livro, na versão apresentada pela Saga. Os três livros estão on-line, em pdf, em acesso livre disponível aqui. E depois dizem que nosso Senado não serve para nada!
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A História da Revolução Russa, de León Trotsky. Artigo de Mário Maestri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU