14 Mai 2020
"Francisco e Clara de Assis podem dialogar conosco em busca de novas normas para a Casa, que tenham por fundamentos: a vida; a dignidade da pessoa humana; a democracia; a cidadania; o trabalho; o pleno emprego; a prioridade a Educação e a saúde como política econômica; o respeito à Natureza; a finalidade social de propriedade. A proposta de Francisco e Clara pode nos inspirar. E que inspire os jovens economistas", escreve Marco Antônio de Carvalho Lima, Membro da Ordem Franciscana Secular de São José dos Campos, SP, e da Comissão Socioambiental da mesma Diocese.
Antes de iniciarmos essa conversa, é importante uma advertência. Quando se diz “Economia de Francisco e Clara”, é preciso deixar claro que iniciaremos um diálogo com Francisco de Assis. “É um estranho a nos incomodar...um fora de lugar...”, para usar as expressões de Alberto Moreira. Veremos, acrescenta o professor, “não há como não sentir um estranhamento ao pensar sua diferença tão enorme dos horizontes que compõe nosso cotidiano”. Então, o diálogo será duro para nós: modernos ou pós-modernos; distantes; virtuais; bombardeados de informação (que não significa necessariamente, sabedoria ou ciência, muitas vezes, ao contrário, são alienação e ignorância); muitas vezes, presos a estruturas, que temos como verdades intocáveis; ou ainda, se nos apoiamos numa pretensa intimidade com ele ou com seu Mestre, Jesus de Nazaré. Não quero dizer com isso, que Francisco se apresente como modelo, mas que seu compromisso com projeto de Jesus - o Reino ou o Governo de Deus - é um convite à coerência e à fidelidade. Pois, Francisco, depois de sua experiência concreta com o Deus Bom, tornou-se um “moço doido”. Não se deixa manipular. Não se pode corrompê-lo. É livre! De uma liberdade que poucos experimentaram. Por isso mesmo, está aberto ao diálogo conosco. Nunca deixaria de se sentar à mesa conosco, dividir o pão e dizer: minha irmã, meu irmão.
Esta advertência é necessária, pois nos questiona e desafia: o que realmente estamos procurando? A presença do Pobrezinho e de sua Plantinha, por certo, causará tumulto em nossas consciências. Talvez, a intenção do Papa seja nos aproximar desses estranhos. Ele sabe da desproporcionalidade do diálogo, mas, provoca o encontro. Não será uma conversa fácil, contudo necessária, como quem acorda de um pesadelo para poder de novo sonhar.
Iremos discutir a Economia de Francisco e Clara com dois objetivos: o primeiro, recordar esse sonho antigo e concreto, essa velha utopia (o termo aqui não tem o sentido de lugar nenhum, mas aquele de o que tem lugar ou de um não lugar possível, como queria More); e o segundo, o de reiterar nossa responsabilidade com o significado transformador da realidade que há nesta proposta (transformação que começa na comunidade e, é pensada por ela e a partir dela).
Quando convoca a Economia de Francisco, o papa junta sua voz àquele grito do Dr. Martin L. King: “I have a dream...”, como também a de tantos silêncios que gritam impotentes contra a fome e a exclusão, sinais da injustiça produzida. Pois, é preciso sonhar. Só assim, é possível seguir construindo e alargando esse “não lugar” de justiça, que urge ser concretizado. Mas, “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter sonho sempre...”. É necessário que o nosso Sancho se permita “quixotizar”, pelo menos, um pouco. Nossas raízes veem de longe, saltam da história daquele Povo andarilho, que firmou com Deus uma Aliança na Justiça e no Direito. Aliança que revela um Deus de entranhas de misericórdia, que, na lição de Carlos Mesters, tem como vocação o Povo. Deus que em Sua Infinita Humildade, não usa a lógica cega e distante dos sistemas de poder. Pelo contrário, está próximo: - Estou contigo. Escuta o clamor do povo que sofre e corre para ensinar o caminho da libertação. É esse o Deus revelado nos escritos da Sabedoria do Povo de Israel, nos profetas e, sobretudo, na pessoa de Jesus de Nazaré. É dessa Aliança que Francisco e Clara se fazem esponsais.
Para sermos bem honestos, Francisco e Clara não se movem por ideologias ou por grandes teses econômicas; não são teóricos; muito menos, intelectuais. Tampouco se perdem na ascese de uma espiritualidade desencarnada, intimista. A economia que propõem está baseada no encontro com uma pessoa: Jesus de Nazaré. Sua ética é uma ética de vida, que tem como cerne a dignidade da pessoa humana e de toda a criação; alicerçada na pobreza e na fraternidade. Dessa forma, faz-se necessário aprofundar esses aspectos dando voz a eles, Francisco e Clara de Assis, e a sua proposta em alguns de seus escritos.
O Testamento de Francisco é um texto fundamental para entender seu projeto. Segundo Paul Sabatier, “a mais solene manifestação do ideal originário de Francisco”. Então, observe este pequeno trecho:
O Senhor assim deu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: porque, como estava em pecados, parecia-me por demais amargo ver os leprosos. E o próprio Senhor me levou para o meio deles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo; e depois parei um pouco e saí do século.
Não temos o objetivo de comentar o Testamento de Francisco, no entanto, ressaltaremos alguns pontos:
1. O sentido do governo de Deus: ele declara que se move pela vontade de Deus; sua ideia de Deus: o Sumo Bem, que tem entranhas de Amor e uma Justiça que é a própria Misericórdia;
2. O significado de penitência, recupera o sentido evangélico do termo (paenitência, metanoia) em oposição ao sentido moderno e ritual (poenitencia, de onde deriva a palavra poena, pena); penitência como a conversão do ser humano de uma vida voltada para si a uma vida sob o governo de Deus;
3. O conceito de pecado, que representa o não se fazer próximo (a profunda amargura de não olhar o outro; a não proximidade; a exclusão);
4. Fazer misericórdia – muito diferente de ‘ter misericórdia’, que parece opção distante – é, sobretudo, sentir com o coração do outro, buscar a dignidade do outro e com o outro. Provocando mudança na realidade sofrida do outro, nas estruturas que a provocam e na sua própria realidade, pois fazer misericórdia humaniza a todos. (Nesta economia, normas da casa, isto não se faz com dinheiro, incapaz de dar a vida. Aliás, sustentada tão somente pelos valores do mercado, a economia produzirá fome, injustiça social, desigualdade). Importante ressaltar, neste ponto, o sinal da multiplicação dos pães, como nova Economia baseada na divisão dos bens produzidos e na dignidade de pessoa humana;
5. A epifania do outro (no sentido de Emmanuel Lévinas). A consciência de que Francisco teve necessidade da mediação do outro para encontrar Deus. Onde está o seu irmão? – temos que responder a essa pergunta. Francisco denuncia a religião do rito e do intimismo. Aceita o convite de Jesus de Nazaré para ser um curador de doenças (desequilíbrio pessoal) e enfermidades (desequilíbrio das estruturas) e um reconstrutor de si mesmo na humanidade do outro;
6. Abandonar o mundo (sair do século), sobretudo, como entrada no Governo de Deus e como abandono das estruturas e da mentalidade de morte – o “moinho de gastar gente”. Entrou num tempo novo, mas tem os pés no chão. Isto impõe a responsabilidade com o outro e, portanto, um serviço em função da dignidade humana.
Como podemos constatar, o encontro com o leproso é, segundo reconhece o próprio Francisco o momento fundamental de sua conversão. É incrível notar, como atesta André Vauchez, que a “atitude generosa assumida para com aqueles deserdados não resulta de uma evolução religiosa: pelo contrário, precede a descoberta do Evangelho, foi a sua própria causa”.
Olhando ainda para Francisco, é importante recordar o gesto essencial de seu despojamento, muitas vezes, analisado de forma tão romântica, que tem ainda como importantes protagonistas Pedro Bernardone (o pai) e Guido (bispo de Assis). Trata-se de um ato doloroso e cheio de graves consequências. Veja-se, por exemplo, o que conta a memória da Legenda dos Três Companheiros sobre passagem ocorrida após o seu despojamento:
Mas seu pai, vendo-o em tamanha vileza, enchia-se de uma dor enorme. E como o havia amado muito, envergonhava-se e doía-se tanto por ele, vendo sua carne quase morta, por causa da mortificação demasiada e pelo frio. E onde quer que o encontrasse, amaldiçoava-o. O homem de Deus, preocupado com a maldição paterna, tomou a si como pai certo homem pobrezinho e desprezível, e disse-lhe: “Vem comigo e eu te darei algumas das esmolas que me derem. Quando vires que meu pai me amaldiçoa, eu também te direi: 'Abençoa-me, pai', e tu farás sobre mim o sinal-da-cruz e abençoar-me-ás em seu lugar”. De modo que quando o pobre o abençoava, o homem de Deus dizia ao pai: “Não acreditas que Deus me pode dar um pai que me abençoa contra as tuas maldições?
São muitas as consequências desse ato para o pobrezinho. Se formos pensar bem, ao se despojar de suas roupas; de sua família; dos muros de sua cidade, sua cidadania, Francisco se inscreve no catálogo dos excluídos. Para Raoul Manselli, não há dúvida, a conversão de Francisco “se tratava não de um fato somente econômico ou religioso, mas de uma mudança de estado social”. Sua completa desapropriação, alicerçada no Reinado de Deus, como “pauperismo puro e simples, é empenho de fraternidade humana que deve alargar-se para atingir a comunidade e toda criatura”. Para o atual bispo de Assis, dom Domênico Sorrentino, o despojamento de Francisco é um ato fundante de uma outra economia baseada no Evangelho.
Onde então estará a segurança dessa nova economia? – perguntaremos nós, modernos e cartesianos. É aí que entra em cena a Senhora de Francisco (é interessante notar que, na Idade Média, todos têm um senhor. Ele terá uma senhora), proposta ao jovem rico por Jesus de Nazaré: a Senhora Pobreza. Que, com a descoberta do Evangelho, unir-se- á à Fraternidade, constituindo-se como pedras inseparáveis e complementares. Faz-se necessário utilizá-las para a construção; temos que tropeçar nelas, deixar que nos questionem, se quisermos realmente construir uma economia baseada em Francisco, em Clara.
Aqui lembremos os riscos dessa proposta, que se funda na desapropriação total: de toda forma de poder; do dinheiro; dos bens e propriedades; de pessoas; de saberes e ideias, quando usadas para dominar e alienar; de hierarquias...proposta que carrega também o grito da Natureza, que é para ser cuidada sem utilitarismos; que tem início com a desapropriação de si mesmo a serviço da vida. Mesmo entre a família franciscana esse projeto assustou e ainda assusta. Durante muito tempo, causou divisão e lutas. Porém, entre aqueles que ficaram fiéis a ela e ajudaram a alicerçá-la em bases sólidas, estava a plantinha de Francisco (assim se auto denominou), uma muda que deu numa árvore nova e frondosa, onde podemos nos abrigar seguramente para aprender: Clara.
Clara Favarone também cumprirá um itinerário de despojamento no seguimento de Jesus de Nazaré, apontado por Francisco. Sua vida será um testemunho coerente deste caminho. Destacamos alguns episódios que podem iluminar nosso tema.
O IV Concílio de Latrão (1215) decidiu pela proibição de todas as formas de experiência religiosa que não se abrigassem em uma das regras monásticas tradicionais: beneditina ou agostiniana. Tendo essa norma atingido em cheio às novas comunidades femininas, Clara se encontrava pressionada pela Instituição. A interferência não era pouca, a ponto de o próprio Francisco, também sob pressão do cardeal Hugolino, lhe pedir que aceitasse o título de abadessa. O que deixaria o regime jurídico de São Damião sobre a Regra beneditina. Era tudo o que Clara não queria. Mas, apesar de aceitar, não sem resistência, tratou de proteger sua comunidade, para conservar sua opção fundamental e sua vocação franciscana. Fez isso, solicitando, diretamente ao papa Inocêncio III, uma verdadeira Constituição para a experiência franciscana: o Privilégio da Pobreza. Trata-se de um documento excepcional onde Clara pede para o Mosteiro de São Damião uma vida sem privilégios, sem garantias, sem propriedade alguma. Esse pedido, de privilégio inaudito aprovado pela Sé Apostólica, é o mais antigo documento referente a fraternidade franciscana. Seu caráter extraordinário, como acentua Marco Bartoli, vem do fato de assumir a pobreza como valor jurídico.
Em 1228, outro episódio vai marcar a luta de Clara por manter a bases sólidas do seguimento de Jesus em São Damião – ser irmã e pobre. O papa Gregório IX (Cardeal Hugolino), que estava em Assis para a canonização de Francisco, fez uma visita a Clara e então lhe propõe que aceitasse rendimentos para garantir o sustento e a segurança de São Damião. Não deve ter sido um diálogo fácil. Leia, a seguir, a memória deste encontro deixada por Tomás de Celano, que, sem dúvida, teve acesso aos testemunhos que constam do Processo de Canonização de Clara:
O senhor papa Gregório, de feliz memória, digno de veneração pelos méritos pessoais e mais ainda pelo cargo, amava com especial afeto paterno a nossa santa. Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: “Se temes pelo voto, nós te desligamos do voto”, mas ela disse: “Pai santo, por preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre”.
Sem dúvida, Clara é uma mulher livre. Com sua resposta ousada dada ao Papa, ela reafirma o sentido concreto de seu seguimento – não se trata apenas de um voto; além de revelar uma interpretação do Evangelho, que parece diversa daquela que fazia Gregório IX. Não é sem razão que, pouco tempo depois deste encontro, ela solicitará ao Papa a confirmação do Privilégio da Pobreza, obtida, nos mesmos termos, em 17 de setembro do mesmo ano. Curioso é notar que Hugolino (agora Gregório IX) era amigo de Francisco e de Clara, mas dá provas que não entendeu muito bem qual era a proposta de ambos, querendo enquadrá-la como uma outra forma de monarquismo.
Clara lutará a vida toda para ser irmã e pobre. Fará de seus escritos e de sua vida uma defesa da forma do seguimento franciscano de Jesus de Nazaré. Conseguirá, finalmente, em 9 de agosto de 1253, a aprovação da Regra, escrita por ela para o Mosteiro de São Damião. Clara recebeu-a no dia 10 e morreu no dia 11. Como ensina José Carlos Pedroso: “O documento escrito por Clara prova que ela conhecia muito bem e soube usar com precisão tanto a regra de São Francisco como a de São Bento, tanto a de Hugolino como a de Inocêncio IV e ainda enriqueceu o conjunto com seu conhecimento da Bíblia, dos autores sacros do seu tempo e de uma experiência toda original”. Este texto instituiu uma vida aberta, democrática, fraterna, de trabalho, serviço ao outro e desapropriação. Dele destacamos alguns pontos:
1. No começo do texto trata logo de dizer que é a forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu... (o que define sua identidade: designa a pobreza e a fraternidade como princípios fundamentais e deixa claro que segue a fundação franciscana, ou seja, não é monja ou beneditina). Não se fará nova economia tendo como base os valores do mercado e da ganância.
2. Se alguém...vier ter conosco querendo abraçar esta vida... é preciso pedir o consentimento de todas as irmãs e, a partir desde ponto o texto descreve um diálogo com a comunidade; “este é um dos pontos da “democracia” fraterna de Clara, que ela não copiou de ninguém: não consta em nenhuma das Regras anteriores ou posteriores, nem na de São Francisco”, como observa José Carlos Pedroso. A democracia deve ser alargada e concretizada. A nova economia requer vontade de democracia.
3. Outras formas que ressaltam esse sentido democrático: o governo da fraternidade: Para conservar a unidade do amor mútuo e da paz, elejam-se todas as responsáveis pelos cargos do mosteiro de comum acordo de todas as Irmãs. Do mesmo modo elejam-se ao menos oito Irmãs das mais discretas, de cujo conselho a abadessa tenha sempre que servir-se nas coisas requeridas por nossa forma de vida. As Irmãs podem, e até devem, se lhes parecer útil e conveniente, remover alguma vez as responsáveis e discretas e eleger outras no lugar delas – irmãs conselheiras eleitas, isto é uma grande novidade trazida por Clara; a forma da destituição da abadessa eleita: E se alguma vez parecer à totalidade das Irmãs que a sobredita não é suficiente para o serviço e a utilidade comum delas, sejam obrigadas as referidas Irmãs a eleger quanto antes outra para ser sua abadessa e mãe, de acordo com a forma predita; a convocação de Capítulos e sua forma: Pelo menos uma vez por semana, a abadessa tenha que convocar suas Irmãs para um capítulo. Aí, tanto ela quanto as Irmãs devem confessar humildemente suas faltas e negligências comuns e públicas. E tratem aí, de acordo com todas as Irmãs, o que for necessário para a utilidade e o bem do mosteiro, porque muitas vezes o Senhor revela à menor o que é melhor – capítulos que envolvem toda a comunidade, não eram novidade para os franciscanos, mas, pelo menos uma vez por semana, o que não exclui até a fórmula diária é outra novidade. Só será possível uma economia que tenha como pedra fundamental a dignidade da pessoa humana em um ambiente democrático em que a democracia construída vá se alargando e se concretizando, sem possibilidade de retrocessos.
4. Sem nada de próprio e sem se apropriarem. Clara conserva no capítulo IV de sua Regra a memória que Francisco deixa para ela e suas irmãs: E para que nem nós nem as que viriam depois de nós jamais nos afastássemos da santíssima pobreza que assumimos, pouco antes de sua morte escreveu-nos de novo expressando sua última vontade: “Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do Altíssimo Senhor nosso Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. Guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem quer que seja”. Então prossegue: E como eu sempre fui solícita com minhas Irmãs, na observância da santa pobreza que ao Senhor Deus e ao bem-aventurado Francisco prometemos guardar, assim sejam obrigadas as abadessas que me sucederem no cargo e todas as Irmãs a observá-la inviolavelmente até o fim: isto é, a não aceitar nem ter posse ou propriedade nem por si, nem por pessoa intermediária, e nem coisa alguma que possa com razão ser chamada de propriedade, exceto aquele tanto de terra requerido pela necessidade para o bem e o afastamento do mosteiro. E essa terra não será trabalhada a não ser para a horta e a necessidade delas – Clara, a frente de seu tempo, não quer ser proprietária, muito menos se apropriar, mas já entende o uso comunitário da propriedade e sua função social. No seu Testamento, escrito antes de receber a Regra, assevera: Mas se em algum lugar, para honestidade e para isolamento do mosteiro for conveniente ter mais terreno além da cerca da horta, não permitam que seja adquirido ou mesmo recebido mais do que for pedido pela necessidade extrema. E essa terra não deve ser trabalhada nem semeada mas ficar sempre baldia e inculta. A questão da democratização da propriedade da terra, a função social da propriedade, a moradia digna são pontos fundamentais para o combate à miséria e à fome.
5. Em sua economia, entende a importância do trabalho e sua divisão democrática, sempre visando o bem comum: As Irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem... em um trabalho que seja conveniente à honestidade e ao bem comum... A abadessa ou a vigária devem indicar em capítulo, diante de todas, o que cada uma deverá fazer com as próprias mãos. O mesmo se faça se alguém enviar alguma esmola para as necessidades das Irmãs, para que pelo bem dessas pessoas se faça uma recomendação em comum. E todas essas coisas sejam distribuídas pela abadessa ou por sua vigária, com o conselho das discretas, para a utilidade comum. O valor social do trabalho, a busca do pleno emprego, o não retrocesso dos direitos dos trabalhadores, a não discriminação no mundo do trabalho, o combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil são fundamentos há se concretizar na nova economia.
Mas, o sonho também enfrenta o fracasso. O Testamento de Francisco foi contestado por notáveis franciscanos e perderia seu valor jurídico em 1230, com a bula Quo Elongati de Gregório IX. Naquela ocasião, Clara reagiria. Trinta e cinco anos após a morte de Clara, em 1288, Nicolau IV, com a bula Devotionis vestrae precibus, praticamente, revogava a Regra de Santa Clara e o Privilégio da Pobreza. Então, como escreveu Marco Bartoli: “as irmãs tomaram a regra à maneira de uma relíquia, consturaram-na numa veste de Clara, onde permaneceu por séculos. Foi reencontrada no final do século XIX, como semente escondida longo tempo na terra, mas talvez ainda em condições de produzir os frutos que tanto ela desejara”.
Poderíamos continuar, mas o que foi dito mostra em que bases Francisco e Clara podem dialogar conosco em busca de novas normas para a Casa, que tenham por fundamentos: a vida; a dignidade da pessoa humana; a democracia; a cidadania; o trabalho; o pleno emprego; a prioridade a Educação e a saúde como política econômica; o respeito à Natureza; a finalidade social de propriedade.
Diante de uma economia de morte (a cada minuto, morrem dez crianças no mundo, segundo a ONU); do evangelho do império; do desrespeito aos direitos humanos; da falta de uma educação digna e integral; da precariedade da saúde; do desastre ambiental; do descaso com crianças e idosos; do desrespeito aos direitos dos povos indígenas; da descriminação exercida de várias formas; a proposta de Francisco e Clara pode nos inspirar. E que inspire os jovens economistas. Há riscos, sempre haverá riscos para se construir a paz que nasce da justiça. Mas o sonho é como a água que brota num terreno: se não cuidamos bem, aquela fonte seca, para aparecer em outro lugar. Nossa responsabilidade é enorme, se queremos ter por herança a Economia de Francisco e Clara.
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Economia de Francisco e Clara, uma introdução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU