Por: MpvM | 28 Fevereiro 2020
O fio condutor das leituras deste primeiro domingo da quaresma é um tema intrigante: a tentação, que tantas vezes embaralha nossas escolhas. E na sociedade em que hoje vivemos, com seus sofisticados mecanismos para domesticar consciências, como fazer autênticas escolhas de vida? Mais do que nunca, se nos impõe desde dentro o espírito do deserto, que nos leva ao reencontro com nós mesmas, nossa verdade e autenticidade, à luz da Palavra, principalmente da vida de Jesus.
A reflexão é de Glória Josefina Viero, religiosa da Congregação das Servas de Maria Reparadoras, smr. Ela possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Gn 2,7-9; 3,1-7
Salmo - Sl 50,3-4.5-6a.12-13.14.17 (R.Cf.3a)
2ª Leitura - Rm 5,12-19
Evangelho - Mt 4,1-11
Jesus, no deserto, faz a escolha decisiva de toda a sua vida. É o que nos mostra o episódio das tentações (Mt 4,1-11), colocado por todos os sinóticos e de modo diverso imediatamente após seu batismo no Rio Jordão. O relato do batismo não só apresenta Jesus, como o Messias enviado, mas também indica qual será seu messianismo: o do Servo de Javé, o messianismo do amor-serviço. No entanto, se apresentam diante de Jesus outros modelos de messias, aparentemente mais promissores. De fato, o evangelista Mateus nos faz compreender que as tentações de Jesus estão relacionadas a outras formas da esperança messiânica: a do messias glorioso, como um novo Moisés, Jesus nutriria o povo no deserto: “manda que estas pedras se transformem em pão!”. O messias desconhecido que repentinamente poderia se impor a todos por meio de um gesto espetacular no templo: “atire-se daqui!” O Messias rei, nacionalista, que viria para dominar o mundo: Todas essas coisas eu te darei!”. Portanto, trata-se de uma única tentação: deixar de acreditar no caminho do amor-serviço.
Essa tentação não é episódio isolado na vida de Jesus. Segundo Mateus, do batismo à sua morte na cruz, o tentador aparece. À medida que o anúncio da Boa nova do Reino se dilata, cresce a pressão sobre Jesus para adaptar-se às expectativas messiânicas da época e ser o messias que desejavam que ele fosse, principalmente o “messias glorioso, nacionalista, messias rei”. Também no momento derradeiro da cruz, Jesus defronta-se com a mesma tentação de não acreditar na força salvadora do amor: “Se és filho de Deus, salva-te.... ; desce da cruz!” Confiou em Deus; que o livre agora, se é que Deus o ama!”
Porém, nada conseguiu abalar Jesus de sua confiança absoluta em Deus, nem desviá-lo da escolha decisiva de toda a sua vida. Do início ao fim de sua missão salvadora, manteve-se irrepreensível no caminho do “Servo de Javé”, anunciado pelo Profeta Isaias e voltado sobretudo para os pobres, os anawim.
Na tradição bíblica, sempre que Israel cai na tentação de não acreditar no amor de Deus, se afasta do caminho que nutre a justiça e a paz. O texto da primeira leitura (Gn 2,7-9; 3,1-7) nos leva nessa direção “acreditar no amor”, o homem e a mulher seres criados por amor, no amor e para o amor. Nessa narração altamente simbólica é possível ver-nos envolvidos em Deus, que se alarga/se expande ao criar. Cria cada ser humano, se faz parceiro e, soprando, partilha seu ser. Mas outra simbologia também relembra nossa criaturalidade: estão nus! E por isso que nesse início do tempo quaresmal, a liturgia nos indica qual o nosso vértice: é o criador; estarmos sempre diante da presença de quem nos fez para agirmos na justiça e na paz.
Na segunda leitura (Rm 5,12-19), São Paulo faz uma contraposição entre Adão e Cristo. Adão, figura simbólica, representativa do ser humano que desconfia do amor de Deus, espalhando no mundo desamor, destruição, pecado e morte. Cristo, aquele que centrou toda a sua vida no Amor, e tornou-se no mundo fonte inesgotável de vida e salvação.
A tentação de Jesus é também nossa e não só tentação de Israel no deserto. É a tentação da Igreja, sempre que não acredita na força salvadora do amor-serviço, deturpa a imagem de Deus com práticas religiosas de poder, de espetáculo e de lucro. Seguir Jesus, de acordo com o Evangelho, implica amar a todos e todas, dar de comer a quem tem fome, vestir quem foi despojado de suas roupas, zelar pela causa e direito dos mais pobres e desfavorecidos; aproximar-se das pessoas que diariamente sofrem, para escutá-las, abraçando-as e servindo-as no que necessitam de nossa ajuda. Estaremos então cultivando no mundo a primavera da justiça e da paz e uma Igreja do discipulado de iguais, mais inclusiva e servidora.
Bom domingo a todas e todos!
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1º Domingo da Quaresma - Ano A - O caminho do amor-serviço - Instituto Humanitas Unisinos - IHU