14 Fevereiro 2020
O jornalista britânico Oliver Bullough, autor de Moneyland: Why thieves and crooks now rule the world and how to take it back (Profile Books, 2018) (Moneyland: Por que ladrões e trapaceiros agora governam o mundo e como recuperá-lo), acredita que oligarcas e bilionários corruptos venceram o jogo.
Em seu livro, Bullough descreve um mundo de super-ricos, apátridas, paraísos fiscais e estruturas offshore, venda de passaportes e oligarcas do Terceiro Mundo que lavam dinheiro roubado com a ajuda de advogados e contadores em Londres e Nova York.
A entrevista é de Ricardo Dudda, publicada por Letras Libres, 13-02-2020. A tradução é do Cepat.
Em 2019, completaram-se 75 anos do acordo de Bretton Woods. Nele, os líderes mundiais se comprometeram, após a Segunda Guerra Mundial, a não especular com as divisas, para garantir a paz e a estabilidade. Por que esse acordo foi tão importante?
O que aconteceu em Bretton Woods deve ser entendido no contexto da Segunda Guerra Mundial e da Grande Depressão. O enorme desejo de garantir que não houvesse mais guerras mundiais. A análise feita em Bretton Woods é que a liberdade absoluta de capitais para especular causou o crash de Wall Street e criou a miséria que fomentou o nacionalismo extremo. Penso que é uma análise muito acertada. A solução que propuseram era muito corajosa: mudar a maneira como funciona a economia global. É fácil se esquecer de como foi exitoso.
Nos anos 1950 e 1960, há crescimento econômico, mais igualdade e prosperidade nos países ocidentais. É claro que houve perdedores, países comunistas como a China que ficaram à margem dessa prosperidade. Contudo, para as democracias liberais ocidentais foram as melhores décadas de sua história.
Para os ricos, ao contrário, Bretton Woods era ameaçador. Havia um grupo de pessoas constantemente lutando contra esse sistema de controle. E Moneyland é o que eles inventaram para escapar dele. Uma aliança poderosa foi criada entre banqueiros em Londres e bancos na Suíça para criar estruturas offshore (paraísos fiscais). Considero que esse conceito é pouco estudado e analisado. Talvez seja uma das invenções mais importantes da segunda metade do século XX, em termos de seu impacto no mundo. E, no entanto, existem muito poucos livros sobre isso. Nem mesmo os livros de economia falam disso.
No livro, comenta que quanto mais determinados países toleravam ou promoviam os paraísos fiscais ou as estruturas offshore, mais difícil era para outros países deixar de fazer o mesmo: eram as novas regras do jogo.
Quanto mais você luta contra os paraísos fiscais, enquanto existem, mais paraísos fiscais existirão. O fato de o Reino Unido tolerar e promover paraísos fiscais como uma estratégia de desenvolvimento, não apenas para eles, mas também para as grandes economias, faz com que os outros países não tenham alternativa. O que outras economias fazem é se desregulamentar e tentar acompanhar o ritmo. Isso pode ser visto na concorrência entre Nova York e Londres, mas também, por exemplo, pode ser visto dentro dos Estados Unidos. Se um Estado trata o dinheiro de maneira diferente de outros estados, ou tenta atrair dinheiro de alguma forma, os outros estados fazem o mesmo.
Escrevi recentemente sobre o caso de Dakota do Sul, que inventou uma nova cláusula e um fundo (trust) que protege seus ativos bancários. Após colocar isso em prática, Delaware aprovou uma lei semelhante e sua justificativa foi: “Em Dakota do Sul estão agindo desse modo, então temos que fazer o mesmo”. Aí está o problema. Quando um país começa a tolerá-lo, em um mundo globalizado, todos têm que fazer o mesmo. Outro exemplo: isso acontece com os vistos de ouro. Portugal vende passaportes. A Espanha teria que ser louca para não fazer o mesmo.
O sistema de compra de passaporte é delirante. Mas temos que entender uma coisa: para nós, é fácil criticar. Ou seja, eu sou britânico, mas como meu pai é canadense, também tenho um passaporte canadense. Tenho dois dos melhores passaportes que é possível ter. Isso facilita muito a minha vida. Mas se você é iraquiano, sua vida é uma merda. O sistema global é injusto. A ideia de comprar cidadania é uma solução ruim. Você pega um sistema injusto e o torna ainda mais injusto. Se você é um refugiado sírio, está preso em um campo de refugiados libanês. Mas, se você é um sírio rico que se enriqueceu na guerra, pode comprar um passaporte maltês e se mudar para a Europa. É grotesco.
Quais países vendem passaportes?
Em certa medida, a Áustria sempre fez isso. As ilhas de São Cristóvão, Nevis e Dominica, no Caribe, começaram nos anos 1980 de uma maneira muito caótica. Mas, depois, surgiu o personagem Christian Kalin. Chegou a São Cristóvão e se ofereceu para organizar o sistema de vendas de passaportes. Então, tornou-se um fenômeno. Agora, existem cinco países caribenhos que vendem passaportes. Há dois países da União Europeia que vendem. Moldávia também, Montenegro está a ponto.
Quem gostaria de ter um passaporte da Moldávia?
É realmente muito útil. Você pode viajar para a Europa sem visto. Também é muito barato, custa mais ou menos 100.000 dólares. Se você é muito rico e mora, digamos, no Sudão do Sul, compra um passaporte moldavo e não precisa mais se preocupar com os vistos. Claramente, um passaporte maltês é melhor, porque você está dentro da União Europeia, mas também há mais controles para obtê-lo. Muitos dos países que vendem passaportes não têm muito controle sobre quem os compra.
Existem muitos passaportes que são muito úteis. Por exemplo, se você compra um passaporte de Granada, no Caribe, tem acesso a um visto muito bom para os Estados Unidos, o visto E-2, que é inclusive melhor que o green card (o cartão de residente permanente). É muito útil se você quiser viajar para os Estados Unidos. Faz todo o sentido que um cidadão rico de um país pobre queira comprar o passaporte de outro país.
Você afirma que as economias ocidentais acabam se parecendo com os paraísos fiscais.
Para impedir que todo o dinheiro vá para os paraísos fiscais, você reduz muito seus impostos para prevenir essa vantagem competitiva. Penso que o conceito offshore ou paraíso fiscal não é muito útil hoje. Segundo os padrões dos anos 1960, hoje tudo é um paraíso fiscal. Moneyland venceu.
Critica a maneira como se contabiliza a corrupção global. Quase sempre se leva em conta de onde o dinheiro é roubado, mas não onde é lavado, que costuma ser em capitais ocidentais.
A maneira tradicional de medir a corrupção se baseia na definição da Transparência Internacional: a corrupção é o abuso de uma função pública para obter um benefício privado. E isso é corrupção, claro, mas é como estudar o tráfico de drogas apenas olhando para quem vende drogas na rua. Você perde tudo.
A corrupção conforme definida pela Transparência Internacional sempre existiu. Desde que existem os governos. Mas, por que a corrupção é um problema muito maior hoje do que há cem anos? Porque é muito fácil ficar com o dinheiro. Você o guarda em um paraíso fiscal e está seguro. Temos que entender a corrupção no contexto das cleptocracias, em um sistema financeiro globalizado.
A definição da Transparência Internacional é muito problemática porque se concentra na parte da corrupção que ocorre nos países pobres, e não na parte que ocorre nos países ricos. Culpam as vítimas. É como dizer que a maioria das pessoas que consome drogas vive nos bairros pobres. Portanto, são os bairros pobres os responsáveis pelo tráfico de drogas. De acordo com essa definição, Londres não é avaliada como corrupta. Contudo, sem os advogados de Londres ou Nova York, o dinheiro sujo não poderia ser lavado.
No ranking da Transparência Internacional sobre corrupção, a Dinamarca aparece como o país mais limpo do mundo. E, no entanto, o Danske Bank é responsável pelo maior caso de lavagem de dinheiro da história global. É estúpido.
Escreve que os países são bons em determinar quanto dinheiro se investe em suas economias, mas não em medir quanto dinheiro sai.
Se você coloca o seu dinheiro na Suíça, esse dinheiro vai para Luxemburgo e um fundo em Luxemburgo o investe em outro lugar, na Nigéria ou seja onde for. A brecha importante é a que existe entre a Suíça e Luxemburgo. Por isso, há um vazio nas estatísticas globais. Seu dinheiro vai para um paraíso fiscal, mas as empresas do paraíso fiscal não monitoram para onde vai esse dinheiro depois.
As estatísticas russas de investimento, por exemplo, são muito boas, mas não são úteis porque não são reais. Se acreditarmos nelas, o maior investidor na Rússia é Chipre. E o lugar onde a Rússia mais investe são nos Países Baixos. São paraísos fiscais. Ou, por exemplo, as Ilhas Virgens Britânicas são um grande investidor na Rússia. Assumamos que é tudo dinheiro russo, que saiu do país e retorna. Ficou escondido e volta se fazendo passar por dinheiro estrangeiro.
Ilhas Virgens Britânicas
(Foto: Terry Ott/Flickr)
Ilhas Virgens Britânicas
(Reprodução: Google Maps)
O grande problema é que não se segue a pista do indivíduo que tem esse dinheiro. O que se faz é considerar que, como esse dinheiro saiu da Rússia, deixou de ser russo e se tornou dinheiro das Ilhas Virgens Britânicas. É ridículo. Fui às Ilhas Virgens Britânicas. É um ótimo lugar, mas não há dinheiro. Existem muitas praias, mas não há dinheiro. A ideia de que é um lugar que investe significativamente na Rússia é uma ficção estúpida. Contudo, estamos presos nessa ficção em todo o mundo. Se você olha para o mercado imobiliário de Londres, verá que as Ilhas Virgens Britânicas são investidores significativos.
Mencionou a Rússia. Uma das histórias mais impactantes de seu livro é a da empresa FIMACO de Jersey.
O FMI estava dando dinheiro para apoiar a moeda da Rússia. Esse dinheiro, a Rússia enviou para uma empresa em Jersey que se dedicou a comprar títulos do governo, ficando com o lucro. Para ser honesto, é algo tão extraordinário que, embora eu saiba que aconteceu, quase não acredito que tenha ocorrido. O Banco Central da Rússia comprando títulos do Estado russo e sonegando impostos. É uma loucura.
Além disso, é uma história muito importante para Putin. Sua primeira aparição importante na televisão tem a ver com este caso. A carreira política de Putin começa acabando com uma investigação sobre lavagem de dinheiro. Por que os oligarcas pensavam que Putin era um bom candidato a presidente? Aí está a resposta. Podiam confiar que ele não investigaria a corrupção offshore.
Durante anos, organizou um ‘tour’ sobre a lavagem de dinheiro em Londres. Ainda faz isso?
Não fazemos isso há algum tempo. O Reino Unido está muito deprimente ultimamente. O Brexit absorveu todo o oxigênio. Quando começamos, havia esperança. Conseguimos colocar o tema na agenda. Mas desde o referendo, ninguém está interessado nisso.
Há todo um negócio em Londres, ou no Estado de Delaware (Estados Unidos), e em muitos outros lugares, de empresas dedicadas à criação de empresas.
As empresas precisam vir de algum lugar, precisam estar em algum lugar, e é a isso que essas empresas se dedicam. A ideia de uma empresa é muito boa, se você tem uma boa ideia de negócio, mas fracassa, não é você que quebra como indivíduo, mas como empresa. É uma boa ideia. Obviamente, não sou contra a existência de empresas. O problema é quando são utilizadas para ocultar uma identidade.
É o problema que existe em Delaware ou nas Ilhas Virgens Britânicas. São jurisdições cujo principal modelo de negócios é vender empresas. E se o seu negócio é vender empresas, quanto mais você vende, melhor. Você não procura verificar se estão usando essas empresas para o bem. Porque isso custa dinheiro. No livro, uso o exemplo da Harley Street, em Londres, um endereço no qual dezenas de empresas estão localizadas, mas que não é pior do que qualquer outro lugar.
Critica os rankings que avaliam os países com base na facilidade para abrir negócios.
É verdade que quando é muito difícil abrir uma empresa, é muito difícil fazer negócios. Desse ponto de vista, quanto mais fácil for, melhor. Mas chega um momento em que é fácil demais. Os rankings sobre a facilidade de abrir uma empresa (o mais famoso é o de Doing Business) não levam em conta que talvez, às vezes, seja fácil demais em algumas jurisdições. Por exemplo, se você fizesse um ranking sobre a facilidade de abrir uma conta em um banco e estabelecesse que quanto mais fácil, sempre será melhor, deveria levar em conta que isso pode favorecer, por exemplo, os traficantes de drogas. Ninguém considera isso nos rankings sobre a facilidade de abrir empresas. Mas as empresas também são uma maneira de cometer fraudes.
O ranking Doing Business tem muitos problemas. Os países que desejam atrair investimentos estrangeiros moldam deliberadamente suas políticas para aparecer bem nesse ranking. A Rússia faz isso divulgando: “subimos vinte posições no ranking”. Chegará um momento em que isso terá que parar.
Tente abrir uma empresa no Reino Unido. Custará a você umas doze libras. E você pode colocar o que quiser. Recentemente, observei os nomes dos titulares de empresas britânicas. Há muitas pessoas cujo nome é simplesmente XXX. Havia até um que se chamava XXXStalin. Existem alguns cujo nome é simplesmente MMMMMMMM. E o endereço também é MMMMMMMM. Qualquer sistema de automação relativamente bom deveria reconhecer que esse nome não corresponde a uma pessoa real.
O livro sugere que realmente há mais incentivos para descumprir a lei do que para cumpri-la.
Sim. Quanto mais alto é um muro, mais dinheiro você ganha ajudando alguém a pular o mesmo. Acredito que há duas soluções para isso. Construir o muro mais alto, melhorar nossas regulamentações. A outra é perseguir aqueles que ajudam os outros a descumprir a lei: advogados, contadores, agentes de constituição de sociedades (company formation agentes). Quando escrevi pela primeira vez sobre a Harley Street, 20 pensei que a polícia entraria nessa empresa e a fecharia. Era extraordinário demais o que faziam e há muito tempo. Mas, continua lá. Nada mudou. Só mudou que agora também possuem outro endereço, também em Londres.
É necessário que mais pessoas sejam presas e uma melhor cooperação entre países. Se você observa como o dinheiro se movimenta na Europa, movimenta-se como se fosse apenas um país. Mas a polícia não. Se temos um mesmo sistema econômico, precisamos ter uma mesma polícia.
Dá a sensação de que existem apenas dois caminhos: voltar aos controles de capital e aos Estados-nação ou aceitar uma globalização desregulamentada, onde abundam os paraísos fiscais.
Mas não é assim. Não devemos aceitar isso. Temos a sorte de viver em democracias com instituições relativamente honestas. Temos partidos que ainda respondem aos desejos dos cidadãos. É possível mudar as coisas. Como cidadãos, ainda temos o poder de dizer não. É óbvio que enfrentamos pessoas muito poderosas. Mas houve progresso. Houve progresso nos últimos cinco anos, em termos de transparência. Não foram os políticos que fizeram isso, mas os cidadãos que exigiram e os políticos cumpriram. A mudança é possível, o que acontece é que é muito difícil.
Contudo, não há um ‘demos’ global que possa forçar essas mudanças.
Se você observa como Moneyland funciona, isso afeta a todos. E existe em todo o mundo. Contudo, as pessoas que roubam dinheiro, fazem isso porque querem gastá-lo. E é algo universalmente estabelecido que as pessoas que roubam esse dinheiro, gastam nas mesmas coisas. Compram Maseratis, vinhos de Bordeaux, mansões em Malibu ou apartamentos em Londres. Sempre é a mesma coisa. Não são muito imaginativos.
Querem gastar o dinheiro em nossos países. Isso nos dá muito poder. Se existe dinheiro da Venezuela que chega a Madri, a Espanha pode verificar a origem desse dinheiro, pode fazer uma seleção e até mesmo dizer que não quer esse dinheiro porque é roubado e provém de um criminoso. É claro que, então, podem levar esse dinheiro para Miami. Mas nosso poder não é qualquer coisa.
O poder que a Europa e a União Europeia têm é muito maior do que pensamos. Somos como um gigante adormecido. Temos muito poder brando com essas pessoas. Podemos dizer: “não queremos o seu dinheiro, se é dinheiro roubado, vá gastá-lo em outro lugar, na Mongólia”. Quando em Madri se vende uma casa para um cleptocrata, você não está vendendo uma casa. Está vendendo segurança e proteção. Está vendendo paz e civilização para indivíduos que não merecem nenhuma dessas coisas.
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“Segundo os padrões dos anos 1960, hoje tudo é um paraíso fiscal”. Entrevista com Oliver Bullough - Instituto Humanitas Unisinos - IHU