27 Junho 2020
Dez anos após ter publicado um artigo crítico noticiando a morte do escritor José Saramago, o jornal do Vaticano já não é pessimista sobre a pessoa e a obra do Nobel português da Literatura. L'Osservatore Romano escolhe o romance Ensaio sobre a Cegueira para fazer as pazes.
A reportagem é de João Céu e Silva, publicada por Diário de Notícias, 25-06-2020.
Após um longo silêncio do Vaticano sobre o escritor José Saramago, férreo crítico da religião católica, o décimo aniversário da sua morte (6/11/1922 - 18/6/2010) foi o pretexto para publicar um artigo em que a instituição faz as pazes com o nobel português. Num longo artigo intitulado Saramago e a miopia do mal, o jornalista do L'Osservatore Romano, Sergio Suchodolak, elogia a obra que evoca o romance Ensaio sobre a Cegueira em tempos de pandemia do coronavírus.
Curiosa é a forma como se fazem estas pazes: "Não obstante o pessimismo de que muitas das suas obras estão imbuídas, prestando-se a vários níveis de leitura, no décimo aniversário da sua morte preferimos recordá-lo como um autor que, no entanto, procurou destacar o fator humano que se esconde por detrás dos acontecimentos mais díspares".
Para o jornal, o "verdadeiro sucesso internacional de Saramago veio aproximadamente uma década mais tarde do romance Memorial do Convento, com o controverso Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira, que em 1998 lhe valeram o prêmio Nobel da literatura." Não deixa de lembrar que "José Saramago continuou a escrever até aos últimos anos de vida, assinando obras de grande relevância, como Todos os nomes, As intermitências da morte e Caim, seu último romance."
Uma opinião bem diferente da que nos dias imediatos ao falecimento do escritor foi publicada sobre José Saramago, num artigo assinado por Claudio Toscani, e em que se o qualificava de "populista e extremista" e caracterizado por uma "ideologia antirreligiosa e marxista". Nesse obituário, intitulado A (presumível) omnipotência do narrador, Saramago era definido como "um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo".
Esse texto referia que, José Saramago quando "colocado lucidamente entre o joio no evangélico campo de trigo, declara-se sem sono pelo pensamento das cruzadas ou da Inquisição, esquecendo a memória do 'gulag', das purgas, dos genocídios, dos 'samizdat' culturais e religiosos". E não deixava de apontar o romance o Evangelho Segundo Jesus Cristo como uma "obra irreverente" e um "desafio à memória do cristianismo".
Recorde-se que a cruzada de José Saramago contra os efeitos da religião na humanidade foi uma constante no seu discurso público e, principalmente, a nível literário. O que lhe provocou situações que o levaram, por exemplo, ao exílio para Lanzarote após um secretário de Estado do governo de Cavaco Silva ter recusado que a obra Evangelho segundo Jesus Cristo integrasse a lista dos candidatos ao Prêmio Literário Europeu.
As provocações antirreligiosas nunca lhe faltaram, como voltaram a ser a espinha dorsal do seu violento romance Caim, em que desfazia as figuras do Velho e do Novo Testamentos, após ter dito alto e bom som na sessão de apresentação do romance que a "Bíblia era um manual de maus costumes", afirmação que fez com que portugueses católicos e não católicos permanecessem semanas em acalorado debate, desde o cidadão comum aos especialistas de várias religiões e altos representantes da Igreja. Um debate que o Vaticano nunca aceitou de forma pacífica e que só agora no papado de Francisco a instituição recebe Saramago nas páginas do L'Osservatore Romano sem farpas de maior.
Uma década depois, as considerações sobre o escritor e os seus livros são bem diferente e segundo a publicação do Vaticano, "O intenso romance Ensaio sobre a Cegueira (1995) é um válido exemplo da análise lúcida da natureza humana, descrevendo o modo como, de forma inesperada e misteriosa, um automobilista parado diante do semáforo vermelho de repente fica cego, o 'paciente zero' daquela que em breve tempo se tornaria uma verdadeira epidemia, atingindo indiscriminadamente todos os habitantes de um lugar não bem determinado, com a exceção de uma única pessoa, identificada simplesmente como 'a mulher do médico' (na verdade, nesta história nenhum dos personagens tem nome próprio), e provocando um cenário apocalíptico".
Para o jornal católico, o "tema central por detrás dos acontecimentos absurdos e inexplicáveis desta história é o da indiferença e do egoísmo que, com a difusão da pandemia, se tornam cada vez mais evidentes, e que o autor denuncia com veemência, como dura crítica à sociedade em geral e, em particular, a esta comunidade urbana específica, na qual a cegueira 'branca' - assim chamada porque quantos são atingidos ficam como que envolvidos por um mar de leite - consegue deturpar as leis mais elementares da vida comunitária, revelando o pior que se aninha na alma humana".
Antes de entrar no romance Ensaio sobre a Cegueira, o artigo faz um enorme preâmbulo de modo a situar certas particularidades do escritor, designadamente ao lembrar passagens do discurso de quando recebeu o prêmio Nobel da literatura, em 1988. É destacada a "homenagem deveras carinhosa ao seu avô materno", aquele que Saramago considerava "o homem mais sábio que já conheci, embora não soubesse ler nem escrever".
Também a coincidência temporal das comemorações dos 50 anos da Declaração os Direitos do Homem é apontada como "uma oportunidade para recordar que 'as injustiças ainda se multiplicam, as desigualdades se agravam, a ignorância cresce, a miséria se alastra' no mundo".
É desta "denúncia da opressão e da iniquidade que corroem o espírito humano" que o autor do artigo justifica muita da vasta produção de José Saramago: "Na qual frisa frequentemente que se perdeu o sentido de solidariedade e que esta perda levou a sociedade contemporânea e as suas estruturas de poder a tornar-se profundamente míopes."
Daí para a comparação entre os efeitos da cegueira saramaguiana e a atualidade pandêmica é um passo: "Revendo a natureza da desordem que se veio a criar com o surto da doença, que afetou a população de forma tão indiscriminada e insensata, questiona-se se porventura ela não estava presente já antes que a cegueira tivesse obscurecido os olhos das pessoas, se foi a repentina escuridão que criou o caos, ou se ele se tornou 'visível' precisamente por causa da cegueira." Para o autor do artigo, Saramago "convida o leitor à consciência e à responsabilidade de ver, enquanto muitos, infelizmente, perderam esta capacidade. Perante o egoísmo exasperado, interroga-se perplexo se todos nós devemos ser cegos para ver o outro."
Saramago é definido como um "partidário convicto do pessimismo antropológico, mas profundo conhecedor do espírito humano", daí que parta do princípio de "que nós não somos bons, e é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso". Acrescenta sobre a trama de Ensaio sobre a Cegueira: "No final do período de confinamento, quando a mulher do médico deixa o lazareto (onde tinha entrado fingindo ser cega para salvar o marido) e enfrenta o seu destino, compreende que tudo o que acontecera não melhorou minimamente a espécie humana. Pelo contrário, o mundo dos cegos tristemente abriu o caminho para o mundo dos bárbaros".
É retirado ainda outro episódio do romance para fazer a ponte com a religião: "Entrando numa igreja, depara-se com um cenário que a deixa indignada. Todos os Santos estão vendados, e até Cristo na cruz, como se se quisesse afirmar que o próprio Deus já não merece ver: 'Se os céus não veem, que ninguém veja'. Na verdade, é o homem que, sentindo-se abandonado ao seu trágico destino, não quer ser visto e culpa Aquele que, na sua opinião, não foi capaz de o salvar".
Segundo Sérgio Suchodolak, o romance de Saramago é, "não obstante a sua visão distópica do mundo" uma "história que pode fazer-nos refletir sobre os comportamentos humanos, especialmente nos momentos mais complexos e imprevisíveis da vida, se não quisermos mergulhar no absurdo. Ainda se pode esperar que para as trevas da razão haja um remédio eficaz, ou seja, o da compaixão. Um antídoto seguro contra a indiferença, o único que nos pode levar da cegueira e dureza de coração ao respeito pelo outro, matéria-prima fundamental para a construção da civilização do amor. Talvez semelhante àquela que povoava os sonhos do autor que, quando era criança, adormecia feliz com o seu avô debaixo de uma grande figueira".
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Uma década depois. Vaticano faz as pazes com Saramago através da pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU