09 Janeiro 2020
A figura de Jesus Cristo vai além da imagem cuja hegemonia Europeia Cristã impôs sobre o mundo.
O artigo é de Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada na Columbia University, publicado por Al Jazeera, 06-01-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Cristãos ao redor do mundo estão celebrando o nascimento de Jesus de Nazaré. Alguns comemoraram em 25 de dezembro, e outros em 7 de janeiro, dependendo da igreja ou calendário litúrgico que seguem.
Dada a esmagadora hegemonia do Cristianismo Ocidental na Europa, Américas e Austrália e ao longo do mundo colonizado onde o Cristianismo Europeu foi o veículo de colonização, o fato de celebrar o aniversário de Jesus no início de janeiro foi deixado de lado.
Mas por quê? A diferença não é apenas litúrgica, canônica ou doutrinal. É também cultural, histórica e o prelúdio do Cristo e Cristianismo descolonizado.
A hegemonia eurocêntrica sobre as práticas cristãs e percepções da sua figura central, Jesus Cristo, tem sistematicamente marginalizado vários outros ritos e formulações de conceito desta. Mudar o ponto de ênfase de um ramo do cristianismo para outro – ou qualquer outra religião – aponta para a multiplicidade de maneiras pelas quais uma figura religiosa como Jesus é celebrada.
Como milhões de cristãos orientais celebram o nascimento de Jesus Cristo, este é um tempo oportuno para revisitar como ele pode ser imaginado através do tempo e pelo mundo.
Para aqueles familiarizados com o magnífico livro “Jesus Through the Centuries: His Place in the History of Culture” (Jesus Através dos Séculos: Seu lugar na História da Cultura, em tradução livre), de Jaroslav Pelikan, não são incomuns as diferenças culturais das diferentes figuras de Cristo.
Em seu estudo, encontramos uma figura flutuante de Jesus que se move de um rabino judeu no primeiro século após seu nascimento, para a “Luz dos gentios” e “o Rei dos Reis” durante o Império Romano no segundo e terceiro séculos, “o Cristo Cósmico” após o encontro com o platonismo, “o Filho do Homem” na obra de Santo Agostinho no século V e “o Príncipe da Paz” durante a Reforma na Europa Ocidental do século XVI.
Nos tempos mais recentes, a figura de Jesus Cristo tem sido usada para aproximar o cristianismo das massas despossuídas e para atender às suas necessidades políticas urgentes. Nas turbulentas décadas de 1950 e 1960, por exemplo, surgiu a chamada teologia da libertação na América Latina, que enfatizou novamente a imagem de Jesus como uma figura revolucionária, lutando pela justiça social e pelos direitos dos pobres e marginalizados.
No contexto das ditaduras de direita, do capitalismo desequilibrado e da crescente repressão e exploração, os teólogos da libertação combinaram elementos do marxismo com preceitos básicos do cristianismo, rebelando-se assim contra a Igreja Católica política e socialmente conservadora.
Apesar da hegemonia política do Cristianismo ocidental, várias culturas do mundo tem abraçado Jesus Cristo e imagino ele de diferentes maneiras.
No Islã, as figuras de Cristo e sua mãe Maria aparecem carinhosamente no Alcorão, onde um capítulo inteiro é dedicado a ela. Mas a presença deles na cultura islâmica vai além da menção no Alcorão.
As figuras são proeminentes na literatura islâmica (arábica, persa, turca, urdu, etc.), como a historiadora palestina Tarif al-Khalidi demonstrou no seu trabalho “The Muslim Jesus: Sayings and Stories in Islamic Literature” (O Jesus muçulmano: provérbios e histórias na literatura islâmica, em tradução livre, 2001). Khalidi trouxe para o mundo anglófono uma riqueza de informações sobre a centralidade da figura de Cristo na literatura e imaginação poética muçulmana, assim como nos debates e disputas doutrinais do Islã.
A ênfase de Khalidi estava na distinção entre o Jesus corânico e o Jesus que emergiu em particular na tradição mística do Islã como um profeta patrono dos ascéticos. Essa distinção demarca o espaço entre a revelações corânica e a longa história de várias pessoas que historicamente cultivam amor e afeição por um profeta que eles consideram ser donos.
Como mostra o texto de Khalidi, o Cristo Muçulmano é a figura central na multiplicidade de contextos hermenêuticos diferentes do contexto cristão. Aqui, Jesus torna-se uma figura de encontro místico com a divindade bem diferente da premissa teológica da Trindade.
Em uma bela Cássida do poeta e filósofo persa Naser Khosrou (1004-1088) lemos:
“Quando você tem uma espada em sua mão não deve matar pessoas
Deus nunca esquece o ato maligno
Jesus uma vez viu uma pessoa assassinada em seu caminho
Ele pensou e falou?
‘Aquele que te matou você matará de volta?’
E quem deve matar o homem que matou o ladrão?
Não assedie pessoas batendo na porta com o dedo,
Então ninguém te incomodará batendo à tua porta com o punho!
Tais referências a Jesus Cristo se abundam em fontes muçulmanas e em múltiplas línguas. Para poetas e filósofos como Naser Khosrou, místicos como Rûmî e Ibn Arabi, Cristo não foi uma figura alienígena. Ele era um deles.
O surgimento da figura de Cristo na proximidade histórica imediata de milhões de cristãos árabes e iranianos de várias denominações colocam o inevitável problema da interface entre a figura de Cristo nos Evangelhos e em fontes islâmicas, como alguns chamam de “Quinto Evangelho” – pois se coletarmos todas as referências a Cristo em contextos islâmicos poéticos, literários, místicos e filosóficos, teremos um Jesus solidamente islâmico.
A fascinação com a vida de Jesus Cristo não está confinada à Europa e sua vizinhança imediata, o “Oriente Médio”. Em seu livro “Jesus in Asia” o teólogo R. S. Sugirtharajah mostra como a figura de Jesus foi libertada dos confinamentos eurocêntricos e assumiu dimensão global em vários trabalhos.
No século VII, na China, com a permissão do imperador Taizong, missionários da Igreja do Oriente e convertidos locais produziram vários textos sobre Jesus, situando-o no contexto chinês. Em torno de mil anos depois, no Império Mogol governado por Akbar, um monge jesuíta escreveu um volume distinto sobre a vida de Jesus, tentando abordar várias questões na Índia do século XVII e as preocupações teológicas da população local.
Além desses textos patrocinados pelos Estados, os quais permitiram cristãos estrangeiros a engajar abertamente em debate com religiões locais, vários outros trabalhos foram produzidos na Ásia nos quais Jesus ocupou um lugar central, muitas vezes desafiando o poder oficial e as imposições coloniais dos missionários ocidentais.
Considerando o uso da imagem de Jesus durante a Rebelião Chinesa de Taiping, liderada por Hong Xiuquan, um chinês convertido ao cristianismo que quis impor uma nova lei teocrática na China em meados do século XIX; a centralidade do seu sofrimento e pobreza no movimento coreano Minjung para a democratização e justiça social nos anos 1970 e 1980; ou a reconstrução da sua vida e ensinamentos, e sua infusão com a tradição hindu com o contexto da luta indiana anti-colonial.
Ademais, a figura de Jesus Cristo tem representado muitas visões diferentes e servido para várias funções através do tempo e do espaço. Como nós comemoramos o 2020º aniversário, em meio a uma turbulência global, tensões e incertezas, talvez a multiplicidade de significados que ele incorporou devem nos fazer repensar as narrativas dominantes entre Cristãos, Muçulmanos, Judeus, Hindus, Budistas e outros crentes do mundo afora.
A questão que encaramos hoje é muito mais que relembrar como historicamente nós amamos ou honramos Jesus, mas como sua figura pode ter um significado contemporâneo para nós, em nossos dias e época desafiadora, e se nós conseguimos imaginar um futuro com a sua vida e exemplo?
Como Jesus será, ou se parecerá, quando o reino do sectarismo fanático, arrogante, imperial e conquistador finalmente se exaurir e a necessidade de verdade e reconciliação emergirem do seu local de nascimento na Palestina e se espalhar pelo mundo?
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Descolonizando Jesus Cristo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU