06 Março 2020
A exortação apostólica "Querida Amazônia" é a revelação de que o reformismo eclesiástico de Jorge Mario Bergoglio é muito menos efetivo do que ele deixou acreditar e do quanto muitos de seus admiradores pensaram? A resposta a essa pergunta não pode ser simplista.
O artigo é de Alberto Bondolfi, teólogo suíço, e Ernesto Borghi, teólogo suíco, biblista, leigo casado, publicado por Dialoghi, n. 260, fevereiro de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois de ler a encíclica "Laudato si'" (2015) e o que foi proposto antes (a exortação apostólica "Evangelii gaudium", 2013) e depois (a exortação apostólica "Amoris laetitia", 2016) tudo o que está contido nos três primeiros capítulos de "Querida Amazônia" não é particularmente impressionante: o Papa Francisco tem uma notória sensibilidade ecológica integral e os três primeiros sonhos que ele expressa - social, cultural e ecológico - contêm esclarecimentos e aprofundamentos sobre perspectivas culturais, sociais e políticas já esboçadas de forma brilhantemente no passado recente, Entre os exemplos mais positivos estão, acreditamos, os n. 36-37-38, onde a consideração das culturas indígenas amazônicas, no quadro da interculturalidade mundial, possui características de amplo e estimulante enfoque formativo. Por exemplo, pode ser lida esta passagem (n. 42): "Se os cuidados das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis, isso se torna particularmente significativo lá onde ‘a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres com os quais se relacionar’
1. A sabedoria dos povos nativos da Amazônia ‘inspira o cuidado e o respeito pela criação, com clara consciência dos seus limites, proibindo o seu abuso. Abusar da natureza significa abusar dos antepassados, dos irmãos e irmãs, da criação e do Criador, hipotecando o futuro’;
2. Os indígenas, ‘quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuidam’;
3. desde que não se deixem enredar pelos cantos das sereias e pelas ofertas interesseiras de grupos de poder”.
Tendo dito isso e depois de reconhecer os aspectos amplamente positivos dos três primeiros "sonhos" delineados pelo Papa Francisco (cf. n. 5-60), compartilhamos a decepção que se espalhou entre todos aqueles que têm duas convicções: - não acreditam que ser fiel ao Deus de Jesus Cristo signifique defender tradições eclesiásticas "contingentes"; - consideram que são francamente risíveis afirmações tais como, por exemplo, alegar que o celibato é ontologicamente próprio do presbiterado.
Em Querida Amazônia, ao delinear seu quarto sonho, aquele "eclesial", e ao refletir sobre o futuro da Igreja católica nessas regiões latino-americanas, Bergoglio mostrou que não deseja dar um seguimento direto do que está contido, por exemplo, no n. 111 do documento final do Sínodo Amazônico, aprovado por uma grande maioria dos padres sinodais: “Propomos estabelecer critérios e disposições, de parte da autoridade competente, para ordenar sacerdotes homens idôneos e reconhecidos da comunidade, que tenham um diaconato permanente frutífero e recebam uma formação adequada para o presbiterado, poder ter uma família constituída e estabelecida, para sustentar a vida da comunidade, através da pregação da Palavra e a celebração dos sacramentos nas áreas mais remotas da região amazônica".
Ler os números 61-110 de Querida Amazônia sugere mais de um motivo de preocupação. Pode ser que tenhamos conhecimento inadequado da situação de comunidades e grupos religiosos daquela grande área da América do Sul (a partir disso talvez se possa entender a "radicalização" católica do nº 107, como uma resposta a fundamentalismos de vários tipos, em relação à consideração razoavelmente ecumênica do nº 108). Por outro lado, momentos do documento como o que segue (n. 101) pertencem a persuasões tradicionalistas que, biblicamente falando, não são sustentáveis:
“Jesus Cristo apresenta-Se como Esposo da comunidade que celebra a Eucaristia, através da figura de um varão que a ela preside como sinal do único Sacerdote. Este diálogo entre o Esposo e a esposa que se eleva na adoração e santifica a comunidade não deveria fechar-nos em concepções parciais sobre o poder na Igreja. Porque o Senhor quis manifestar o seu poder e o seu amor através de dois rostos humanos: o de seu divino Filho feito homem e o de uma criatura que é mulher, Maria. As mulheres prestam à Igreja a sua contribuição segundo o modo que lhes é próprio e prolongando a força e a ternura de Maria, a Mãe".
Considerações desse tipo parecem contradizer a ampla abordagem cultural e social da primeira parte dessa exortação apostólica e das outras duas exortações mencionadas anteriormente. Igualmente contraditórias, em nível religioso e eclesial, parecem também as seguintes observações (nº 91-93):
"Quem preside à Eucaristia deve ter a peito a comunhão, que, longe de ser uma unidade empobrecida, acolhe a múltipla riqueza de dons e carismas que o Espírito derrama na comunidade. Ora a Eucaristia, como fonte e cume, exige que se desenvolva esta riqueza multiforme. São necessários sacerdotes, mas isto não exclui que ordinariamente os diáconos permanentes – deveriam ser muitos mais na Amazônia –, as religiosas e os próprios leigos assumam responsabilidades importantes em ordem ao crescimento das comunidades e maturem no exercício de tais funções, graças a um adequado acompanhamento. Portanto não se trata apenas de facilitar uma presença maior de ministros ordenados que possam celebrar a Eucaristia. Isto seria um objetivo muito limitado, se não procurássemos também suscitar uma nova vida nas comunidades. Precisamos de promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade por meio de vários serviços laicais, que supõem um processo de maturação – bíblica, doutrinal, espiritual e prática – e distintos percursos de formação permanente".
O futuro poderia ser melhor do que o presente. Certamente, se lermos os n. 2-3 de Querida Amazônia, observamos que o Papa – a diferença do que foi realizado sobre a ordenação sacerdotal feminina pelo Papa João Paulo II, com a colaboração do então presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, o card. Joseph Ratzinger - não fecha a caminho para possíveis desenvolvimentos futuros também no sentido da ordenação sacerdotal de homens casados. O futuro nos dirá se Bergoglio autorizará - talvez com um motu proprio específico - essas ordenações, certamente necessárias no território amazônico e, nos permitimos dizer - junto com muitos expoentes, por exemplo, da Igreja católica alemã - também em outras regiões do mundo. É perfeitamente compreensível a necessidade de não dar ocasião a brechas intraeclesiais (a publicação do livro pelo Card. Sarah e o bispo de Roma emérito foi um episódio que fez entender até mesmo aqueles que não se consideram "do ramo" um dado de fato: a situação interna da Igreja Católica tornou-se realmente crítica e o risco de uma divisão institucional era e é perceptível, mesmo colocando entre parênteses o burburinho midiático que a acompanha. Agora vale a pena examinar também os ecos que Querida Amazônia teve em nossas latitudes. Visto que o Papa Francisco convida explicitamente os bispos a se colocarem em uma lógica sinodal de troca e de comunicação com todo o povo de Deus sobre as questões levantadas pelo sínodo amazônico, é sintomático observar como vários bispos, tanto na França quanto na Alemanha (nos limitamos a esses dois países do quais dispomos mais facilmente de acesso aos canais de informação) tenham repercutido sua reação ao documento do Papa. Eles destacaram as razões da satisfação e as de apreensão e, em parte, também de decepção. Na Suíça, deve ser assinalada a reação pública do atual presidente da conferência dos bispos, Felix Gmür, atento a não considerar o texto do Papa Francisco como uma "última palavra" que encerre o animado debate em andamento sobre os ministérios.
Ainda observando o contexto suíço, mas também o italiano, percebemos um fenômeno que não é novo, mas particularmente amplo, que, em nossa opinião, confirmou um novo estilo de comunicação na esfera teológica. Explicamos: alguns teólogos e teólogas de profissão e professores universitários que atuam nas faculdades teológicas, expressaram sua reação à Querida Amazônia diretamente na mídia social Facebook, trocando argumentos e opiniões diretamente com pessoas que não atuam diretamente na pesquisa teológica4. Esse fenômeno, em nossa opinião, é realmente exemplar, pois leva o debate teológico sobre os ministérios e sobre as condições de acesso (celibato e ordenação de mulheres) das salas universitárias e revistas científicas para uma "praça virtual" na qual se podem encontram excessos e inadequações até deploráveis, mas onde todos podem se expressar.
Esses teólogos e essas teólogas evidentemente assumiram um certo risco, uma vez que a praça das mídias sociais não é isenta de ter ambiguidades e perigos para a comunicação intraeclesial. Depois de ponderar estes últimos com as oportunidades abertas por esse meio de comunicação, eles instauraram um debate ainda em curso, que nos impressionou muito positivamente. É sem dúvida uma das possibilidades abertas, desde o início de seu ministério, pelo atual bispo de Roma: liberdade efetiva de pensamento e de expressão dentro da Igreja católica. Até o momento, o fenômeno, até onde sabemos, se limita à área de língua alemã e, de certa forma, também de língua italiana, mas pode se estender a outras áreas europeias e também acompanhar as primeiras tentativas de processos sinodais ainda em statu nascendi.
Concluindo essas sumárias considerações após a Querida Amazônia, parece-nos importante enfatizar que as portas que Francisco não fechou explicitamente devem ser consideradas como abertas. Abertas à reflexão de todos e de todas, à troca de argumentos, experiências e propostas operacionais. Como se dizia em anos não muito distantes: ce n'est qu'un début, continuons le combat ...
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Por uma Igreja católica mais cristã da Amazônia para o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU