08 Abril 2020
Bolsonaro briga para manter templos abertos por demanda da bancada evangélica e líderes de megaigrejas.
A reportagem é de Andrea DiP, Alice Maciel, Mariama Correia, Rute Pina e Gilberto Nascimento, publicada por Agência Pública, 07-04-2020.
No vídeo divulgado por Bolsonaro em suas redes sociais e amplamente compartilhado em grupos de evangélicos no WhatsApp na última semana, um narrador com a voz empostada dizia que “os maiores líderes religiosos do país atenderam à proclamação santa feita pelo chefe supremo da nação, o presidente Jair Messias Bolsonaro”, e convocavam “o exército de Cristo para a maior campanha de jejum e oração já vista na história do Brasil”.
Em seguida, o missionário R. R. Soares, o pastor André Valadão, René Soares, o deputado pastor e presidente da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) Silas Câmara (Republicanos-AM), o bispo Abner Ferreira e mais pastores da Quadrangular do Reino de Deus, Assembleia de Deus Madureira, Paz e Vida, Getsêmani, Brasil para Cristo, o deputado Marco Feliciano (Pode-SP), o bispo da Igreja Universal Edir Macedo, o bispo da Sara Nossa Terra Robson Rodovalho, o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus Valdemiro Santiago, o apóstolo Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo, Silas Malafaia e ainda representantes da Assembleia de Deus Brás, da Presbiteriana do Brasil, de igrejas batistas, entre outras denominações evangélicas, convocavam para o “Jejum Nacional” que aconteceu neste domingo, 5 de abril.
O jejum é uma prática comum a algumas religiões, entre elas a cristã, em que fiéis ficam sem comer e beber durante algumas horas ou dias como voto de sacrifício para alcançar um objetivo ou “vencer uma batalha”. O narrador finalizava dizendo que a “Igreja de Cristo na terra iria clamar e o inferno iria explodir” e pedia que o vídeo fosse compartilhado e a igreja, mobilizada.
No domingo, pequenos grupos de evangélicos foram então para a frente do Palácio da Alvorada em Brasília jejuar e orar pelo presidente e pelo fim do coronavírus, enquanto lá dentro Bolsonaro se reunia com aliados políticos e assessores.
Mais do que o espetáculo – ou a inconstitucional mistura entre Igreja e Estado laico –, a campanha de jejum e oração vem para marcar posição em um momento em que o presidente tem sua imagem fragilizada pela forma como tem agido frente à pandemia mundial e mostrar que ainda pode contar com o apoio da sua mais forte base eleitoral, da qual fazem parte os principais e mais poderosos líderes de megaigrejas evangélicas do país – que se uniram, em consonância inédita na história, para apoiar sua eleição e agora seu mandato. Justamente para manter essa base, Bolsonaro tem cedido ao lobby evangélico por meio de declarações e gestos efusivos e, mais recentemente, no dia 26 de março, do polêmico decreto que inclui as igrejas na lista de serviços essenciais, decisão que se tornou uma das principais batalhas judiciais de seu governo atualmente.
A disputa pela manutenção dos templos abertos começou logo nos primeiros dias da quarentena, como mostrou matéria da Agência Pública. Líderes religiosos como Edir Macedo e Silas Malafaia diziam que resistiriam com as portas abertas e que a fé seria suficiente para curar “a praga”. O líder máximo da Universal também publicou uma desastrada mensagem nas redes sociais em que afirmou que o coronavírus era uma “tática de satanás” e não passava de uma simples gripe, não devendo causar preocupação aos fiéis. Com o passar dos dias e as determinações de muitos estados para o fechamento das igrejas, a maioria dos bispos e pastores foi mudando o tom.
Em áudios atribuídos a Macedo, divulgados em redes sociais de religiosos como o ex-bispo Alfredo Paulo, o fundador da Universal, em tom melancólico e se dizendo triste, pede que os seguidores não lhe enviem mais mensagens alegres e de estímulo enquanto “o povo está sofrendo com essa pandemia desgraçada”. Em outro áudio também atribuído ao bispo, ele revelava estar na Flórida, nos Estados Unidos, em quarentena imposta pelo governo local, ao lado da mulher, Ester, que tem 70 anos – ele, 75. “A gente tem consciência de que somos mais vulneráveis a essa doença, a essa peste, por conta da idade”, declarou. “Eu gostaria de fazer reunião. Mas não posso.”
Mesmo Silas Malafaia, que continua atacando as medidas de isolamento social em suas redes sociais, tem obedecido às determinações dos estados onde tem igrejas e realizado seus cultos online, a portas fechadas.
As contas das igrejas, no entanto, não param de chegar, como têm enfatizado bispos e pastores nas redes sociais, em lives e em cultos gravados. “Continuamos pagando milhares de aluguéis, de parcelas de imóveis adquiridos, de funcionários”, lamentou Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, em um culto.
Incomodada com as medidas de governos estaduais e municipais que vinham impedindo igrejas de realizar atividades com aglomerações de público, como em São Paulo, por exemplo, ou até mesmo determinando o fechamento dos templos religiosos, como em Porto Alegre, no dia 18 de março a bancada evangélica, representada pela FPE, emitiu uma nota pedindo a reabertura dos templos religiosos para enfrentar o que chamou de “pandemia maligna”. Dois dias depois, em rede nacional, o presidente Jair Bolsonaro assumiu o discurso e criticou pela primeira vez em público o fechamento das igrejas, apontado por ele como uma medida absurda.
“O que eu vejo no Brasil, não são todos (governadores), mas muita gente, para dar satisfação para seu eleitorado, toma providências absurdas, fechando shoppings. Tem gente que quer fechar igreja, o último refúgio das pessoas”, afirmou o presidente durante entrevista ao Programa do Ratinho, no SBT. O discurso de Bolsonaro acalmou os ânimos das lideranças evangélicas. Segundo o deputado e pastor Marco Feliciano (Pode-SP) em entrevista à Agência Pública, entre os parlamentares da bancada “o assunto foi pacificado na fala do presidente, quando ele disse que igrejas não podem fechar”.
Após o decreto do dia 26 de março, a FPE comemorou nas redes sociais, dizendo que a medida era resultado da articulação do grupo: “Após ação da FPE solicitando alteração no decreto qualquer pessoa pode buscar essas instituições para aconselhamento e conforto espiritual, desde que sejam atendidas e obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”, diz o texto publicado.
A “ação da FPE” citada na mensagem se refere a uma emenda de autoria do presidente da Frente, deputado federal Silas Câmara (Republicanos/AM), que prevê exatamente “assistência religiosa e socorro espiritual” na lista de atividades essenciais. A emenda, datada de 25 de março, foi apresentada à medida provisória que dá a Bolsonaro o poder de definir o que é considerado atividade essencial. Um dia depois, o presidente publicou o decreto que atualiza uma primeira lista de serviços essenciais dispensados da quarentena, publicada inicialmente em 20 de março, permitindo que os templos religiosos fiquem abertos durante a emergência do coronavírus.
Marco Feliciano, hoje o principal interlocutor entre a bancada evangélica e o presidente, confirmou à Agência Pública que levou pessoalmente a reivindicação do grupo a Bolsonaro. “O presidente Bolsonaro escuta o conjunto da sociedade e o Parlamento. Como vice-líder do governo e amigo do presidente, eu sou um desses interlocutores”, disse.
Por sua vez, Silas Câmara argumentou em entrevista à Agência Pública que a frente parlamentar evangélica “não está fazendo nenhuma pressão para qualquer coisa que fira o princípio técnico e do bom comportamento de enfrentamento à pandemia”. Para ele, “nós defendemos a abertura dos templos como um local de refúgio de pessoas que estão preocupadas, às vezes desesperadas, precisando de um conselho. Um local para oração e obviamente dentro daquilo que preconiza a boa técnica de defesa e prevenção ao coronavírus, manter 1 metro de distância, máscara de proteção onde é o caso”.
A Agência Pública mostrou, porém, nessa reportagem que, sem os cultos em horários regulares, algumas megaigrejas continuam abertas em esquema de plantão de atendimento, colocando em risco até mesmo a vida de pastores e obreiros.
No Senado, a FPE também está se articulando. O grupo conseguiu derrubar, na quinta-feira (dia 2 de abril), um artigo do Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), que previa restrição à realização de reuniões e assembleias até o dia 30 de outubro, de acordo com nota publicada nas redes sociais. Segundo informou a FPE, a medida seria “um desastre para as igrejas de todo o Brasil, não fosse a intervenção providencial da Frente Parlamentar Evangélica”. O substitutivo do projeto foi aprovado dia 3, sem atingir as igrejas, que continuam podendo reunir seus fiéis.
Em um vídeo compartilhado nas redes sociais que viralizou nos grupos de WhatsApp de fiéis, Marco Feliciano conta que esteve novamente com o presidente na quarta-feira, 1º de abril, e levou “um pedido de centenas de pastores que gostariam que ele, como chefe da nação, pedisse ao povo para orar e jejuar”. “Ele, como cristão e temente a Deus, sabe a força do jejum e da oração, foi extremamente tocado. Pessoal, nunca antes vimos um presidente agir assim”, destacou Feliciano, tomando pra si o crédito político do Jejum Nacional. Ao final do vídeo, aparece uma gravação de Bolsonaro obedecendo à vontade de seus fiéis aliados: “E aqueles que têm fé e acreditam, domingo é o dia de jejum”.
Fora do Congresso (apesar de transitar bastante por lá), o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, tem sido o principal crítico do isolamento social. No dia 18 de março, ele desafiava pelo Twitter: “Querem fechar as igrejas que sou pastor? Recorram à Justiça”. A publicação tinha críticas diretas aos protocolos estabelecidos pelos governos de Santa Catarina e Pernambuco. A manutenção dos cultos presenciais, contudo, também contraria orientações do Ministério da Saúde contra aglomerações.
Malafaia tentou barrar o esvaziamento dos seus templos, mas a Justiça do Rio de Janeiro terminou proibindo os cultos por lá. As 116 igrejas que ele comanda no país suspenderam então as cerimônias presenciais no dia 20 de março, mas continuam abertas para atendimentos individuais dos fiéis. Vale lembrar que eventos com presença de público estavam proibidos por decreto do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), desde o dia 13 de março. Hoje, Witzel é um dos maiores desafetos de Bolsonaro.
Silas Malafaia é um importante aliado de Jair Bolsonaro na interlocução com o eleitorado evangélico. O pastor pentecostal tem postado comentários sobre o coronavírus em uma série de vídeos na internet. Neles, defende a postura do presidente, que chegou a chamar a pandemia de “histeria” e “gripezinha”, e ataca governadores e prefeitos. “O que é pior? Coronavírus ou caos social? Caos social”, questionou em vídeo. Na última quinta-feira (dia 2), depois de ter recebido denúncias dos usuários, o Twitter apagou as postagens do pastor sobre o coronavírus, por entender que elas representam risco para as pessoas em meio à pandemia.
O lobby da Universal do Reino de Deus no governo foi favorecido pelas tratativas em andamento a fim de que o Republicanos, o partido ligado à igreja de Edir Macedo, acolhesse dois filhos do presidente da República: Carlos, vereador do Rio, e Flávio, senador, além de Rogéria, ex-mulher de Bolsonaro. Carlos e Flávio deixaram o PSL e se filiaram ao Republicanos no final de março. Foram recebidos pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, também bispo licenciado da Universal e sobrinho de Edir Macedo, que comemorou no Twitter: “Chegam no nosso partido para somar”.
O vereador Carlos Bolsonaro aportou no Republicanos já “mandando e desmandando”, segundo relatos de políticos à reportagem, e definindo os nomes de quem deverá disputar cargos-chave no Rio de Janeiro nas próximas eleições. Em fevereiro, o Republicanos já havia anunciado que ofereceria legenda para os candidatos da Aliança pelo Brasil, o partido de Jair Bolsonaro, que não conseguiu ser oficializado a tempo para a disputa eleitoral em outubro. De um total de 490 mil assinaturas necessárias para sua criação, a Aliança conseguiu apenas 3 mil assinaturas validadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A chegada de Carlos e Flávio ao Republicanos teve reflexos na mudança de postura de Marcelo Crivella no combate à pandemia do coronavírus. O prefeito estava afinado às orientações do governador Wilson Witzel, adversário político de Jair Bolsonaro, anunciando o fechamento do comércio e dos bancos na última semana de março. Mas, três dias depois, Crivella flexibilizou as medidas e afirmou que o comércio seria reaberto aos poucos. Temendo riscos à sua imagem, no entanto, não embarcou totalmente na onda da família Bolsonaro. Continuou a dizer que as pessoas que pudessem permanecessem em suas casas.
Na noite de segunda-feira, 30 de março, não havia culto no Templo de Salomão, a suntuosa sede da Universal no bairro do Brás, na região central de São Paulo. O recado era passado aos fiéis que telefonavam em busca de informações sobre o atendimento. A reportagem foi até o gigantesco centro religioso de Edir Macedo e constatou que permanecia aberto – com autorização e respaldo legal –, e os fiéis podiam entrar e orar. Seguranças e funcionários eram maioria na monumental obra, com 98 mil metros quadrados de área construída.
Ex-integrantes da Universal divulgaram em redes sociais que obreiros da igreja – uma espécie de auxiliar do pastor – têm sido convocados para ajudar no trabalho de limpeza dos templos. Eles recebem orientações também para não deixar de comparecer ao altar, orar e fazer suas doações à igreja.
O recuo da Universal também pode ter a ver com a crescente preocupação nas igrejas com a possível contaminação de pastores e fiéis pelo vírus.
O ex-pastor Davi Vieira revelou, em um canal no Telegram, que um bispo da Universal no Rio de Janeiro morreu após manifestar sintomas semelhantes aos do coronavírus. Mostrou cenas do velório, com religiosos orando e mantendo o distanciamento um do outro, e um caixão que estaria lacrado por causa de riscos da disseminação da doença. Uma pessoa ligada à igreja disse ter ouvido o relato de um pastor confirmando a morte por causa dessa doença. Vários usuários do Facebook também publicaram comentários sobre o suposto falecimento em razão do coronavírus. Procurada, a igreja confirmou a suspeita: “Há 7 anos, o Bispo lutava contra um quadro oncológico. Ele estava há uma semana em casa, de onde foi direto para o hospital após uma piora clínica, e onde veio a falecer. Apesar da suspeita de que a causa do morte seja a Covid-19, é pequena a probabilidade, pois a família toda, com quem passou os últimos dias, não apresenta qualquer sintoma” declarou a assessoria.
Outras denominações também começam a enfrentar o mesmo problema. Um pastor*, da Igreja Internacional da Graça, seria mais uma dessas vítimas, segundo o canal “Repondo a Verdade”, do Telegram, criado pelo ex-bispo Alfredo Paulo e pelos ex-pastores Davi Vieira e Marcelo Roque. O pastor atuava no Jardim Verônia, na periferia da zona leste de São Paulo. Na noite de terça-feira do dia 31, num horário de culto em dias normais, a rua onde funcionava o seu templo, estava deserta e a igreja, fechada. Um vizinho contou que o pastor morrera quatro dias antes, mas não sabia dizer a causa. À reportagem, a Igreja da Graça negou que tenha sido pelo coronavírus.
O pastor e diretor executivo da Convenção Batista Brasileira Sócrates Oliveira de Souza, que coordena várias igrejas – entre elas a Atitude, frequentada por Michelle Bolsonaro no Rio, também teve resultado positivo para o coronavírus, como mostra essa matéria do UOL.
Preocupados com a queda na arrecadação das igrejas durante as medidas de quarentena, pastores de megaigrejas, como Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, e R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, têm feito apelos em vídeo e nas redes sociais para que os fiéis paguem dízimos e ofertas. “Continuamos pagando milhares de aluguéis, de parcelas de imóveis adquiridos, de funcionários”, disse Valdemiro. A preocupação também atinge pastores de igrejas pequenas, que fizeram longas viagens de várias partes do país para visitar Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no último dia 2, e pedir a abertura de uma linha de crédito especial para as igrejas. “A igreja evangélica tem muitos pastores […] com seus aluguéis atrasados, com suas despesas avançadas”, disse um integrante do grupo ao presidente. Em conversa com o grupo no cercadinho da portaria, Bolsonaro voltou a minimizar a pandemia. Disse aos pastores que a posição dele desde o começo é que não se pode deixar de trabalhar e novamente colocou a conta do desemprego e da crise econômica nas medidas de isolamento social dos governos estaduais.
Essa preocupação com a queda na arrecadação dos dízimos e ofertas também é uma motivação para a pressão pela reabertura dos templos, na visão do pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco, e cientista político Joanildo Burity, que se dedica ao estudo da religião e da sociedade há mais de 30 anos. O pesquisador ressalta que “muitas dessas lideranças recebem legitimidade dos fiéis baseados nas manifestações de poderes sobrenaturais, curas, milagres”. “Isso coloca a fé em oposição a orientações médicas e científicas.”
A professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense e colaboradora do ISER Christina Vital acrescenta: “Para as igrejas menores o baque financeiro da suspensão das atividades presenciais é maior do que entre as denominações maiores. No caso das igrejas pequenas as ofertas e o dízimo são, muitas vezes, o único meio de arrecadação e manutenção dos trabalhos e único meio de custear o pastorado e de pagar o aluguel dos espaços. Nas igrejas maiores, embora suas estruturas sejam muito mais onerosas, a manutenção dos pastores e das estruturas físicas podem ocorrer por meio dos ganhos com editoras, redes de tv a cabo etc. Chegam ainda as arrecadações online que já eram recebidas. Ou seja, o culto presencial para eles é importante para arrecadação, mas menos até do que para as igrejas menores”.
Mas por que então são justamente líderes de algumas megaigrejas que estão se posicionando mais fortemente contra o fechamento dos templos? Christina responde: “Mais uma vez questões políticas e econômicas travestidas e, às vezes, somadas às religiosas. A maior parte dos líderes que estão neste apoio a Bolsonaro são empresários de diferentes segmentos. Ou seja, não se trata nem do baque financeiros das igrejas, mas nas próprias finanças das empresas de seus líderes”. A pesquisadora aponta ainda, em concordância com Burity, para o fato de que “somado a isso tem um elemento cultural que envolve este ambiente de descrédito científico, um posicionamento público de desconfiança permanente. Isso é totalmente destrutivo para a vida social e está causando muitas mortes nesta situação de pandemia”.
Tentando reverter a crise de financiamento, as igrejas estão se voltando à tecnologia. Criado no fim do ano passado, o aplicativo de dízimos e ofertas online “Eu Igreja” registrou um aumento de 600% nos cadastros de igrejas nos primeiros 15 dias de março, em comparação ao mesmo período do mês anterior, segundo apurou a reportagem. A congregação faz um cadastro sem custo no aplicativo, que recebe um percentual de 4,99% por doação feita através dele. A depender da movimentação financeira da igreja, a taxa pode ser negociada. O membro também faz um cadastro sem custos.
“Em uma semana cadastramos 250 novas igrejas”, contou à Agência Pública Rafael Lázzaro, 33 anos, sócio da empresa. Atualmente, 800 igrejas estão cadastradas, incluindo grandes congregações, como a Igreja Batista da Lagoinha, denominação da pastora e ministra Damares Alves. Sem revelar números das movimentações financeiras, Rafael, que gerencia a empresa com mais dois sócios, todos evangélicos, diz que o aplicativo segue a mesma lógica de outras plataformas como iFood e Uber. “A ideia é modernizar a forma como os fiéis podem contribuir, trazendo mais segurança. Nosso próximo passo é incrementar a plataforma, tornando ela em uma rede social.”
Mas não são apenas dízimos e poder político que impulsionam as igrejas evangélicas a fazerem lobby para manter os templos abertos. O engajamento e a conversão de novos membros também entram nessa conta, segundo Christina Vital. “Como se trata de uma religião de conversão, o contato presencial é muito importante. Neste sentido, o culto é importante para a conversão de novas pessoas e também para esta inculcação de valores, dos códigos de comportamento, de um repertório religioso específico, de estabelecimento e/ou fortalecimento de laços entre o fiel e a comunidade”.
Desde que Bolsonaro inseriu, por decreto, as igrejas no rol das atividades e serviços essenciais, o campo de batalha do poder evangélico foi transferido da política para a Justiça. A bancada evangélica mal teve tempo de celebrar: dois dias depois, a Justiça Federal suspendeu a liminar em primeira instância. O Juiz Márcio Santoro Rocha, da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ), ainda determinou multa de R$ 100 mil ao município e à União em caso de adoção de estímulos à quebra do isolamento social.
O problema, explica o procurador da República Julio José Araujo, autor da ação civil pública, é a ausência de parâmetros do governo federal. “‘Atividades essenciais’ não é um conceito elástico que vai mudando, de um dia para o outro. É um conceito que tem alguma rigidez, inclusive restritiva. Se todos os serviços e atividades forem essenciais, não teria razão de existir essa ideia. Elas estão ligadas a um funcionamento básico e mínimo de determinadas situações”, afirmou em entrevista à Agência Pública. Além disso, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que a medida extrapola o poder de regulamentação da União, ao ampliar, por meio de um decreto, medidas que já têm referências constitucional e legal. O objetivo da ação, diz Araujo, seria “impedir que a União use o conceito de atividades essenciais para precipitar, de maneira amplíssima, as medidas de saúde”. Como Bolsonaro já ameaçou publicamente baixar um decreto para acabar com a quarentena dos comércios determinada por prefeitos e governadores, “nisso o Judiciário pode interferir”, diz o procurador. Ele afirma que a liberdade de culto não é objeto da petição – uma vez que as atividades religiosas podem ser realizadas através da internet ou da TV – e que o argumento do MPF foi “jurídico e técnico”.
Bolsonaro afirmou que iria recorrer. “Vai começar uma guerra de liminares”, disse o presidente em entrevista a jornalistas em frente ao Planalto no dia 29 de março. O que, de fato, ocorreu: a Advocacia-Geral da União (AGU) levou a questão ao Tribunal Federal da 2ª Região (TRF2), que suspendeu a liminar dois dias depois, em 31 de março. O voto foi do desembargador Reis Friede, que apoiou abertamente Bolsonaro nas eleições de 2018, chamando a vitória do atual presidente de a “verdadeira cura e renascença nacional”. O MPF recorreu. Ainda não há decisão.
No mesmo dia da decisão do desembargador, outro juiz federal de primeira instância suspendeu o decreto. O juiz Manoel Pedro Martins de Castro Filho, da 6ª Vara Federal do Distrito Federal, também concedeu liminar suspendendo os efeitos do decreto, em resposta a uma segunda ação civil pública, ajuizada pelo MPF em Brasília. Por causa disso, os efeitos do decreto estão, por enquanto, anulados.
A guerra entre a Justiça Federal e o Executivo acirrou os ânimos de diferentes atores – incluindo comandantes militares e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, segundo alguns analistas. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) foi um deles. Em entrevista à Agência Pública, o presidente da associação, Uziel Santana, caracterizou os questionamentos ao decreto como “certo revanchismo de certos setores” contra a atuação do presidente. “Eu entendo a preocupação do Ministério Público. Agora volto a dizer: a igreja é uma organização religiosa, tem personalidade jurídica, tem diversas atividades que realiza – o culto solene público é apenas um desses elementos”, disse o presidente da Anajure. “Isso não era uma questão para o Ministério Público, no primeiro grau, atacar. É uma questão mais ligada à Procuradoria- Geral da República [PGR]”.
O tema, no entanto, assim que chegou à PGR foi encaminhado à Procuradoria no Rio de Janeiro. No dia 27 de março, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e um conjunto de 18 subprocuradores-gerais da República encaminharam uma representação ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo a invalidade do decreto de Bolsonaro. Aras não apreciou o pedido com o argumento de que ações semelhantes já estavam em andamento na primeira instância. Antes de assumir o cargo, Aras assinou uma carta da Anajure em que se comprometia a defender, por exemplo, isenção de imposto a igrejas, a preservação da família como instituição “heterossexual e monogâmica” e a possibilidade de tratamento de “reversão sexual”, chamada de “cura gay”.
A Anajure orienta que pastores e líderes religiosos sigam as recomendações de isolamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas defende que é importante que os templos estejam abertos para garantir outros serviços prestados pelas organizações religiosas, como a assistência social. Uziel Santana, que também é professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Federal de Sergipe, acredita que estados e municípios têm cometido “abusos” ao determinar o fechamento das igrejas. Ele diz que nenhum decreto pode determinar o fechamento das atividades das organizações religiosas. Por isso, a Anajure decidiu lançar o Observatório Anajure das Liberdades Civis Fundamentais. O site reuniu duas denúncias de interrupções de cultos destinados a transmissões online, em Minas Gerais e no Ceará, por agentes de segurança. Já em outro caso, em Fortaleza, um culto com 40 pessoas em um templo da Universal foi interrompido por policiais militares. Para a Anajure, as medidas dos agentes são “flagrantemente inconstitucionais”. A entidade pretende levar os casos à Justiça: “A gente quer começar a apurar e tomar medidas administrativas e, eventualmente, judiciais”, explicou o presidente.
A iniciativa é tão bem vista em setores do governo Bolsonaro que ganhou o respaldo total da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, uma das fundadoras da Anajure. A ministra até mesmo participou de uma live de lançamento da iniciativa, no dia 31 de março, pelo Instagram.
“A nossa ideia é que sejamos um braço – um dedo, na verdade, porque não somos tão grandes assim – do Ministério dos Direitos Humanos, como sociedade civil organizada”, afirmou à Agência Pública o presidente da Anajure.
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O lobby dos evangélicos contra o fechamento das igrejas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU