05 Fevereiro 2020
Enzo Traverso (1957) é um dos historiadores das ideias do século XX mais renomados internacionalmente. Especializado em temas tão candentes como a memória, o totalitarismo e o Holocausto, Traverso intervém nos debates políticos atuais a partir de uma perspectiva marxista heterodoxa e autocrítica que bebe, principalmente, da obra de Walter Benjamin.
Na semana passada, palestrou, dentro do Mestrado em Pensamento Filosófico Contemporâneo, da Universidade de Valência, em um seminário de pesquisa dedicado à categoria revolução. Na oportunidade, conversamos com ele a respeito de seu livro Melancolia de esquerda. Marxismo, História e Memória, um dos ensaios mais celebrados de 2019.
A entrevista é de Francisco Martorell Campos, publicada por El Diario, 01-02-2020. A tradução é do Cepat.
Em “Melancolia de esquerda”, você afirma que a diferença entre o século XXI e os dois séculos anteriores é que se edifica sobre o eclipse geral das utopias, um fenômeno cuja evidencia definitiva se encontra em novembro de 1989. Quais são os sintomas palpáveis do citado eclipse?
A queda do Muro de Berlim é a data simbólica de uma mudança de grande dimensão que, é claro, não ocorreu de um dia para outro, mas adveio de processos anteriores. A principal consequência foi o fim da ideia de revolução. Em 1979, assistimos, por um lado, a última revolução do século XX, a da Nicarágua. Por outro lado, veio à luz um genocídio terrível, o praticado durante a revolução no Camboja. Na queda do Muro de Berlim se cristalizaram derrotas e humilhações desenvolvidas antes.
Quanto aos sintomas, a resposta é simples. Durante todo o século XX, a utopia de outro mundo e outro sistema social diferente do capitalismo sempre esteve presente no imaginário coletivo. A partir da segunda metade do século XX, a União Soviética deixou de angariar entusiasmos, revelando-se como um regime ditatorial, inimigo da liberdade. Mas a Guerra Fria, entendida como um confronto entre dois blocos, indicava que havia uma alternativa possível ao capital, e provavelmente até mesmo alternativas diferentes daquela representada pela União Soviética e pelo socialismo real.
Após 1989, essa alternativa social desaparece como uma possibilidade no horizonte mental dos contemporâneos. O horizonte utópico entrou em colapso e houve uma espécie de naturalização do capitalismo, no início, de uma maneira idealista, vaticinando que a globalização do mercado e do liberalismo deixaria enormes quantidades de riqueza e bem-estar em todo o planeta. Agora, ninguém mais acredita nisso, mas ainda somos prisioneiros daquele mundo bloqueado, sem alternativas possíveis, nem dialética histórica.
O eclipse da utopia conduz, igualmente, ao declínio da própria política. Ninguém pensa no futuro, e tudo se resume a questões menores, locais e imediatas, ou a interesses puramente pessoais ou partidários. Comparados aos políticos atuais, os da maior parte do século XX parecem estadistas prodigiosos. Este é o nível da política atual.
Como a queda do horizonte utópico se traduz na prática esquerdista?
O altermundialismo, os forúns mundiais, Occupy Wall Street, o 15-M e as revoluções árabes são movimentos poderosos que identificam muito bem o inimigo. Contudo, carecem de projetos alternativos e da ilusão futurista que tornava o comunismo tão forte, que permitia a seus integrantes se perceber como partes de um coletivo que transcende sua própria existência e seu próprio tempo, que representa e antecipa o futuro emancipado.
É assustador. São movimentos tão fortes que podem acabar com uma ditadura. O ruim é que depois não sabem o que fazer. Não possuem nenhum projeto da sociedade, nem o desejo de mudar as instituições, pois dizem operar fora delas. Vemos isso, hoje, na Argélia. Viveu-se um ano de mobilizações permanentes contra um regime totalmente desacreditado. Contudo, o movimento de protesto não articula alternativas que incluam fatores como líderes ou programas do governo.
Não considera que a mesma coisa acontece no campo da teoria esquerdista?
E muito. O maior paradoxo do presente é que hoje o pensamento crítico é muito mais sofisticado, muito mais rico, muito mais discutido do que um século atrás. Contudo, mostra-se incapaz de se conectar a um movimento real e elaborar projetos de mudança. Há um século, esse pensamento era muito mais primitivo, mas tinha conexões orgânicas com os movimentos sociais que o tornavam mais poderoso e influente.
Tendo em conta a ausência de contribuições propositivas em vários setores da esquerda, como você avalia as medidas oferecidas por economistas como Paul Mason, Thomas Piketty e Joseph Stiglitz? Refiro-me à Renda Básica Universal, à redução da jornada de trabalho ou à aplicação de altos impostos às multinacionais.
São propostas interessantes, e intelectuais muito valiosos com os quais se pode trabalhar para iniciar diálogos com os movimentos sociais, mas seu pensamento não é radical, como exigem as condições de dominação do mundo contemporâneo e como esses próprios movimentos reivindicam. Não sou economista, mas Piketty trabalha sobre as desigualdades sociais e suas receitas se concentram em políticas redistributivas e na questão do crédito. Não enfrenta as questões do modo de produção e a propriedade privada. Penso que personifica autolimitações e autocensuras que nos convidam a ser realistas e a fazer proposições concretas, úteis e eficazes, sem pensar em uma mudança de civilização. Esse é o problema. Eu preferiria unir as duas coisas.
Não seria legítimo ler os autores apontados como intelectuais utópicos que, diante da incapacidade estrutural em pensar alternativas ao capitalismo, preferem apresentar propostas de melhoria, em vez de ficarem de braços cruzados e se lamentar de como o mundo funciona mal?
Sim, mas sempre é necessário contextualizar os delineamentos da mudança política, porque se raciocinarmos em termos puramente abstratos, poderíamos dizer que o programa do Syriza era muito moderado antes do referendo. Ou que o programa social-democrata mais suave dos anos 1970 era muito mais radical do que o que Bernie Sanders defende nos Estados Unidos. Mas, os contextos históricos são diferentes.
A esquerda radical criticava os social-democratas nos anos 1970. Hoje, é liderado por Sanders. O fato é que as relações de forças evoluíram e mudaram, e que essas propostas e formações, neste momento, podem ser o vetor de mudanças positivas. Se os movimentos sociais geram, a partir delas, novas utopias que não sejam projetos acabados e elaborados, mas, sim, ideias de futuro que possam ser identificadas e imaginadas, darão um passo à frente.
De qualquer forma, não acredito em mudanças graduais e lineares. Penso que as mudanças serão feitas de uma maneira que, no melhor dos casos, não será traumática, mas, sim, feita de cortes, de descontinuidades. As utopias surgirão. Não tenho dúvidas disso. Até que surjam, um dos desafios consiste em conectar as distopias que dominam a cultura hoje (ou seja, o medo do futuro, a imagem do futuro como destruição, catástrofe, perigo, ameaça) com proposições alternativas de civilização e projetos para o futuro. Essas duas coisas não dependem simplesmente da teoria, não surgem da cabeça de alguém. Deverão emanar da sociedade.
Ultimamente, as distopias costumam narrar revoluções populares. Refiro-me a filmes de grande sucesso de bilheteria e a best-sellers destinados a adolescentes. O que acontece é que quando a revolução triunfa, a história termina, deixando-nos sem saber o que vem a seguir, evitando a tarefa de oferecer uma imagem sobre ela.
O que você diz não apenas exemplifica o bloqueio da imaginação utópica sobre a qual estamos falando. Também exemplifica a capacidade do capitalismo neoliberal de reificar o pensamento crítico e as críticas lançadas contra o próprio capitalismo. A série espanhola La casa de papel é uma série, digamos entre aspas, anticapitalista, não é? E é um dos produtos de maior sucesso da indústria cultural. Ou seja, é o próprio sistema que oferece a possibilidade de gozar com a crítica ao capitalismo. Devemos estar conscientes disso. É preciso inventar algo que rompa a gaiola de ferro que aprisiona nossa mente, para falar em termos weberianos.
Gostaria que você explicasse qual é a relação entre a melancolia e entidades como a esquerda e a utopia, historicamente orientadas para o futuro.
Não fui eu que inventei ou descobri agora que existe uma melancolia de esquerda. É algo que sempre existiu e que pertence à estrutura de sentimentos da esquerda. O compromisso de agir coletivamente e transformar o mundo não se baseia apenas em projetos racionais. Requer, além disso, a mobilização das esperanças e sentimentos de fraternidade que derivam da ação coletiva. A melancolia pertence a essa estrutura de sentimentos, assim como o entusiasmo da ação revolucionária, por exemplo. Porque a história da esquerda também é uma história de derrotas. Essas derrotas geram um trabalho de luto, ligado aos companheiros que caíram, às esperanças que foram derrubadas.
Para mim, a melancolia não é uma receita para curar as doenças da esquerda. Não será através da melancolia que vão irromper as novas utopias do século XXI. Eu digo que esse trabalho de luto e esse fundo melancólico existem, que é necessário reconhecê-los e torná-los frutíferos, não reprimi-los ou censurá-los.
A melancolia da qual falo não é incompatível com a busca de novas utopias. Pode acompanhá-la, pois as novas utopias não surgirão da tábula rasa. Terão que elaborar o passado, esclarecer por que os modelos herdados da esquerda não funcionam mais e por que as revoluções do século XX fracassaram. São atividades imprescindíveis. Não podem ser evitadas. A melancolia de esquerda é, ao menos para minha geração, o marco onde realizar a elaboração crítica do passado. Mas, insisto, é muito diferente da melancolia resignada daqueles que dizem “não há nada a fazer” e se limitam a viver na nostalgia.
Além de recordar as derrotas heroicas sofridas ao longo de sua história, não considera que a esquerda também precisaria de um relato complementar sobre as suas vitórias, no caso das conquistas e dos direitos sociais conquistados?
Não desejo em nada diminuir a importância dessas conquistas parciais, nem subestimar as reformas que abriram espaços de democracia, justiça e liberdade. Todas as conquistas que você diz surgiram de lutas muito poderosas e muito duras, atravessadas por dificuldades e sofrimentos. No entanto, sou bastante cético em relação à visão do reformismo teorizado, que diz a você que se essas conquistas foram alcançadas, foi porque eram lutas realistas que abordavam problemas concretos.
Na realidade, olhando historicamente para a dialética das conquistas parciais, vemos que foram em grande parte o subproduto de revoluções e de lutas que tinham grandes ambições utópicas. É verdade que a social-democracia alcançou muitas conquistas assim, e que de certo modo pode se gabar disso. Mas, ao mesmo tempo, a social-democracia foi a ferramenta que o capitalismo escolheu para se humanizar quando enfrentou o maior desafio, o das revoluções. Uma vez que o desafio caiu, o capitalismo pôde abrir mão do rosto humano e se mostrar tão selvagem como no século XIX. A social-democracia também caiu e seus restos se tornaram pilares do neoliberalismo. É preciso levar em conta essa ambivalência.
Antes de terminar, proponho-lhe voltar a novembro de 1989. Foi quando, então, se consumou o descrédito da utopia política em geral, mas sobretudo de tudo uma utopia concreta, a do comunismo. Qual acredita ser o futuro do comunismo?
O comunismo foi o horizonte de espera do século XX, a utopia que mobilizou milhares de pessoas. Nesse momento, é fato consumado que ninguém se atreve a reivindicar a causa dos desenganos e traumas que causou. De fato, os novos movimentos sociais que citei se negam a se inscrever na tradição histórica do comunismo. É uma referência esgotada da qual todos fogem. Mesmo aqueles que procedem dela, a ocultam.
A questão sobre o seu futuro está aberta. No melhor dos casos, tem razão Terry Eagleton e as civilizações comunistas do século XX serão vistas nos tempos futuros como uma antigualha comparável às comunidades indígenas criadas pelos jesuítas no Paraguai, durante o século XVII. Ou talvez o comunismo siga o caminho oposto.
Lucio Magri recorda o famoso poema de Bertolt Brecht, no qual um alfaiate idealista, desejoso de voar, inventa em 1592 uma máquina rudimentar com duas asas. O bispo o adverte que os homens não podem voar, que ninguém se sairá bem, caso pretenda mudar a ordem natural criada por Deus e o convida a comprovar o fato. O alfaiate aceita o desafio e se lança com seu artefato da janela mais alta da catedral. Obviamente morre, tragédia que fortalece a convicção do bispo e de seus seguidores.
Contudo, todos sabemos que nos séculos posteriores o ser humano, sim, conseguiu voar. O que Brecht quis transmitir é que o alfaiate não era um ingênuo arrebatado por sonhos impossíveis e errados. Simplesmente, contava com uma imaginação precoce. Pois bem, o que Magri sugere a partir desse poema é que talvez o comunismo também chegou muito cedo, que talvez será no futuro, quando houver as condições técnicas e materiais, que sua utopia se cumpra.
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“As utopias surgirão. Não tenho dúvidas disso”. Entrevista com Enzo Traverso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU