29 Abril 2020
“Passada a pandemia, os templos voltarão a se abrir, a Eucaristia voltará a ser celebrada, porém da indignidade, da falta de futuro, das sequelas de um vírus muitas vezes não se volta; e dos corações fechados, ainda menos”. O bispo de San Justo, Eduardo García, colocou sobre a mesa as contradições dos ultracatólicos que reclamam por uma volta imediata das missas e não se preocupam pelo sofrimento dos pobres, idosos ou os que estão doentes pela pandemia do coronavírus.
O prelado, antigo colaborador de Bergoglio em Buenos Aires, publica um excelente artigo no Clarín (reproduzido ao final do texto), intitulado “Igrejas abertas em quarentena?”. Um “tapa na boca” dos grupelhos ultra-conservadores que acusam os bispos de terem deixado a Eucaristia ser roubada e que exigem a volta imediata à celebração de missas com público, ignorando as recomendações médicas.
“Como pastor e homem que ama a Eucaristia (missa), de fato, celebro-a todos os dias através das redes sociais para acompanhar o caminho da fé do povo, porém claramente são outras as prioridades para poder viver a fé em sério, no essencial”, escreve dom García, que pede aos criadors da campanha que “se vivêssemos realmente como povo, deveríamos escutar também ‘devolvam-nos a educação, devolvam-nos a Cáritas, devolvam-nos o trabalho, devolvam-nos a saúde”, devolvam-nos tantas coisas que resignamos nesta quarentena atendendo ao bem maior que é a saúde da população”.
“De repente e de fora, quiseram nos colocar dentro de uma conjuntura de conflito como se fôssemos uma Igreja perseguida, situação que ocorreu e segue ocorrendo sob outros sistemas políticos em várias partes do mundo. Porém não em nosso país”, constata, incidindo em que “adorar o corpo de Cristo não se comprometer eficazmente com a vida do irmão não é cristão. Talvez antes de assegurar as máscaras e o álcool em gel para nossas celebrações em templos abertos, não teríamos que os assegurar para os restaurantes populares, as filas de aposentados, as crianças e idosos em situação de rua, os trabalhadores da saúde e depois fazer nossa ação de graças?”.
“Com assombro li, e respeito, a angústia que provocava em muitos não poder comungar, talvez experimentem a mesma angústia por não poder sair a ajudar em uma sala de primeiros socorros ou a um idoso que está isolado. Também escutei que sentem que a lhes enfraquece a fé ao não poder comungar e me pergunto: os mártires encarcerados do século passado e este século que não podem ir à missa em seus cativeiros e deram a sua vida, como o fizeram? Porque sua fé foi robusta para aceitar flagelações, fome, humilhação e morte. Deus nunca nos deixa sós”, culmina o prelado.
O artigo é de dom Eduardo García, bispo de San Justo, publicado por Clarín e reproduzido por Religión Digital, 27-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Gerou ruídos, muito ruídos, um vídeo que circulou por esses dias dirigido a nós, os bispos, com a frase “devolvam-nos a Missa”.
Em razão do coronavírus, parece que a suspensão de atividades, dentro das quais se encontra o culto, não pelo culto em si mesmo, mas sim pela aglomeração de pessoas e a possibilidade de contágio, fosse uma questão arbitrária. Quando não é.
Se vivêssemos realmente com o povo, deveríamos escutar também “devolvam-nos a educação, devolvam-nos a Cáritas, devolvam-nos o trabalho, devolvam-nos a saúde”, devolvam-nos tantas coisas que resignamos nesta quarentena atendendo ao bem maior que é a saúde de toda a população.
De repente e de fora, quiseram nos colocar dentro de uma conjuntura de conflito como se fôssemos uma Igreja perseguida, situação que ocorreu e segue ocorrendo sob outros sistemas políticos em várias partes do mundo. Porém não no nosso país.
A esse mapeamento faltam alguns atores que clamam também aos bispos: aqueles que propõem com espírito de cruzada – que é o que menos necessitamos neste momento – “briguem pela fé, nós vos acompanhamos”.
O que define um cristão é ser virtuoso ou observante, mas sim viver confiando em um Deus próximo pelo qual se sente amado, sem condições, e que prometeu sua presença sempre.
Com esta certeza, hoje mais que nunca, a Igreja e os cristãos temos que dar o testemunho de entrega generosa pelo amor ao que mais sofre, criando ambientes de calma, serviço e esperança.
Atualmente, mais do que nunca, as palavras do papa Francisco se aplicam: “a igreja como hospital de campanha”. Talvez porque eu esteja olhando para isso a partir da realidade social da minha diocese localizada em La Matanza, onde, embora os casos de coronavírus ainda sejam poucos, devemos assumir e realizar, na medida do possível, as coletas da quarentena em nossos bairros mais vulneráveis .
Primeiro, a fome: se não há emprego, não há com o que comprar comida. Se não há escola, não há refeitórios funcionando porque não se pode cozinhar na escola do Estado, as crianças apenas recebem uma sacola de comida. No restaurantes populares, com a ajuda do Exército, mais de 9 mil viandas estão sendo distribuídas; mesmo assim, eles não têm suprimentos suficientes para cozinhar todos os dias.
A resposta de muitos que procuram comida nesse quadro de isolamento que não pode ser estritamente observado é: “Não sei se o coronavírus vai me pegar, mas, se não, tenho certeza de que já estou morrendo de fome”. E aparece o outro grande tema de nossos bairros: não há lugar para cumprir o isolamento necessário para evitar infecções. As casas nem sempre são o melhor lugar devido à superlotação, falta de higiene... Abrimos casas improvisadas para os “sem-teto” para que eles possam ser minimamente isolados: eles cresceram de 1 para 100. Projeto que deixarão de ser momentâneos porque, assim que passar a pandemia, não vamos devolvê-los as ruas.
Como pastor e homem que ama a Eucaristia, de fato, eu a celebro todos os dias através das redes sociais para acompanhar o caminho da fé das pessoas, mas claramente existem outras prioridades para viver a fé seriamente, no essencial. Após a pandemia, os templos serão reabertos, a Eucaristia será novamente celebrada, mas, devido à indignidade, à falta de um futuro, às consequências de um vírus, muitas vezes não se volta; e do fechamento do coração, ainda menos.
Destaco um pensamento do grande John Henry Newman, que anunciou essa situação e dizia que uma fé herdada e não repensada acabaria entre as pessoas cultas em “indiferença”, e entre as pessoas simples em “superstição”. Por isso é bom recordar alguns aspectos essenciais da fé. Adorar o corpo de Cristo e não se comprometer eficazmente com a vida do irmão, não é cristão. Talvez antes de assegurar as máscaras e o álcool em gel para nossas celebrações em templos abertos, não teríamos que assegurar para os restaurantes populares, as filas de aposentados, as crianças ou avós em situação de rua, os trabalhadores da saúde e depois fazer nossa ação de graças?
Com assombro li, e o respeito, a angústia que em muito se provoca por não poder comungar, talvez experimentem a mesma angústia por não poder sair a ajudar em uma sala de primeiros socorros ou a um idoso que está isolado. Também escutei que sentem que a fé os enfraquece ao não poder comungar e me pergunto: os mártires encarcerados do século passado e deste século que não podiam ir à missa em seus cativeiros e deram sua vida, como o fizeram? Porque sua fé foi robusta para aceitar flagelações, fome, humilhação e morte. Deus nunca nos deixa sós.
Creio firmemente no Senhor presente na Eucaristia, centro e clímax da vida cristã, porém desde uma comunidade que celebra e toma força para viver dando a vida pelos demais, não como um self-service da graça ou um Redoxon da vida espiritual.
A reabertura gradual dos templos será de pouca utilidade se não houver uma reabertura radical da Igreja diante da realidade, sem umbiguismos pseudo-religiosos de autocomplacência.
Insisto: essa experiência de viver em quarentena não nos pode deixar iguais para continuar com mais do mesmo, como se nada tivesse acontecido. Mesmo do ponto de apoio; muitas de nossas paróquias sem as celebrações estão à beira do colapso econômico. Isso implica sim ou sim a repensar o modo de participação de toda a comunidade cristã.
Vida religiosa online. As muitas maneiras de encontros religiosos nas redes sociais e na mídia, como a televisão e o rádio, agiram como antiparalisia diante da pandemia e da grande festa que a Páscoa representa para os fiéis. Claro que a comunidade estava desaparecida, estando juntos. Por isso, é essencial ressaltar que trabalhar em redes é importante se não nos leva a nos isolar e mudar a virtualidade para a humanidade.
A vida religiosa digital como recurso exige que a assumamos como uma realidade com dinamismos e linguagens próprias. Não se trata de fazer o mesmo, mas na frente de um telefone celular ou tablet. É mais um espaço para repensar e reaprender.
Um padre me disse há alguns dias que suas missas habituais nos dias úteis eram agonizantes, com 3 ou 4 participantes e agora ele tem mais de 60 pessoas após a celebração ao vivo em uma rede social. Fruto do enclausuramento? Não acho. Mas analisemos os fatos e aproveitemos a experiência, mas ainda não sei como.
O que eu sei é que estamos enfrentando o desafio de ler de forma inteligente os eventos para saber como realmente estar diante deles, sem receitas, como Jesus fez.
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Um bispo argentino, aos ultras do ‘Devolvam-nos a missa’: “Adorar o corpo de Cristo e não se comprometer eficazmente com a vida do irmão, não é cristão” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU