06 Agosto 2020
No dia 13 de julho, Andrzej Duda, o recém-reeleito presidente da Polônia, recebeu a notícia de que o secretário-geral das Nações Unidas estava prestes a entrar em contato com ele para um telefonema de felicitações.
O comentário é do historiador Piotr H. Kosicki, professor de História na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 05-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Isso certamente surpreendeu o líder populista eurocético. É verdade que ele acabara de fazer uma visita amplamente divulgada a Washington, tornando-se o primeiro chefe de Estado recebido pelo presidente Donald Trump desde o início da pandemia da Covid-19.
Mas, quando Duda atendeu seu celular, não era António Guterres que estava na linha, mas – sem ele saber – alguns comediantes russos que atendem pelos nomes de “Lexus” e “Vovan”, bem conhecidos por terem feito trotes, entre outros, a Elton John, Emmanuel Macron e Bernie Sanders. O telefonema durou 11 minutos.
Embora Duda tenha sido enganado pelos comediantes, os comentaristas políticos poloneses acharam difícil zombar do candidato vitorioso – talvez porque, quando pensamos nele, trata-se principalmente de um representante de outro político há muito tempo considerado como o verdadeiro líder da Polônia.
Mesmo depois de centenas de discursos vazios e de longos comerciais na televisão, sem falar dos cinco anos no poder como presidente da república, Duda vive na sombra do homem a quem ele deve a sua carreira política, Jarosław Kaczyński.
O curto e robusto fundador do partido Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês) há quase duas décadas é o bicho-papão das elites instruídas e eurófilas da Polônia.
O movimento que Kaczyński e seu irmão gêmeo, agora falecido, lançaram em 2001 como uma campanha para erradicar a corrupção pós-comunista, cruzou uma estrada bizarra e sinuosa.
O PiS construiu um culto em torno do acidente de avião em 2010 que matou o então presidente Lech Kaczyński; ganhou a adulação da hierarquia católica tradicional da Polônia; normalizou epítetos venenosos como “poloneses da pior espécie” para eleitores que apoiavam qualquer outro candidato; e travou uma luta obstinada para desmantelar um Judiciário independente e capturar as principais instituições culturais e midiáticas.
Há 50 anos, Jarosław Kaczyński defendia judeus perseguidos contra a campanha “antissionista” dos comunistas poloneses; agora, ele acumula capital político por meio de parceiros e representantes que traficam no antissemitismo.
Antigamente ridicularizado como um solteirão de meia-idade, cuja família mais próxima era o seu gato, Kaczyński colocou a família na linha de frente da campanha do PiS para “purificar” a cultura polonesa.
Há cinco anos, Kaczyński arrancou Duda da obscuridade para derrubar um presidente que já havia derrotado Kaczyński na disputa pela presidência.
Nesses meses, Andrzej Duda venceu a reeleição em dois turnos sucessivos: o primeiro, realizada no dia 28 de junho, com 43,5% da contagem final; e o segundo, realizado no dia 12 de julho, com 51%. Duda, que tem 48 anos, tem uma boa imagem, com uma esposa dedicada ao seu lado e uma filha em idade universitária.
Duda tinha apenas 17 anos quando o bloco soviético caiu, mas ele transita regularmente em termos como “neobolchevismo” para denunciar as influências corruptas no corpo político polonês.
Há um nacionalismo de ferro e sangue em suas declarações que remonta à direita interguerras, embora o inimigo agora seja o século XXI.
Ele é a voz da reação contra o reconhecimento da comunidade LGBT+ da Polônia, incutindo medo nos pais religiosos e se apresentando como a única coisa que impede que seus filhos sejam forçados a declarar a neutralidade de identidade de gênero e de orientação sexual.
Uma das afirmações de campanha mais citadas por Duda foi: “Os LGBTs não são gente; são uma ideologia”. Sua estratégia eleitoral vitoriosa, portanto, se baseou principalmente em uma política do medo e do preconceito em defesa da família heteronormativa e, por extensão, em um ataque à separação entre Igreja e Estado e o seu papel na educação pública.
A luta contra os LGBT+ e a “ideologia” de gênero, que domina a vida pública polonesa há algum tempo, continua mesmo diante da pandemia.
O apoio a uma família polonesa “normal” – ilustrada de forma memorável por um líder do PiS com um meme de Jesus e um ninho de pássaro cheio de ovos – se afirma sobre um ataque retórico implacável contra a pequena comunidade LGBT+ da Polônia, desprovida de privilégios.
Apesar da intervenção do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, as paradas do orgulho LGBT têm sido proibidas há muito tempo ou, mais recentemente, foram alvo de violentas contramarchas por parte de vândalos e neofascistas.
Parlamentares proeminentes do PiS transmitiram discursos de ódio contra a comunidade LGBT+: “Vamos pôr um fim a essa idiotice sobre algum tipo de direito humano ou de igualdade. Essas pessoas não são iguais às pessoas normais, e vamos deixar assim mesmo”.
Em 2019, os conselheiros locais do PiS começaram a anunciar a criação de “zonas livres de LGBT” em quase um terço do país.
O poderoso documentário “Tu nie chodzi o ludzi” (“Não se trata de pessoas”) retrata a extensão e a variedade do ativismo anti-LGBT+ na zona rural e nas pequenas cidades da Polônia. Em outras palavras, não se trata apenas de uma fantasmagoria de direita, mas sim de um reflexo das crenças reais de pessoas reais.
Depois que Duda afirmou em um discurso no dia 14 de junho que a “ideologia” LGBT+ “é ainda mais destrutiva para os seres humanos” do que o comunismo, ele foi fortemente criticado por agências internacionais de notícias, da AP e da Reuters ao Guardian e ao New York Times.
A resposta foi tão furiosa que o presidente até sentiu a necessidade de usar o Twitter em dois idiomas para se mostrar vítima de “fake news”.
Sua mensagem pode ter sido truncada, mas as notícias foram suficientemente precisas.
E o agora derrotado adversário de Duda? O nome de Rafał Trzaskowski pode ser mais difícil para os ouvidos anglófonos do que o de Duda, mas o ex-concorrente é de longe a figura mais urbana, cosmopolita e internacional dos dois.
Nascidos no mesmo ano, ambos são ex-acadêmicos que desfrutaram de ascensões meteóricas em seus respectivos partidos, ocupando cargos ministeriais menores e assentos no Parlamento Europeu antes de se tornarem, respectivamente, presidente da Polônia e prefeito de Varsóvia.
Embora Donald Trump se refira muitas vezes a Duda como “meu amigo”, Trzaskowski cultiva amizades genuínas com prefeitos das maiores cidades da Europa: Sadiq Khan, de Londres, Anne Hidalgo, de Paris, e Anna König Jerlmyr, de Estocolmo, todos os quais o apoiaram em propagandas online, credenciando Trzaskowski por proteger Varsóvia da Covid-19 (com a implicação de que o governo nacional do PiS estava dificultando seus esforços).
Também ajuda o fato de Trzaskowski falar cinco idiomas, tendo trabalhado como tradutor.
Enquanto isso, Duda teve tantos problemas para montar frases em inglês durante o Fórum de Davos em janeiro que a cena inspirou uma série de memes debochados.
Três pontos são essenciais para entender a derrota de Trzaskowski. Primeiro, a virada do PiS para as “zonas livres de LGBT” foi uma resposta direta a Trzaskowski.
Em fevereiro de 2019, o prefeito assinou uma declaração em nome de Varsóvia, prometendo respeito pelos direitos LGBT+. A declaração fez dele um herói dos centros urbanos e da esquerda, mas foi entendida como uma provocação por grande parte da zona rural da Polônia.
Segundo, Trzaskowski pertence ao partido Plataforma Cívica (PO, na sigla em polonês), o partido que há 15 anos está entrelaçado com Jarosław Kaczyński. Naquela época, o PiS foi perseguido por uma série de brigas após a outra, mas o partido sempre fecha fileiras para enfrentar mais uma vez o mesmo oponente bem conhecido.
O ex-primeiro-ministro do PO, Donald Tusk, continuou em uma lendária carreira na política da União Europeia, tornando-se presidente do Conselho Europeu e, em 2019, chefe do Partido Popular Europeu, a maior coalizão de partidos transnacionais da Europa.
Foi a impopularidade do governo de Tusk depois de dois mandatos que abriram caminho para o PiS capturar tanto o Parlamento quanto a presidência, e até mesmo muitos dos críticos de Kaczyński olham para os governos do PO como um tempo de corrupção, elitismo e desinteresse pelas pessoas comuns.
Os laços de Trzaskowski com o PO o levaram a uma proeminência nacional, mas, nesta eleição presidencial, eles indiscutivelmente também foram uma pedra de moinho em seu pescoço.
Terceiro, Trzaskowski só entrou na corrida presidencial no fim. Os estudiosos constitucionais criticaram de maneira franca e acertada os jogos que o governo polonês jogou com o calendário das eleições, marcadas há muito tempo para o dia 10 de maio, um dia em que mais de 300 novas infecções por Covid-19 foram anunciadas na Polônia.
A constituição proíbe a realização das eleições em meio a um desastre natural, e a maioria dos então oponentes de Duda suspenderam suas campanhas em protesto. Somente no dia 6 de maio, um período em que dezenas de milhões de złotys poloneses já haviam sido gastos, é que as eleições foram oficialmente adiadas.
O candidato original do PO se retirou da disputa, e Trzaskowski anunciou a sua candidatura no dia 15 de maio – cinco dias após a data em que as eleições deveriam ter ocorrido. Menos de dois meses se passaram, em outras palavras, entre o início da sua campanha e o anúncio de que ele havia recebido 48,97% dos votos no segundo turno das eleições.
Segundo todas as contas, o canal de TV público Channel 1 da Polônia manipulou dramaticamente tanto as mensagens quanto o tempo de TV durante o último mês de campanha.
Por exemplo, 97% do conteúdo da TV pública dedicados a Duda foram positivos, enquanto 87% dedicados a Trzaskowski foram negativos (incluindo a exibição de manchetes de “notícias” como: “Já tivemos o bastante da hipocrisia de Trzaskowski”).
O PiS manipulou não apenas a mídia pública, mas também o sistema nacional de transmissão de emergência; com o objetivo de alertar sobre o clima ou a segurança nacional, a rede do Centro Governamental de Segurança enviou mensagens de texto para todos os celulares em todo o país no dia 11 de julho, lembrando aos poloneses que o segundo turno ocorreria no dia seguinte e que “pessoas com mais de 60 anos, mulheres grávidas e pessoas com deficiência podem votar sem esperar na fila”.
Os opositores do PiS estavam rezando para que o inevitável colapso econômico induzido pela Covid-19 chegasse a tempo de Duda assumir a culpa.
Isso não aconteceu. O PiS não apenas garantiu a lealdade de muitos eleitores mais pobres com programas de bem-estar social destinados a famílias numerosas, aposentados ou deficientes, mas também, contra as previsões de especialistas, a economia polonesa continuou se saindo bem.
O PIB da Polônia aumentou 4,1% em 2019, e até os números da Covid-19 em maio de 2020 foram animadores, especialmente em relação ao restante da União Europeia (o PiS parece singularmente sensível às necessidades sociais e econômicas daqueles deixados para trás pela integração com a União Europeia).
Simplificando, o PiS conseguiu ganhar o favor de muitos eleitores, sem (ainda) causar danos à economia como um todo.
Agora, os comentaristas estão divididos: será essa uma vitória de Pirro para o PiS, em posição de assumir a culpa se houver uma desaceleração econômica, ou, pelo contrário, os “anos sombrios” estão agora à espera de uma futura democracia à mercê de um único partido?
O artista de rap mais popular da Polônia, conhecido como Taco Hemingway, prevê um pouco de ambos, vendo a Polônia como um país que compartilha a culpa.
Sua nova música, “Polish Tango”, que foi postada no YouTube apenas algumas horas antes de o silêncio da propaganda eleitoral do país entrar em vigor no dia 10 de julho, lamenta o empoderamento do catolicismo integralista, o lobby da mineração de carvão, o movimento antivacina e o preconceito anti-LGBT+ do PiS.
A reeleição de Andrzej Duda aponta para uma complacência da maioria, levantando a pergunta sobre se os poloneses – um povo politicamente apaixonado e historicamente dividido entre o multiculturalismo e o provincialismo – estão, pelo menos neste momento, tentando ter as duas coisas.
Afinal, a Polônia pode ser cada vez menos liberal, mas ainda se compara favoravelmente com a Hungria, a Rússia, a Turquia e até mesmo os Estados Unidos – e se isso for suficiente? Taco diz: “Parei de acreditar na Polônia há muito tempo / Então, no que você acredita? / Eu não acredito em nada”.
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Polônia, uma maioria complacente. Reeleição de Duda prova os limites do ultraje moral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU