05 Março 2020
“Pretender interpretar toda a experiência desse kairós em sua redução à Assembleia de outubro seria um triste reducionismo da revelação e, portanto, seria uma maneira de sufocar a novidade que dele quer emergir”, escreve Mauricio López, secretário-executivo da REPAM, em artigo publicado por Vida Nueva, 04-04-2020. A tradução é do Cepat.
O Sínodo da Amazônia é, foi e será uma contribuição significativa e substancial no kairós eclesial que estamos vivendo. Desde o Concílio Vaticano II, o Espírito buscou os novos caminhos para dar consistência e continuidade a esse processo de reforma eclesial que segue em marcha e encontrou nessas décadas o tempo e as condições propícias.
Este Sínodo Amazônico é uma expressão, de tantas maneiras diferentes, sobre como vai se concretizando o Concílio Vaticano II para assegurar a relevância da missão da Igreja no mundo e no coração de seus gritos e esperanças. Já não apenas para este território da América do Sul que, por outro lado, representa um espaço específico e com suas próprias características, alguns dos mais urgentes gritos e das mais fortes esperanças para o nosso mundo hoje. Um mundo quebrado que precisa de cura, e no qual a Igreja quer ser um verdadeiro sinal da possibilidade de outro amanhã.
A busca deste Sínodo dos “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” dá conta dos mais urgentes desafios para este corpo eclesial que segue o projeto do Reino de Jesus, e a Amazônia é um rosto, um espelho e um paradigma que serve como referência e como catalisador de algo que excede em muito a territorialidade específica desse espaço ecossistêmico, sociocultural e geográfico.
Acredito honestamente que, por essas razões, a história da Igreja encontrou neste Sínodo um deflagrador para a conversão que se encontra no marco deste grande divisor de águas chamado Concílio Vaticano II, e pela mão da revolucionária encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado de nossa casa comum, que, entre muitas outras coisas, dão consistência ao pontificado de Francisco.
Em não poucos lugares, a encíclica Laudato Si’ é considerada um dos documentos mais importantes que foram escritos para toda a humanidade, nas últimas décadas. A emergência climática, que existe no marco de uma verdadeira crise ecológica, pede uma resposta radical (de raiz) para responder a esses sinais dos tempos, uma vez que o próprio projeto de Deus e de sua Encarnação está em risco ao se descobrir que estamos chegando ao ponto de não retorno. A defesa da casa comum é hoje um elemento inerente à nossa identidade como crentes e representa um chamado a toda pessoa de boa vontade para assumir esse imperativo ético universal.
Dito isto, o Sínodo é um processo que possibilita e acompanha a conversão integral da Igreja, e suas conversões particulares, no marco deste kairós. A fase preparatória desde o anúncio do Papa deste Sínodo (outubro de 2017), seu início na visita de Francisco ao território amazônico em Puerto Maldonado (janeiro de 2018) e o inédito processo de escuta territorial conduzido pela REPAM, em pelo menos 260 pontos em toda a Panamazônia (assembleias, fóruns e rodas de conversa), com a participação direta de ao menos 22.000 pessoas em toda a grande diversidade eclesial e da população dessa região, e ao menos outras 65.000 nos processos preparatórios, foram determinantes porque foram a base e essência com a qual se elaborou o Documento de Trabalho (Instrumentum Laboris), a partir das próprias vozes do território, em uma expressão de verdadeira sinodalidade.
Como parte central do mesmo processo, a Assembleia Especial que ocorreu em Roma sob a presidência do Papa Francisco, entre 6 e 27 de outubro de 2019, foi um espaço de discernimento, diálogo e elaboração de propostas para ajudar o próprio Papa a identificar os possíveis novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral na Amazônia e para além dela.
Com a exortação apostólica “Querida Amazônia” do Papa, recebemos as orientações magisteriais para promover essas novas passagens, e devem ser faróis para toda a Igreja em relação à sua identidade e missão, e com certeza serão também referências para muitos que se simpatizam com o chamado ao cuidado da casa comum, em nível universal, e em direção a uma verdadeira ecologia integral neste território.
Considero que algumas premissas inacianas, sobre temporalidade, territorialidade e os sujeitos do processo (tempos, lugares e pessoas) são imprescindíveis nesse caminho eclesial sinodal amazônico.
Para compreender esse Kairós e poder assumi-lo como tal, sem cair na tentação de reduzi-lo a uma série de eventos concatenados ou sob uma visão meramente linear, é necessário assumir a noção de tempo à luz da esperança no Deus da vida. Ou seja, uma que transcende nossas próprias limitações e capacidades. O Espírito se faz presente nos diferentes momentos da história, mas é impossível sujeitá-lo aos nossos parâmetros temporais. A revelação de Deus é um continuum em toda a história de fé.
Este Sínodo é, sem dúvida, um reflexo da revelação de Deus, mas é um processo frágil e evidentemente incompleto. Pretender interpretar toda a experiência desse kairós em sua redução à Assembleia de outubro seria um triste reducionismo da revelação e, portanto, seria uma maneira de sufocar a novidade que dele quer emergir.
Por isso, é muito importante ler a Exortação Pós-Sinodal e todos os documentos associados a esse evento eclesial, como algo que está em construção e sobre o qual devemos trabalhar paciente e incansavelmente para o levar adiante. Os parâmetros de temporalidade dos próprios povos e comunidades amazônicas, inclusive os ritmos da natureza, devem nos ajudar a não forçar as mudanças quando ainda não é tempo, ou com base em nossas visões particulares e até caprichos.
Devemos compreender a maturidade que se requer nos processos e também saber identificar aqueles que não podem esperar e que é preciso estimular com todas as forças. Para isso, necessitamos de um discernimento muito profundo, e um genuíno conhecimento da realidade territorial e eclesial. Nesse sentido, nossa esperança se associa aos mais de 55 anos desde o início do Concílio Vaticano II, e por isso o horizonte também deve estar localizado a uma distância que vai além de nossas limitações temporais, confiando que isso faz parte de um verdadeiro Kairós.
Nesse Sínodo, enfatizou-se a importância de reconhecer o território como um lugar teológico. Em nossa identidade de crentes, a Encarnação de Jesus acontece em um marco territorial específico como expressão do amor de Deus por sua criação e do desejo de sua redenção. A divindade se territorializa, assume a condição humana, insere-se em uma cultura específica, e em seus traços identitários e históricos, para depois transcendê-la e fazer caminho para chegar a todos e todas neste mundo.
Nesse sentido, a Amazônia é um verdadeiro lugar teológico, e nela os povos e comunidades que aí vivem, com suas identidades culturais e processos históricos, são também potencial e real fonte de revelação. Este Sínodo abriu uma nova categoria que já estava expressa no Concílio Vaticano II ao falar de uma região sociocultural específica como espaço privilegiado para compreender o modo como Deus se insere no meio de nossa realidade, sem destruir a riqueza existente, mas assumindo e iluminando a riqueza espiritual e cultural já existente.
Isso é essencial para acompanhar adequadamente a implementação da Exortação papal sobre o Sínodo da Amazônia, porque nos conscientiza de que não podemos reduzir Deus a uma visão ou a uma identidade cultural dominante. Se Deus se encarna na periferia, também faz isso nas culturas específicas, grandes ou pequenas, e nossa vocação deve ser buscar o modo como essa presença de Deus e as sementes do Verbo encarnado frutifiquem e floresçam, dando maior força à própria cultura e território.
Nenhum medo baseado no desejo de submeter a revelação a uma determinada e limitada cultura, talvez por um desejo de continuidade colonizadora, poderá ser uma expressão digna da maneira como Deus caminha com toda a humanidade em seu desejo de redenção. Sendo assim, um convite essencial é o de retirarmos as sandálias para pisar na terra sagrada da diversidade cultural e territorial, onde a revelação quis acontecer neste Sínodo da Amazônia.
Uma das grandes novidades deste Sínodo foi, como concretização do desejo do Papa Francisco que se expressa na Constituição Apostólica Episcopalis Communio, a ampliação na diversidade de participantes do Sínodo. Experimentamos uma presença inédita de toda a diversidade territorial no processo de escuta conduzido pela REPAM para a preparação dos documentos do Sínodo e, embora sempre ampliável, houve maior presença de mulheres na Assembleia, em relação a qualquer outro Sínodo.
Mais ainda, as vozes dos povos originários, mulheres e homens, ressoaram na aula Sinodal para comover e transformar a maneira pela qual se discutia sobre um território que já não era algo distante ou simplesmente compreendido a partir de uma leitura distante, mas que se tornava um discernimento e busca de caminhos concretos à luz das presenças vivas e dos relatos dos próprios povos e comunidades amazônicas que foram sujeitos de sua própria história neste Sínodo.
Vozes dos povos originários representando suas próprias organizações, a partir da vivência do sacerdócio indígena, da vida consagrada de membros dos povos amazônicos, e de mulheres e homens de diferentes comunidades tradicionais marcaram uma ruptura irreversível em relação a outros sínodos. Qualquer discussão sobre uma realidade particular, sempre deverá contar com vozes amplas e representativas dos próprios povos referidos como fruto desta experiência eclesial.
O desejo do Papa Francisco de se reunir apenas com os representantes dos povos originários durante a Assembleia confirma esta opção preferencial pela periferia como fonte de luz e de vida para iluminar o centro, para que eles ajudem a Igreja em sua verdadeira reforma sinodal. Nada que se discuta sobre o Sínodo fará sentido sem a presença e participação ativa dos próprios representantes deste território, sejam membros da Igreja ou de seus povos e comunidades, já que são eles os sujeitos de sua própria história.
Concluímos este breve texto com uma oração do servo de Deus, Pe. Pedro Arrupe S.J., como lema que convida a todos/as nós, membros da Igreja ou pessoas de boa vontade, a colocar nossas fragilidades e fortalezas na certeza da revelação de Deus que está presente neste processo Sinodal em marcha:
“Não tenho medo do novo mundo que surge. Assusta-me que possamos dar respostas de ontem aos problemas do amanhã. Não pretendemos defender nossos erros, mas também não queremos cometer o maior de todos: o de esperar com os braços cruzados e não fazer nada por medo de errarmos...”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Chaves para discernir ‘Querida Amazônia’ e acompanhar esse kairós eclesial. Artigo de Mauricio López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU