Mina Guaíba pode jogar um coquetel de substâncias tóxicas no ar. Entrevista especial com Paulo Brack

Ambientalista alerta que, em tempo de Covid-19, mineração de carvão pode se configurar como mais uma ameaça à saúde da população

Mina de carvão em Candiota | Foto: Tafael Medeiros - Seinfra

Por: João Vitor Santos | 19 Março 2020

O mundo está atônito com a evolução do coronavírus. Mas, ainda antes do início dessa pandemia, uma outra questão de saúde pública já vinha preocupando ambientalistas e técnicos: a possibilidade de operação de uma mina de carvão mineral em plena Região Metropolitana de Porto Alegre. O projeto da Mina Guaíba prevê instalar esse empreendimento às margens do Delta do Jacuí, podendo colocar em risco não só os ecossistemas naturais da região como toda a população que depende da água do Rio Guaíba. “Em tempos de coronavírus, no que toca à população dos municípios da região carbonífera vizinha ao projeto, onde já existem números elevados de doenças pulmonares em decorrência da poluição aérea do carvão, em especial a pneumoconiose: os efeitos deste poderoso Covid-19 atacam justamente as pessoas com debilidades no sistema respiratório”, alerta Paulo Brack, doutor em ecologia e que vem acompanhando de perto o tema da Mina.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Paulo ainda enfatiza que “o carvão é um coquetel de substâncias tóxicas que polui o ar, a água, os ecossistemas e prejudica a saúde humana”. Por isso, defende que o processo deve ser amplamente discutido, e não conduzido da forma como vem sendo feito. “Na leitura do Relatório de Impacto ao Meio Ambiente - Rima, verifica-se forte tendenciosidade ou propaganda enganosa, em um documento que deveria refletir o máximo de isenção, mas que a todo momento traz praticamente só os alegados benefícios de uma atividade das mais impactantes”, acrescenta.

O ambientalista detalha todas as fragilidades do processo e vai além: diz que é preciso repensar a lógica desenvolvimentista que se apoia em megaempreendimentos. “Grandes atividades que degradam o meio ambiente e desconstroem modos de vida locais, com a suposta intenção de gerar empregos e renda, podem afundar ainda mais as condições ambientais e inclusive a economia”, adverte. E lança um desafio, para que não esqueçamos da crise climática: “o importante movimento “Fridays for Future”, ou greves de estudantes pelo clima, liderado pela garota Greta Thunberg, agora com a pandemia de Covid-19, ficará mais difícil. Mas, quando esta pandemia passar, este movimento tem que voltar e se multiplicar, inclusive aqui no estado e no Brasil”.

Paulo Brack (Foto: Reprodução | Youtube)

Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS. 

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como compreende o fato de que em pleno século XXI, no ano de 2020, o Rio Grande do Sul esteja discutindo a implantação de uma mina de extração de carvão mineral? O uso de carvão mineral já não está superado?

Paulo Brack – É uma questão que nos aflige saber que os governos do estado e do Brasil não se atentaram, ou são negacionistas, em relação à gravidade da crise climática. Não existe solução para nos livrarmos dos gases de efeito estufa que não seja a diminuição do uso dos combustíveis fósseis usados na geração de energia. Atualmente, os níveis de CO2 na atmosfera do planeta dispararam para 405 ppm (partes por milhão), considerando que representavam 277 ppm, em meados do século XVIII.

Segundo declarações do secretário geral da Organização das Nações Unidas - ONU, António Guterres, dadas em 2018: “Nenhum outro desafio em escala global é tão ameaçador quanto as mudanças do clima”. Na época, afirmou que “bilhões de dólares ainda precisam ser direcionados a estratégias renováveis para garantir uma transição para energia limpa em grande escala” até 2020. Infelizmente, em 10 de março deste ano, o secretário da ONU teve que reconhecer que “o mundo está muito longe de cumprir as metas de [não superar] 1,5 °C ou 2 °C”, referentes aos compromissos assumidos pela comunidade internacional, em 2015, no Acordo de Paris.

A declaração do secretário foi dada em um dos últimos relatórios da Organização Meteorológica Mundial. Segundo a OMM, o ano de 2019 teve uma temperatura média global de 1,1 °C acima dos níveis pré-industriais estimados, perdendo apenas para o recorde de 2016. Ou seja, o ano passado foi o segundo mais quente de todos os registros históricos. Em resumo, se a ONU reconhece o problema climático como o maior desafio para a humanidade, e recomenda reduzir o uso de combustíveis fósseis, como justificar a abertura da maior mina de carvão do Brasil e uma das maiores da América Latina, aqui no Estado? Nos perguntamos, ainda, por que a empresa não apresentou os dados estimados referentes aos gases de efeito estufa decorrentes do empreendimento nos estudos de impacto ambiental.

O carvão no mundo

Bom, o setor do carvão e da energia alega que o carvão é abundante (cerca de 90% das reservas brasileiras no Rio Grande do Sul), mas sonega que é, hoje, uma fonte mais cara do que as energias renováveis. O próprio Fórum Econômico Mundial – que tem presença pesada de setores conservadores, negacionistas da crise climática e das empresas do setor dos combustíveis fósseis – reconheceu em 2017 que o carvão já é mais caro do que as fontes de energia eólica e solar. Cabe assinalar também que a Alemanha, em 2018, fechou sua última mina de carvão e assumiu o compromisso de fechar todas as térmicas a carvão até 2038.

De forma mais radical, em 2017, uma iniciativa britânico-canadense conseguiu que um grupo de 20 países, a maior parte europeus, fizesse parte da Aliança para o Abandono do Carvão, até 2030. Infelizmente, o Brasil ficou de fora, juntamente com EUA e China, por exemplo, com o agravante de que em 2018 foram gastos em nosso país R$ 85 bilhões de subsídios aos combustíveis fósseis, incluindo o carvão.

Por outro lado, a energia eólica, além de mais barata e mais limpa, já é a segunda fonte de energia elétrica do país e, a despeito de alegarem que o vento não é contínuo, temos um litoral de mais de 7 mil km e um território gigantesco, com ventos aqui ou acolá, o que assegura energia eólica em quantidades consideráveis já que o sistema de transmissão está interligado.

IHU On-Line – De que forma podemos contextualizar esse debate num mundo em que, apesar da emergência da crise climática, vê-se o negacionismo florescer?

Paulo Brack – Devemos incrementar a informação e dar mais clareza sobre a consolidação dos dados oficiais incontestáveis, realmente dramáticos, sobre a emergência climática, inclusive os indícios ou as incertezas, seguindo o Princípio da Precaução, a fim de sensibilizar a sociedade como um todo. O importante movimento “Fridays for Future”, ou greves de estudantes pelo clima, liderado pela garota Greta Thunberg, agora com a pandemia de Covid-19, ficará mais difícil. Mas, quando esta pandemia passar, este movimento tem que voltar e se multiplicar, inclusive aqui no estado e no Brasil.

É preciso estimular a tomada de posição em espaços diferenciados, desde a academia até as associações de bairro e movimentos sociais para cobrarmos a existência de políticas públicas para fazer frente aos problemas climáticos de origem antrópica, até mesmo apelando para a justiça, se necessário. A sociedade deve exigir do executivo a responsabilidade, ainda não assumida, e alertar para as consequências desastrosas advindas da negligência ou mesmo estrangulamento deliberado das políticas públicas socioambientais, que seguem favorecendo combustíveis fósseis, que estão na raiz deste problema.

Segundo um especialista norte-americano, que liderou a associação de Médicos pela Responsabilidade Social (PSR, em inglês) nos EUA, Dr. Alan Lockwood, primeiro autor de importante publicação, traduzida para o português como “O Ataque do Carvão à Saúde Humana” ,“a única maneira de se combater as emissões de carbono com mudanças climáticas é fechar todas as minas de carvão e desligar usinas térmicas com este combustível e desenvolver apenas fontes alternativas de energia” .

IHU On-Line – Quais os maiores riscos do projeto da Mina Guaíba? E como esses riscos vêm sendo tratados pela empresa e mesmo pelo poder público?

Paulo Brack – O projeto é gigantesco e implica na exploração de 166 milhões de toneladas de carvão mineral, um dos principais combustíveis fósseis e mais sujos da atualidade. Os riscos são múltiplos, desde degradação ambiental decorrente do impacto nos ecossistemas, via mineração, que acidifica os cursos de água, seguindo-se o beneficiamento e a fragmentação do carvão em trilhões de partículas para serem queimadas ou transformadas em gás ou outros produtos.

Cabe também assinalar os estragos decorrentes das detonações de rochas e de minério de carvão, que afetam as residências e perturbam moradores do entorno das minas. As nuvens de poeiras, com partículas microscópicas representam risco altíssimo já comprovado em outras áreas de mineração no país. As áreas mineradas, antes do que chamam de “recuperação”, serão fontes de poluição por muitos anos. Não existe solução para os rejeitos e cinzas depois desta queima, na área e/ou fora dela, incluindo os poluentes aéreos e hídricos, derivados das etapas de mineração, beneficiamento e da queima ou transformação do carvão em derivados.

Na realidade, o carvão é um coquetel de substâncias tóxicas que polui o ar, a água, os ecossistemas e prejudica a saúde humana. A poluição é de altíssima magnitude. A empresa não fez estudos completos primários em diferentes épocas do ano sobre os particulados, praticamente somente em uma estação, como questiona trabalho de Márcia Käffer, na publicação do Painel de Especialistas, coordenado pelo movimento Comitê de Combate à Megamineração – CCM, que reúne mais de cem entidades e dezenas de pesquisadores. Nem mesmo os estudos de impacto ambiental da empresa referem-se ao risco dos metais pesados, como chumbo, mercúrio, arsênio, zinco, cádmio, entre outros, que se encontram no carvão. Entre os prejuízos ainda não dimensionados se deve destacar também a perda de modos de vida locais para dar lugar à exploração de um dos principais combustíveis fósseis que ameaça a saúde do planeta como um todo.

Doenças

Quanto às doenças, trazemos aqui novamente o alerta do Dr. Alan Lockwood, que assinala que o carvão provoca doenças cardíacas e respiratórias crônicas, danos cerebrais e câncer, que estão entre as cinco principais causas de mortes nos Estados Unidos. Existem estimativas do número anual de mortes no mundo decorrentes da poluição do ar pela combustão de carvão, correspondendo a 210 mil a 387 mil mortes, 2 milhões de doenças graves e mais de 151 milhões de doenças menores por ano. Partículas, mercúrio, NOx, SOx e os poluentes a esses associados, como ozônio em camadas baixas da atmosfera, agora reconhecido como uma das maiores ameaças à saúde.

Documento ou propaganda enganosa?

Na leitura do Relatório de Impacto ao Meio Ambiente - Rima, verifica-se forte tendenciosidade ou propaganda enganosa, em um documento que deveria refletir o máximo de isenção, mas que a todo momento traz praticamente só os alegados benefícios de uma atividade das mais impactantes. A Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler – Fepam não deveria aceitar semelhantes relatórios que destacam somente um lado da moeda.

O empreendimento vem sendo propagandeado por enorme lobby em diferentes âmbitos, inclusive por parte do Governo do Estado, e é defendido pelo próprio Secretário Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos, que já se manifestou favoravelmente, assinalando que “utilizar o carvão é viável social, ambiental e economicamente” . Chama a atenção o evidente conflito de interesses entre o próprio chefe de uma secretaria que trata do meio ambiente e que deveria possuir autonomia para decidir a viabilidade ou não de uma atividade como esta. Ademais, o atual secretário, que fez parte da Secretaria de Minas e Energia durante o anterior governo José Ivo Sartori, acaba se tornando correia de transmissão de setores que querem manter a velha infraestrutura, agora ainda mais sob a batuta da privatização.

Fica no ar a pergunta: qual a isenção para ser realizado um licenciamento autônomo e independente, já que temos um agente de promoção de empreendimentos chefiando a pasta de meio ambiente?

IHU On-Line – Além da instalação da Mina Guaíba, discute-se a criação de um polo carboquímico. No que consiste esse polo e quais os riscos?

Paulo Brack – Em nenhum momento foram apresentados detalhes sobre o projeto do Polo Carboquímico, tendo sido citado, mas não explicitado. Constata-se, portanto, que não existe transparência na finalidade do empreendimento, o que levou o Ministério Público Estadual – MPE a entrar com ação para interromper qualquer iniciativa de levar adiante estes empreendimentos, já que deveriam ser tratados conjuntamente e não de forma desmembrada, de forma a quebrar o sentido real do entendimento da maior magnitude e sinergia dos mesmos.

O Polo Carboquímico, proposta que vem sendo levantada desde a década de 1980, sempre foi enfaticamente criticado pelo falecido professor Flávio Lewgoy, químico e geneticista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, também ambientalista, que sempre levantava a questão dos riscos dos metais pesados, altamente tóxicos, inerentes a estas atividades. Mas, já que não existe projeto de Polo Carboquímico tramitando no órgão ambiental, vou limitar aqui minha resposta. 

 

Delta do Rio Jacuí (Foto: skyscrapercity.com)

IHU On-Line – Qual a sua leitura sobre a forma como o Governo do Estado e prefeitos da região defendem o projeto da Mina Guaíba?

Paulo Brack – Na realidade, megaempreendimentos refletem a tendência dos negócios de sempre, mesmo os mais insustentáveis, como neste caso da mineração de carvão. Prefeitos de municípios que possuem minas de carvão seguem reféns da economia dominante, defendendo o poluente carvão, e desejam a continuidade de dinheiro para suas gestões, a despeito dos efeitos colaterais dessas atividades. Mas não admitem que depois de 20 ou 30 anos as minas se exaurem, e as pessoas, adoecidas ou não, o que vão fazer depois? Por que não respondem à pergunta relacionada ao baixo PIB dos municípios tradicionalmente envolvidos na atividade carbonífera, como Arroio dos Ratos, Butiá e Minas do Leão?

Há de ressaltar, que deixamos passar sem debate uma lei aprovada em 2017 que dá benefícios fiscais a atividades ligadas ao carvão, situação que reflete uma visão econômica imediatista que privilegia uma atividade que prejudica imensamente a qualidade da água, do ar, do solo, dos ecossistemas e da vida humana. Faz parte do rol de atividades que jogam no ralo as bases da vida no planeta, das gerações atuais e futuras, mas mantêm-se as condições momentâneas para as reeleições de políticos e governantes atrelados a atividades insustentáveis que dominam o cenário de esgotamento, que está a emergir. O peso dos investimentos acaba tendo maior importância do que a proteção do Meio Ambiente. Tal situação gerou por parte do governo do Estado a mudança ou extinção de mais de 500 artigos ou itens da Lei 11.520, o Código Estadual de Meio Ambiente, diminuindo as restrições para tais empreendimentos.

Mapa cedido por Rualdo Menegat

As pressões dos setores empresariais, junto com o governo, blindaram inclusive qualquer discussão do tema no Conselho Estadual de Meio Ambiente – Consema. Evitaram debater os riscos do maior empreendimento poluidor previsto para o Estado. A matéria foi solicitada de ser esclarecida e debatida no Consema, pelas entidades ambientalistas, mas os agentes do governo e os representantes das federações de indústrias e do agronegócio do RS e demais setores associados, presentes no Conselho, negaram, por maioria, a discussão do tema.

IHU On-Line – Que ideia de desenvolvimento está intrínseca no projeto da Mina Guaíba? Como superar essa lógica, pensando noutro tipo de desenvolvimento econômico e social?

Paulo Brack – As palavras do imaginário do desenvolvimento são naturalizadas como automáticas a esse tipo de negócio, como consta no Rima: “Trata-se de um projeto estratégico para o Estado do Rio Grande do Sul”. Considero que a palavra “estratégica” refere-se a manter os negócios imediatistas e insustentáveis sem uma avaliação de sua viabilidade socioambiental. Megaempreendimentos representam muito capital e poder envolvidos. Grandes lobbies, muitos recursos de financiamentos de campanha, encobertos hoje pelo CPF de representantes do setor empresarial. O que faz rodar o círculo vicioso de negócios que representam a sobretransformação da natureza.

Além disso, as populações locais são praticamente ignoradas nos megaempreendimentos. Para a maior parte dos políticos e do setor empresarial, a mineração de carvão, na magnitude proposta, é vista como redentora. Trata-se de “salva-vidas-de-chumbo”, expressão utilizada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano para referir-se a megaempreendimentos de silvicultura no Cone Sul. Ou seja, grandes atividades que degradam o meio ambiente e desconstroem modos de vida locais, com a suposta intenção de gerar empregos e renda, podem afundar ainda mais as condições ambientais e inclusive a economia. Representa muitas vezes o gigantismo e o delírio de políticos e de tecnocratas associados a tudo isso, pois implica em financiamentos por parte de bancos públicos, muitos gastos de insumos em pesadas empreiteiras, o que faz girar a atual economia.

Respeitar os processos ecológicos e utilizar as energias que estão à nossa disposição, de forma mais barata, como a energia eólica, a solar e a bioenergia de fontes diversificadas, respeitando os ciclos fechados da natureza, é ser realmente econômico e implica em transformar minimamente o meio. Na lógica atual, transformar pouco não serve, pois não acelera o crescimento dos negócios que faz parte de uma economia hegemônica, irreal, que está de costas aos limites da natureza. Necessitamos um outro tipo de desenvolvimento, ou incorporar o conceito de Bem Viver, mas para isso é fundamental questionar o paradigma do crescimento econômico e sua subjacente sobretransformação dos processos ecológicos. Devemos chamar à discussão a Economia Ecológica que faz repensarmos os limites necessários, o que implica em incorporarmos o decrescimento, como nos fala um dos principais expoentes no tema, o professor da Universidade de Valladolid, Espanha, Oscar Carpintero Redondo.

IHU On-Line – Toda a área do Delta do Jacuí pode ser impactada pelo empreendimento. Mas no que consiste essa região, tão próxima a Porto Alegre, tão rica em termos de recursos ambientais e ecossistemas?

Paulo Brack – A área prevista para o empreendimento constitui-se em uma imensa planície úmida. Existem unidades de conservação importantíssimas nas áreas de influência direta do empreendimento e o Estudo de Impacto Ambiental reconhece os riscos sobre as Áreas de Amortecimento de uma Unidade de Conservação de proteção integral, no caso o Parque Estadual Delta do Jacuí, e outra de uso sustentável, a Área de Proteção Ambiental do Delta do Jacuí. Ambas UCs fazem parte da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, situação que gerou um documento desaprovando a localização da mina de carvão, por meio do Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

Cabe destacar que um projeto desta magnitude tampouco possui anuência dos técnicos do quadro da Divisão de Unidades de Conservação - DUC da Secretaria de Meio Ambiente - Sema, no que toca à área de amortecimento da UC de proteção integral. A atividade não poderia, em hipótese nenhuma, gerar impactos nas unidades de conservação nem nestas áreas de entorno, o que poderia representar riscos sobre espécies ameaçadas de extinção.

Entretanto, o empreendedor reconhece o potencial impacto, por meio da leitura do Relatório de Impacto Ambiental (pg. 16 do Rima): “Além da Alternativa A ser a mais vantajosa em relação à Alternativa B, o projeto foi revisado visando atenuar os impactos em relação às unidades de conservação”. Por outro lado, especialmente os recursos hídricos, muito provavelmente, ficariam comprometidos, já que a acidificação dos corpos d’água e a contaminação dos mesmos com metais pesados (mercúrio, chumbo, cádmio, etc.), que vêm à tona com a mineração e seu uso, estavam sequestrados no carvão que permanecia inerte no subsolo.

A poluição é uma realidade de inúmeras minas de carvão existentes ou abandonadas no sul do Brasil. Como agravante, a mineração a céu aberto obrigaria a supressão de milhares de hectares de vegetação nativa, como florestas, banhados, campos, ou áreas já parcialmente antropizadas, no caso de culturas de arroz ou outras culturas, incluindo produção orgânica importantíssima para os próprios agricultores e os moradores da região. A área poderia fazer parte de um Cinturão Agroecológico da RMPA. Esta é a vocação de uma área como esta que representaria inclusive efeito tampão para empreendimentos que vêm degradando o meio ambiente.

Biodiversidade do Delta

Quanto à biodiversidade, cabe destacar os múltiplos impactos sobre os remanescentes protegidos e, por sua vez, sobre a fauna e a flora. Em especial, neste caso do Projeto Mina Guaíba, uma fauna de áreas baixas, representada principalmente por dezenas de espécies de aves aquáticas, algumas migratórias, de banhados (como o gavião-caramujeiro), no caso das matas ciliares e demais áreas úmidas. Na área prevista para o empreendimento, ocorrem espécies raras e/ou ameaçadas como a Lontra (Lontra longicaudis), Tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), Coleiro-do-brejo (Sporophila collaris), Paca (Coniculus paca), Quati (Nasua nasua), Gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroy), Gato-maracajá (Leopardus wiedii), Gato-mourisco (Puma yagouaroundi), Bugio (Alouatta guariba clamitans), entre outros.

Quanto à flora, no EIA-Rima, destacam-se espécies ameaçadas como Grápia (Apuleia leiocarpa), Canela-preta (Ocotea catharinensis), Orquídea-flor-de-natal (Cattleia tigrina), Guaricana-do-brejo (Geonoma schottiana), Butiá (Butia odorifera). O Rima do empreendimento não cita o que fazer com a flora ameaçada. Estudo encabeçado pelo biólogo Juliano de Oliveira Nunes (pg. 75 do Painel de Especialistas) levanta uma série de inconsistências metodológicas e de caracterização fitogeográfica, principalmente pelo esforço amostral da flora e da vegetação ser incompleto. 

IHU On-Line – Como as atividades humanas, das pequenas comunidades, da agricultura e mesmo das formas de vida de uma grande cidade, que é Porto Alegre, podem ser impactadas pela Mina Guaíba?

Paulo Brack – Na Área Diretamente Afetada - ADA da lavra de carvão, implicaria na remoção compulsória ou não de mais de setenta famílias de agricultores do Assentamento Apolônio de Carvalho e centenas de moradores do bairro Guaíba City. O Assentamento (943,20 ha) pertence ao Incra, sendo constituído, em sua maioria, por áreas de várzea, com cerca de 600 hectares onde ocorre predominantemente cultivo de arroz orgânico, sendo uma das principais fontes de renda para as famílias assentadas. Trata-se de uma das maiores produções de arroz orgânico no RS, a qual está inserida no âmbito de uma experiência mais ampla – o Grupo Gestor de Arroz Ecológico do RS – que faz parte de outras áreas da Região Metropolitana de Porto Alegre, envolvendo centenas de produtores.

Afora a produção de arroz, outras famílias de assentados, dentro e em áreas de entorno do assentamento, atuam na produção de hortaliças e frutas orgânicas, fornecendo alimentos frescos e de alta qualidade em diversas feiras nos municípios de Porto Alegre e região. Além das centenas de famílias, que seriam obrigadas a sair de suas moradias na área diretamente afetada, talvez outros milhares de pessoas, incluindo povos indígenas guaranis, teriam que ser deslocados da área de entorno, devido às condições de poluição e também pelo rebaixamento do lençol freático das áreas rurais da circunvizinhança do empreendimento. O Estudo de Impacto Ambiental não realizou um estudo abrangente da população atingida e, inclusive, foram ignorados os indígenas guaranis que vivem na área de influência direta do empreendimento, fato que gerou ações de cancelamento do processo de licenciamento enquanto este tema não for adequadamente abordado.

IHU On-Line – O senhor tem acompanhado o processo de discussão do projeto em audiências públicas. Como avalia esse processo?

Paulo Brack – Houve duas audiências públicas oficiais realizadas pela Fepam. A primeira delas, em Charqueadas em meados de março de 2019. Nesta, a então secretária e diretora da Fepam, Ana Pellini, encaminhou o edital de audiência pública, no final de 2018, convocando para a apresentação do projeto, com base em informações que permaneciam incompletas no EIA-Rima, onde os técnicos do órgão pediam complementações, o que prejudicou o processo. Inclusive a audiência sofreu uma ação por parte de entidades ambientalistas para não ser realizada, justamente por não se possuir as informações complementares necessárias.

A segunda audiência ocorreu em Eldorado do Sul, em 29 de junho de 2019, com grande público. Ocorreram outras duas audiências, uma no Ministério Público Estadual e outra na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. As entidades ambientalistas e o Comitê de Combate à Megamineração solicitaram audiência pública da Fepam em Porto Alegre, o que, estranhamente, ainda não ocorreu, já que o projeto está previsto para uma distância de cerca de 16 km da Capital.

Processo de licenciamento

Atualmente, o processo de licenciamento está interrompido por decisão liminar da justiça federal, de 21 de fevereiro, por meio de ação de uma entidade, em decorrência de a empresa Copelmi e a Fepam não terem reconhecido a existência de territórios Mbyá Guarani na área de influência direta (AID) do projeto da mina de carvão. O processo só poderá ser retomado após análise conclusiva do componente indígena pela Funai, bem como direitos e garantias que constam na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina a necessidade de realização de consulta prévia livre e informada às comunidades indígenas afetadas.

IHU On-Line – Recentemente, o Governo do Rio Grande do Sul comemorou a aprovação de medidas que “flexibilizam os licenciamentos ambientais” para empreendimentos. Quais os riscos desse tipo de “flexibilização”? E que relação podemos estabelecer com a defesa do projeto da Mina Guaíba?

Paulo Brack – No caso das árvores imunes ao corte, como as figueiras nativas (gênero Ficus), o Código Florestal Estadual (lei 9519/1992) protegia-as, agora não mais. Cria confusão com conceitos de nascentes, banhados, precariza a definição de Mata Atlântica. Existe uma série de absurdos no novo Código (Lei Est. 15.434/2020) além da LAC, Licença por Adesão e Compromisso, também chamado autolicenciamento, sendo fragilizado o controle das licenças pelo órgão ambiental.

Outra brecha da nova lei dá oportunidade de a Fepam contratar, de forma “eventual”, ou seja, sem concurso, para determinados empreendimentos, ou seja, técnicos contratados de maneira precária para o licenciamento, o que representa fragilizar a excelência, a autonomia e a independência no processo. Isso abre a porta para interesses privados, ingerência política e econômica, como já existe em muitos municípios, onde o julgamento de licenças sofre enorme pressão de prefeitos, secretários e famílias poderosas do interior.

A atividade que envolve licenciamento é uma atribuição que deveria ser limitada a um servidor público concursado, de forma semelhante à função de um juiz, que necessita de independência para julgar. O enfraquecimento dos técnicos da Fepam e da Sema ficou evidente na nova lei, o que dá certo espaço maior de ingerência governamental e econômica, representando interesses privados sobre os interesses públicos, neste caso do licenciamento ambiental. Tristes Subtrópicos. Temos que estar vigilantes e não permitir que no caso do Projeto Mina Guaíba estes interesses ilegítimos não sejam barrados.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paulo Brack – Reitero as palavras do Secretário Geral da ONU, António Guterres: “ou paramos esse vício em carvão ou todos os nossos esforços para combater as mudanças climáticas estarão condenados”.

Em relação à saúde humana, o carvão é responsável por centenas de milhares de mortes prematuras por ano em todo o mundo e muitos milhões de doenças mais graves e outras não tão graves, tanto por problemas respiratórios, cardíacos, circulatórios, neuronais, entre outros. O relatório “Coal Kills ” avalia que na Índia o carvão contribuiria com 80 mil a 115 mil mortes prematuras por ano. Na China estes valores são bem maiores. Nos EUA, o carvão mataria anualmente cerca de 13 mil pessoas e na Europa 23.300. Os custos econômicos dos impactos na saúde decorrentes da combustão de carvão na Europa são avaliados em cerca de US$ 70 bilhões por ano, com 250.600 anos de vida perdidos.

Finalizaria com a reflexão de que, em tempos de coronavírus, no que toca à população dos municípios da região carbonífera vizinha ao projeto, onde já existem números elevados de doenças pulmonares em decorrência da poluição aérea do carvão, em especial a pneumoconiose: os efeitos deste poderoso Covid-19 atacam justamente as pessoas com debilidades no sistema respiratório. 

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