15 Julho 2020
"Quem afinal vai querer trabalhar em uma instituição religiosa, principalmente em uma paróquia, sob estas condições? Conforme vejo, trabalhar em uma instituição religiosa, hoje, significa viver com o medo de perder o emprego a qualquer momento, sabendo que ninguém irá proteger o trabalhador caso ele for tratado injustamente no local de trabalho. É assim que se parece uma igreja que alega se fundar nos valores evangélicos da compaixão e justiça?", questiona Jamie Manson, mestre em Teologia pela Yale Divinity School, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 14-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Há mais de oito anos, os bispos dos Estados Unidos vêm participando de um jogo em defesa da liberdade religiosa. Duas decisões tomadas pela Suprema Corte em 8 de julho mostram que a estratégia deles está funcionando.
A primeira das decisões da corte foi no caso Escola Nossa Senhora de Guadalupe x Morrissey-Berru, que é, na verdade, uma combinação de dois casos que também inclui o caso Escola St. James x Biel. Ambas as escolas ficam na Arquidiocese de Los Angeles, porém a decisão se aplica ao país inteiro. (Em um artigo futuro, irei abordar a outra decisão de 8 de julho, isto é, o caso Lar das Irmãzinhas dos Pobres Santos Pedro e Paulo x Pansilvânia.)
No primeiro caso, Agnes Morrissey-Berru processou a Escola Nossa Senhora de Guadalupe com base na Lei de Discriminação Etária no Emprego, de 1969, depois que a instituição se recusou a renovar o seu contrato porque, segundo alegaram, ela estava com dificuldades de manter a ordem na sala de aula e de cumprir com as expectativas de um novo programa de leituras.
No outro caso, Kristen Biel disse que foi demitida da Escola St. James depois de ela informar à direção escolar de que estava com câncer de mama e precisava se afastar das aulas para realizar a cirurgia e sessões de quimioterapia. Biel processou com base na Lei dos Americanos com Deficiências, de 1990, quando, em 2015, a escola escolheu não renovar o seu contrato de um ano com base na performance de sala de aula.
O tribunal decidiu, por 7 votos a 2, a favor das escolas, com o juiz Samuel Alito sendo o relator. O caso se baseou na decisão de 2012 da Suprema Corte no caso Hosanna Tabor x EEOC, que determinou que qualquer funcionário de uma organização religiosa que possa ser classificado como “ministro” está fora do alcance das leis de direitos civis. O problema foi que o tribunal foi vago na descrição do que constitui um ministro.
Na decisão da semana passada, o parecer de Alito dá uma definição que amplia a chamada “exceção ministerial”.
“Quando a escola com uma missão religiosa confia ao professor a responsabilidade de educar e formar alunos na fé, a intervenção judicial em disputas entre a escola e o professor ameaça a independência da escola de um modo que a Primeira Emenda não permite”, escreve o juiz.
A noção de “formar alunos na fé” tem uma aplicação ampla. Tanto Biel quanto Morrissey-Berru lecionavam matérias seculares, e nenhum deles tinha formação teológica ou ministerial. Mas como os professores se juntavam aos alunos na oração diária, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que eles satisfaziam os critérios enquadrados na exceção ministerial.
Ao divergir no tribunal, a juíza Sonia Sotomayor argumentou que esta decisão pode servir de “carimbo” para a discriminação no trabalho de parte das instituições religiosas contra os “direitos dos inúmeros treinadores, assessores de retiro, profissionais de enfermagem e serviço social, advogados, assessores de imprensa e muitos outros que trabalham em instituições religiosas”.
Sotomayor não está exagerando aqui. Como Mark Joseph Stern destacou semana passada em artigo na revista Slate: “Após a decisão de quarta-feira, todo advogado competente a assessorar uma instituição religiosa aconselhará o cliente a impor alguns ‘deveres religiosos’ mínimos aos funcionários leigos para que se protejam de processos na justiça”.
Stern aponta para o movimento poderoso e conservador do escritório de advocacia Alliance Defending Freedom, em 2015, de aconselhar os “empregadores religiosos a associar algumas responsabilidades religiosas triviais a quem trabalha como recepcionista – por exemplo, orientando estas pessoas a ‘providenciar recursos religiosos’ – de forma que se qualifiquem como ‘ministros’ e percam as proteções jurídicas”, escreve o articulista.
Esta decisão da Suprema Corte americana dá, a grupos religiosos, uma imunidade total para com as leis de não discriminação. Ela impede todos estes “ministros” de receber quaisquer proteções com base nas leis federais e estaduais que regulam as relações trabalhistas. Tudo por causa de uma reivindicação extrema à liberdade religiosa, movimento posto em ação com fervor especialmente pelos bispos católicos.
Quando os bispos americanos anunciaram pela primeira vez a sua cruzada pela liberdade religiosa, em 2012, grande parte de suas reivindicações se centravam nas proteções jurídicas ampliadas para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os bispos deram início a esta cruzada com uma carta, chamada Marriage and Religious Freedom: Fundamental Goods That Stand or Fall Together (“Matrimônio e Liberdade Religiosa: bens fundamentais que se fortalecem ou se enfraquecem juntos”, em tradução livre), carta que assinaram junto de uma dezena de líderes religiosos arquiconservadores de igrejas evangélicas e dos mórmons, bem como junto de vários líderes judaicos e muçulmanos.
Na carta, eles afirmaram que as organizações religiosas que “possuem escolas, hospitais, casas de saúde e outras instalações, que fornecem serviços de adoção e aconselhamento”, se veriam forçadas a tratar os parceiros do mesmo sexo como parceiros casados e, portanto, estariam forçadas a apoiar leis que protegem os direitos empregatícios de pessoas LGBTQs, bem como “benefícios concedidos aos trabalhadores, adoção, educação, assistência médica, assistência a idosos, moradia, propriedade e tributação”.
Este zelo por impedir que trabalhadores LGBTQs desfrutem de direitos civis igualitários sempre foi o principal motor por trás da causa pela liberdade religiosa dos bispos. Infelizmente, na esteira do caso Morrissey-Berru, todos os funcionários que formam grupos protegidos por causa da idade, da raça, do gênero e de deficiências, irão agora ter bases jurídicas limitadas para processar sob a acusação de discriminação.
Embora grande parte da reação da imprensa tenha enfocado, justificadamente, os direitos dos professores e outros funcionários de escolas religiosas, não posso ignorar o impacto que esta decisão terá também não apenas sobre os milhares de trabalhadores empregados nas igrejas, mas também sobre os jovens que se preparam para o ministério em centenas de seminários, escolas teológicas e outros espaços de formação.
O caso Morrissey-Berru significa que as igrejas podem demitir sem repercussões jurídicas toda uma série de pessoas: uma funcionária que tem sofrido assédio sexual; uma pessoa de cor que não recebe aumento ou não é promovido por causa da discriminação no ambiente de trabalho; alguém doente ou com deficiência que pode precisar de apoio extra para realizar seus deveres; um secretário paroquial idoso que postou uma foto nas redes sociais exibindo sua participação na festa de casamento homoafetivo de seu irmão.
O ministério já representa um alto risco suficiente para que os agentes pastorais acabem emocional e fisicamente vulneráveis nos programas de acompanhamento pastoral, nos ministérios junto aos desabrigados, nos abrigos de violência doméstica, nos hospitais e clínicas, nas prisões e nas casas de recuperação. Mas, agora, quando aceitarem um trabalho na igreja, eles também precisam aceitar que podem ser demitidos à vontade por qualquer motivo, sem recurso jurídico algum. Constantemente, os líderes eclesiásticos lamentam que os jovens não se interessam pela igreja, mas dificilmente essa determinação do tribunal tornará mais atrativo ou hospitaleiro um ministério qualquer.
Isso tudo me leva a perguntar: quem afinal vai querer trabalhar em uma instituição religiosa, principalmente em uma paróquia, sob estas condições? Conforme vejo, trabalhar em uma instituição religiosa, hoje, significa viver com o medo de perder o emprego a qualquer momento, sabendo que ninguém irá proteger o trabalhador caso ele for tratado injustamente no local de trabalho. É assim que se parece uma igreja que alega se fundar nos valores evangélicos da compaixão e justiça?
Alguns estudiosos como Richard Garnett, professor de direito da Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame, sustentam que casos como o caso Morrissey-Berru não têm a ver com “um suposto direito das igrejas de ‘ignorar’ as leis de direitos civis”, e sim com a “proteção dos direitos civis e constitucionais das instituições religiosas de decidir questões religiosas por elas mesmas”.
Mas quando a categoria ministerial se torna ampla demais, a ponto de poder ser manipulada para incluir quase qualquer trabalhador, fica parecendo que a Igreja Católica está sacrificando os direitos dos trabalhadores sobre o altar das reivindicações extremas pela liberdade religiosa.
E, além de abandonar as proteções a inúmeros funcionários, há também uma ironia. A Igreja Católica se recusa a admitir a maior parte das pessoas ao ministério ordenado e, no entanto, agora ela está disposta a enxergar quase todos como um “ministro” – caso for preciso demitir.
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Depois da mais recente decisão da Suprema Corte, quem vai querer trabalhar em alguma igreja? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU