24 Julho 2020
Uma igreja "para os ricos", cada vez mais reduzida em número. E uma "em saída", que visa libertar-se de fáceis laços econômicos. São as duas igrejas: da Alemanha e de Francisco.
O comentário é de Simone M. Varisco, publicado por CaffèStoria, 23-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como era previsível, a mídia farejou a oportunidade de agitar o debate das semanas de verão, geralmente modorrentas pelo clima de férias, embora entre fundo de recuperação e pandemia covid não faltem assuntos. É assim que o destino da Instrução difundida pela Congregação para o Clero, A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja, parece marcado: já é a enésima "revolução de Francisco".
Desse ponto de vista, na verdade, a apresentação do documento escrito por Mons. Andrea Ripa é muito clara: o objetivo é tentar "valorizar todo o carisma e preservar a Igreja de algumas possíveis derivas, como ‘clericalizar’ os leigos ou ‘laicizar’ os clérigos, ou ainda transformar diáconos permanentes em ‘meio-padres’ ou ‘super leigos’". Especialmente porque, como especificado, “assim como aqueles de 1997 e 2002, este documento não contém ‘novidades legislativas’". Esclarecimentos preciosos, mas que de forma alguma arrefeceram a espasmódica busca de “furos” pelos caçadores de notícias contemporâneos.
Ofuscados e quase atordoado do ponto n. 98 - que contém as agora célebres normas sobre o papel de diáconos, consagrados e leigos em alguns sacramentos, capazes de recordar as expectativas do Sínodo sobre a Amazônia - o risco é que se perda de vista grande parte do espírito da Instrução, que pertence à visão da Igreja repetidamente expressa pelo Papa Francisco, começando pela referência contida no título: uma conversão pastoral em sentido missionário da comunidade paroquial, fundada na evangelização, testemunho e responsabilidade.
Um elemento parece particularmente interessante. Trata-se da reflexão sobre as "ofertas para a celebração dos sacramentos" contidas nos n. 118-121, quase em conclusão do documento. Para além do foco na "oferta dada à celebração da Santa Missa, destinada ao sacerdote celebrante, e dos outros sacramentos, que é destinada à paróquia" (n. 118), é possível ampliar a reflexão para toda a abordagem da Igreja às finanças, especialmente se lida em continuidade com as intervenções do Papa em matéria de transparência, combate à lavagem de dinheiro e com a recente reorganização dos departamentos da Fábrica de São Pedro.
As ofertas relacionadas à administração dos sacramentos, especifica a Instrução, devem de fato ser entendidas como um "ato livre da parte do ofertante, deixando a sua consciência e ao seu senso de responsabilidade eclesial, não um ‘preço a pagar’ ou uma ‘taxa a exigir’, como se se tratasse de um tipo de ‘imposto sobre sacramentos’”. Não por acaso, portanto, se evoca um empenho cultural, de mentalidade e de “sensibilização dos fiéis, para que contribuam livremente às necessidades da paróquia, que são ‘coisa sua’ e da qual é bom que aprendam espontaneamente a ter cuidado"(n 119).
Uma reproposta da casa comum, portanto, na qual todos são chamados a fazer sua parte, "voluntariamente" e "espontaneamente". “Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja nem agradeça", escrevia o Papa Francisco em 2015 na encíclica Laudato si' (n. 220).
Uma abordagem inteiramente aplicável também à paróquia, à sua maneira um mundo, e não necessariamente em escala reduzida, se o desejo é instaurar aquilo que que no documento é definido como um “dinamismo em saída” (Instrução, n. 123), forte da colaboração entre diferentes comunidades paroquiais e uma comunhão fortalecida entre clérigos e leigos. Por outro lado, voltando a expressá-lo com as palavras de Laudato Si' existe, "a convicção de que tudo no mundo está intimamente conectado" (nº 16) e "se nos sentimos intimamente unidos com tudo o que existe, então britarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude" (n. 11).
O apelo a não fazer coincidir o sentido da responsabilidade eclesial - sobriedade e solicitude - com uma "taxa a exigir" não pode deixar de pensar na situação da Igreja que vive na sombra de Berlim. Ainda mais que nos últimos dias foi informada sobre a situação do "imposto sobre as religiões" (Kirchensteuer), para o qual os fiéis alemães são chamados a contribuir, com a soma recorde de 6,76 bilhões de euros em 2019, 100 milhões de euro mais do que em 2018.
Além das diferenças óbvias em termos de legislação entre Itália e Alemanha, onde não existe um sistema de financiamento do tipo presente na Itália através da 8x1000, o perigoso contrassenso é que o aumento de recursos auferidos na Alemanha, é atribuível exclusivamente ao aumento da riqueza entre os fiéis católicos alemães (o imposto é proporcional à renda) e não ao seu número.
De fato, em 2019, a Igreja Católica na Alemanha perdeu cerca de 273 mil fiéis inscritos nas listas de contribuintes - outro recorde, aliás – que se soma aos mais de 216 mil já perdidos no decorrer de 2018. Corresponde a dizer: existem cada vez menos fiéis, mas são cada vez mais ricos e apenas isso compensou, pelo menos até agora, as perdas em termos econômicos.
Em junho de 2018, o Papa Francisco enviou uma carta à Igreja na Alemanha, na qual chamava atenção para a "crescente erosão e deterioração da fé". Uma questão sobre a qual não é possível esperar mais tempo e pela qual as propostas mirabolantes que surgiram até agora na Conferência Episcopal Alemã – sem solução de continuidade na dupla Marx-Bätzing, todas orientadas para "revoluções", "aberturas" e "modernizações em sintonia com o os tempos"- tiveram o único efeito de alinhar a hemorragia católica com aquela das confissões protestantes, que há muito tempo vêm lutando com reformas contraproducentes. Tanto o sentido de "casa comum" quanto o dinamismo missionário faltaram claramente em boa parte da Igreja alemã, fora estratégias e declarações bombásticas.
Também as relações com o Papa Francisco, muitas vezes referidas como idílicas, não pareceram assim nos últimos anos, com agendas longe de coincidentes. Último desacordo em ordem cronológica, o aberto distanciamento de um presbítero alemão, Felix Körner, da tristeza manifestada nos últimos dias pelo Papa pela transformação do museu-basílica de Santa Sofia em mesquita. “O Papa Francisco afirma estar triste com isso. O que há de entristecedor na reconversão em local de culto de um museu, que não serviu como local de culto e que foi transformado em local de visitação por causa do secularismo de Ataturk? Não pode afligir uma pessoa devota. Só podemos ficar felizes com isso", disse Körner, jesuíta, islamologista e professor de teologia dogmática da Pontifícia Universidade Gregoriana. Claramente, uma posição pessoal, mas ainda assim representativa de um sentimento comum disseminado na Igreja na Alemanha. Só resta dizer: não sinta isso como "algo pessoal".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O bom grão e a grana ruim. A Igreja de Francisco e a da Alemanha marcham em trilhos divergentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU