12 Agosto 2020
Mais Lévinas, menos Heidegger, poderia dizer Luciano Floridi. Depois das revoluções culturais de Copérnico, Darwin e Freud, a de Alan Turing privou o ser humano da sua suposta unicidade como elaborador de informações, capacidade própria tanto dos outros animais quanto das máquinas. A internet provavelmente gerou muitos egomaníacos, mas também nos lembra como são importantes as relações entre o “eu” e o “outro”.
A reportagem é de Cristian Fuschetto, publicada por Scienza in Rete, 09-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A internet gerou um exército de egomaníacos, diz Jia Tolentino, jovem e talentosa colunista da New Yorker, que, em “Trick Mirror”, explica como o hábito de decifrar o outro a partir daquilo que ele escreve no Twitter, posta no Facebook, dança no TikTok ou ouve no Spotify acaba levando a olhar também para nós mesmos pela lente daquilo que postamos, tuitamos, compartilhamos, em uma narrativa digital nunca interrompida pela entropia do real.
A rede se tornou o lugar por excelência de expressão do “eu”. Não é mais um lugar de informação ou formação, como sonhávamos nos anos zero, mas sim um lugar onde, se algo não afaga o ego, você simplesmente a apaga, e ponto final.
Simonetta Sciandivasci, no jornal Il Foglio, ilumina o sentido do discurso em um artigo intitulado “A ditadura do eu”.
“On-line – escreve Sciandivasci – comunicamos uma identidade correta, convincente, eficaz, esplêndida, e fazemos isso sem nunca nos separar dela, perdendo assim, rapidamente, a cognição da sua construção, do seu artifício. É por isso que quem nos contesta, nos irrita: perdemos o sentido da nossa falibilidade, da proporção entre quem somos e quem acreditamos ser ou quem fazemos com que os outros pensem que somos. Quando o próximo chega a nos questionar, não o vemos como um interlocutor, mas como um obstáculo que nos desconcentra, nos distrai, nos tira tempo. Odiamo-lo, porque não reconhece a nossa autoridade absoluta, que vemos reverberar em um mundo virtual que nos sustenta e, ao nos sustentar, nos convence do fato de que as nossas intuições e convicções não são simplesmente legítimas: são exatas, envolventes. É um microcosmo que nos parece infinito porque não se choca com o dado real (que muitas vezes é encarnado pelo outro) e sobre o qual ficamos pensando incessantemente”.
A internet, as redes sociais, a rede agigantaram o “eu”, ignoraram o “tu” e tornaram aceitável o “nós” com a condição de que “eus” muito semelhantes, indistinguíveis, não perturbadores, na prática, um “eu” grande, faça parte dele.
No infinito espaço da rede, não há espaço para o próximo. Se a internet é isso, e tudo leva a pensar que sim, é porque a concebemos assim.
“Nós usamos a rede construída pela big companies. Ela funciona muito bem, mas segue os princípios de empresas que fazem o seu negócio legitimamente. Não podemos reclamar se confiamos ao martelo a tarefa de aparafusar um parafuso”, explica, com uma metáfora ao estilo do pragmatismo anglo-saxão, o filósofo da informação Luciano Floridi, que também se tornou um pouco anglo-saxão.
Ele partiu Roma de trem para a Inglaterra aos 23 anos para escrever a sua tese de doutorado em Oxford, depois de várias peripécias acadêmicas entre a Itália e a Inglaterra (lá, ele passava em todos os concursos e, na Itália, não), chegou a poder escolher entre Oxford e Cambridge para uma bolsa de pesquisa júnior, escolheu Oxford – “até porque a carta de admissão da instituição rival chegou atrasada” e desde então não saiu de lá.
Em Oxford, ele é agora professor de Filosofia da Informação, dirige o Digital Ethics Lab e também é presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute.
Teórico do “onlife”, da hiper-história, da infosfera, boa parte dos conceitos que utilizamos hoje para interpretar a digitalização do mundo são obra sua. “Infosfera é uma palavra que eu não inventei, só contribuí para dirigi-la para o campo digital”, defende-se Floridi imediatamente, atrás de um sorriso de criança.
“A internet que conhecemos existe à imagem e semelhança de quem teve o poder de a moldar. Seria um grande erro torná-la um absoluto e confundi-la com o digital, propriamente dito. A cultura digital nos ensina, em vez disso, que o ‘eu’ vem depois do ‘tu’. Nós somos o resultado das relações que nos ligam aos outros”, diz Floridi.
Na trilogia sobre a infosfera, “La Quarta Rivoluzione” (2017), “Pensar l’Infosfera” (2019) e “Il verde e il blu” (2020), todos publicados pela editora Raffaello Cortina, Floridi parte de um pressuposto que muitos ainda custam a metabolizar, isto é, que, desde que Alan Turing teorizou e criou uma máquina capaz de computar, a humanidade teve que engolir outro grande “sapo”, não estando mais no centro do cosmos (Copérnico), nem no ápice da natureza (Darwin ) e não sendo mais chefe na própria casa (Freud), descobrimos que não somos mais únicos nem mesmo na elaboração de informações.
“Compartilhamos a infosfera com outros agentes informacionais, animais e máquinas, e como tais somos todos nós de uma mesma rede.” Darwin também escrevia algo muito semelhante nos seus “Cadernos”: “Se decidirmos abandonar as conjecturas, então os animais são nossos companheiros, irmãos na dor, na doença, na morte e no sofrimento, e na fome; nossos escravos no trabalho mais cansativo, nossos companheiros no lazer; da nossa origem, eles provavelmente compartilham um ancestral comum; podemos estar todos ligados em uma única rede”.
Aquilo que a biologia nos ensinou agora é reiterado pela informática e, naturalmente, assim como os muitos Wilberforce, não faltam os censores do novo mundo.
Quase todos inspirados em Martin Heidegger, a partir daquele artigo de 1956 sobre a “Questão da técnica”, a partir do seu discurso sobre o domínio do aparato tecnológico, sobre a redução do ser humano a ente entre entes, a recurso entre recursos a ser explorado no desolado cenário de um Ser reduzido a “Gestell”, as cassandras da infosfera nunca perdem a oportunidade de apontar o dedo contra o niilismo desumanizador imposto pela cultura digital.
O autor de “Ser e tempo” atribuía a deriva tecnológica do século XX à “metafísica da subjetividade”, que, a partir de Descartes, transformaria as coisas em objetos postos diante de um sujeito que se tornou incapaz de distinguir o ser de uma coisa da sua usabilidade.
Ouvem-se essas mesmas tonalidades emotivas também em Giorgio Agamben, apenas para citar o mais conhecido dos filósofos italianos, que, na luta implacável contra as TICs, não usou meios termos. “Faz parte da barbárie tecnológica que estamos vivendo o cancelamento da vida de toda experiência dos sentidos e a perda do olhar, duravelmente aprisionado em uma tela fantasmagórica”, escreveu recentemente o autor de “Homo Sacer” a respeito das derivas do ensino a distância, comparando os professores que decidirão ministrar cursos online aos professores universitários que, em 1931, juraram fidelidade ao regime fascista.
“Mas que barbárie tecnológica? Que fascismo digital?”, irrompe Floridi. “Queremos ser honestos? Então digamos que Auschwitz é filho de uma cultura analógica. Deveríamos sopesar melhor as palavras e nos limitarmos a dizer que a barbárie está na alma humana, que carregamos a aberração dentro de nós e que, se fomos bárbaros, continuaremos bárbaros. O digital não pode apagar a barbárie, e seria uma idiotice apenas pensar isso. Mas uma coisa ela pode fazer: pode mostrá-la. Se hoje sabemos aquilo que acontece em todos os cantos do mundo é graças às tecnologias digitais. Se, nos campos de extermínio, alguém com uma postagem ou um tuíte tivesse podido revelar ao mundo aquilo que estava acontecendo, talvez as coisas tivessem ocorrido de forma diferente. Talvez não, mas talvez sim. A civilização digital é aquela que permite que você filme e compartilhe com o resto do mundo e em tempo real a morte de um homem indefeso pelas mãos de um homem fardado nas ruas de Minneapolis.”
Na infosfera, o ser humano perde a centralidade, é verdade, mas isso não significa que ele perde humanidade. Seres humanos, smartphones, softwares, satélites, robôs, smartwatches são todos agentes informacionais ligados em uma única rede na qual as relações vêm antes das coisas.
Como filósofo, Floridi fala de “monismo relacional”, um modo para dizer que o que dá substância às coisas são justamente as relações, que as coisas só são como resultado de entrelaçamentos.
Quando pensamos na sociedade, imaginamos muitos átomos semelhantes a pecinhas de Lego conectadas entre si dentro de um espaço, seja um bairro, uma cidade, uma nação. Pois bem, essas são metáforas que não se sustentam mais, porque não são as pecinhas que se põem em relação, mas são as relações que fazem as pecinhas.
“Imagine uma rótula – diz ele –, é algo que se encontra lá onde as ruas se encontram. Ela vem antes ou depois das ruas? Vem depois. Nós não podemos imaginar em desenhar um mapa no qual colocamos primeiro as rótulas e depois as ruas que ali se conectam. Isso significa que as rótulas não existem? Não, significa apenas que elas adquirem sentido e realidade como ponto de chegada de uma rede. E assim também ocorre para os indivíduos na infosfera. A realidade individual permanece, mas logicamente vem depois das relações que a pressupõem. Em uma sociedade complexa, tenho que mudar a circulação das ruas para que a rótula funcione melhor.”
Um exemplo? Pensemos na Europa. O que importa no projeto político europeu é o espaço relacional enraizado na partilha de valores pelos nós da rede, e não o espaço “coisal”, físico e puramente geográfico das fronteiras europeias, e essa é a razão pela qual, amanhã, se deveria poder expulsar países geográfica e fisicamente da União Europeia, mas não europeus do ponto de vista relacional.
O digital “desacopla” dois aspectos que, até poucos anos atrás, pareciam indissociáveis, normatividade e territorialidade. Torna periférica a dimensão puramente objetiva e coisal representada pelo território, enquanto, ao mesmo tempo, põe no centro o espaço relacional que une, como tantos nós, todos os cidadãos que compartilham esses mesmos valores.
“Trata-se de aprofundar a possibilidade de que não sejam as coisas, mas sim as relações que possam desempenhar um papel fundador no pensamento político do século XXI”, observa Floridi.
Pensar as relações antes das coisas talvez signifique repensar e “desconstruir”, do modo que você menos espera, a “metafísica da subjetividade”, significa aprender a antepor o “tu”, a erodir a ditadura do “eu” e a descobrir a proximidade do próximo, e então volta à mente outro grande filósofo do século XX, alguém que criticou Heidegger quando ele era considerado não um filósofo, mas sim a filosofia, a saber, Emmanuel Lévinas.
A descoberta do Outro é um momento que subverte, porque, segundo Lévinas, põe em causa a consciência, irrompe na representação de si e do mundo, hoje talvez diríamos na nossa narrativa digital. Descobrir não só que se está em uma única rede, mas que se é, porque em rede pode se revelar um bom viático para a ética da responsabilidade e para a “epifania do rosto”.
“A epifania do absolutamente outro – escreve Lévinas em “O humanismo do outro homem” – é rosto em que um Outro me interpela e me significa uma ordem, em nome da nudez da sua miséria. A sua mera presença é uma intimação a responder.”
A dessubstancialização das coisas, aquilo que ocorre no mundo hiperconectado instalado do digital, deveria começar a nos fazer refletir sobre a dessubstancialização do “eu”, e, mesmo que possa parecer estranho, ainda há muito a se aprender com um texto de 1972. “Ser Eu – continua o filósofo – significa, por consequência, não poder se isentar da responsabilidade [...] a responsabilidade que priva o Eu do seu imperialismo e do seu egoísmo.”
“Sim, esse é um autor que mereceria ser aprofundado por qualquer pessoa e, especialmente, por quem deseja se aproximar dos problemas de uma ética para a civilização digital. Entre outras coisas, o tradutor dos meus livros para o italiano é Massimo Durante, um aluno de Lévinas, e muitas vezes abordo esses discursos com ele. Se os filósofos chegassem ao poder, nada de ‘Heidegger for president’, mas mil vezes ‘Lévinas for president’”, brinca Floridi, sabendo que está falando sério.
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Humanismo em bits. Entrevista com Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU