04 Dezembro 2019
Lenio Streck está cansado. Exausto de tanto escrever e falar defendendo a constitucionalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal de que o cumprimento de pena só deve ser obrigatório após o esgotamento dos recursos.
O suor e rouquidão valeram. O jurista sustentou diante dos ministros no dia 17 de outubro como representante da Abracrim. Lenio foi um dos redatores da ADC 44, da OAB, e auxiliou na ADC 54, que tratam da presunção de inocência. "Tem de assumir qual a autoridade impera no direito brasileiro: se é a dos julgadores ou se é a do Direito", disse à corte na ocasião.
Lenio Streck está preocupado. Como se esperava, boa parte da sociedade se revoltou contra a decisão do STF. O que ele não previa era o início de uma crise entre os Poderes da República. O Congresso já indicou que não aceitou a decisão do STF e irá fazer lei ou emenda à Constituição. A questão pode voltar ao Supremo, e os ministros terão que reforçar a validade de cláusula pétrea da Constituição.
"Vai se abrir um precedente sem volta de que no Brasil a divisão de Poderes não funciona. O Parlamento não se deu conta ainda da gravidade disso, essa parte absurdamente sensível da democracia brasileira está andando no fio da navalha", afirma Lenio. Conforme fala, a energia vai voltando, o motor vai aquecendo. Já são dezenas de artigos só aqui na ConJur sobre o tema.
O jurista tem atuado como um dos principais pareceristas do país. Voltou a advogar, após 28 anos de carreira no Ministério Público. Ultimamente, vê um ataque sem igual às garantias do Direito e uma revolta das massas poucas vezes vista. Vê risco de o Estado Democrático de Direito chegar ao fim no Brasil. "Se o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia. É nessa ordem".
Lenio Streck está sentimental. Cita Rei Lear, a peça de Skakespeare: "'É triste envelhecer sem ser sábio'. Envelhecer não é bom, mas se você se torna um néscio, você perdeu toda sua vida".
A entrevista é de Fernando Martines, Carlos de Azevedo Senna e Luiza Calegari, publicada por Conjur, 01-12-2019.
A Constituição parece ser clara em determinar que a presunção de inocência termina com o fim das possibilidades de recursos. Mas, em um mundo ideal, a decisão de um juiz e a de um colegiado de desembargadores já não seria o suficiente para a sociedade ter confiança de que houve julgamento justo? E os tribunais superiores ficariam livres para apenas estabelecer precedentes.
Não dá para comparar ovos com caixas de ovos. Por exemplo, a Alemanha decide em duas instâncias, mas na primeira a decisão já é feita com colegiado. E, quando vai para a segunda, você pode refazer a prova. Isso não tem nada a ver com o Brasil. Comparar a Alemanha com o Brasil é absolutamente fora de propósito. Aqui temos uma fragmentação de juízes, onde cada um decide como quer. Essa falta de critério acaba transformando o Direito em uma loteria, e esse é o problema.
Então, por óbvio que nós precisaríamos de um STJ e um STF que firmassem a jurisprudência e tribunais que respeitassem o que eles estabeleceram. O Direito não pode depender das visões particulares dos juízes, ou dos desembargadores, ou dos ministros.
Como superar isso?
Precisamos construir uma criteriologia nas decisões para que se dê condições iguais para que os réus não dependam de idiossincrasias e de dureza ou de bondade dos juízes. O Brasil é um país fantástico, que consegue já ter hoje uma epistemologia do Carnaval, na qual se decide o campeão por 0,001. Mas não temos critérios para uma legítima defesa ou princípio da insignificância. Às vezes o Supremo dá Habeas Corpus por um par de chinelo, e às vezes condena por dois sabonetes. Está sem uma epistemologia, uma construção de critérios pelos quais se alcança um resultado científico, e o Direito ficou para trás nisso. Brincando um pouco, o carnaval talvez seja muito mais objetivo.
E como fica a gloriosa expressão “cada caso é um caso”?
Tenho uma metáfora que responde. Eu estou na Itália e uma uma professora comenta: "Professor, nós dois vemos um barco, mas cada um vê um barco diferente". Perfeito. Mas de cara concordamos que é um barco, e não um avião. Segundo momento: "Quantos metros tem o barco? Nós dois sabemos quanto é um metro. Qual é a cor do barco? Se não formos daltônicos, identificaremos. Dez minutos depois nós temos o mesmo barco." Direito não é igual o barco, cada caso é um caso concreto, é verdade, mas não é qualquer caso. Os juristas têm que entender que Direito é um fenômeno complexo e que o Direito não é moral. Ele é feito pela moral, pela política e economia, ele é posto e depois nós temos que levá-lo a sério. Aí o papel do juiz é não ser o dono da lei, mas a pessoa que faz o ajuste. É como uma costura, ele não vai costurar a roupa, a roupa já está pronta, ele vai ajustar.
Como o senhor vê as críticas dos próprios operadores do Direito quanto à recente decisão do STF?
Se fazemos discussões sobre o modo de aplicar processo quando todo mundo está com a sanha punitivista, o resultado já se sabe de antemão. O Brasil é um país em que as garantias processuais são criticadas pelos políticos, embora as usem, e pelos advogados, embora as usem. O Brasil é um país em que, fazendo a uma alegoria, se a comunidade jurídica fosse a comunidade médica, haveria passeatas contra vacinas e antibióticos, porque consta que mais de 60% dos advogados são contra presunção da inocência. O Direito acaba levando as culpas por proteger, quando ele é feito exatamente para isso. O ensino jurídico é um dos grandes culpados. O Direito sofre de uma grande epidemia, em que o paciente zero está lá nas faculdades.
Um dos símbolos máximos da punição é o júri. Como vê essa instituição aqui no Brasil?
O júri tem que ser reformulado. Ninguém pode ser condenado ou absolvido por íntima convicção. Íntima convicção é: você não precisa justificar, é sim ou não. E a Constituição exige fundamentações. Na democracia ninguém pode decidir a vida de alguém, ou a liberdade, ou a propriedade, ou qualquer coisa sem fundamentação. O Brasil é um dos poucos países que têm um júri como o nosso, baseado na íntima convicção, em que você não precisa dizer por que. Os Estados Unidos também, mas lá se exige unanimidade. Um exemplo de júri interessante para o Brasil seria uma espécie de mescla da Espanha, França e Portugal, que é o módulo onde os jurados fundamentam suas decisões e um juiz participa dessas discussões.
Esse problema da íntima convicção que afeta o júri não é também um mal que assola em grande parte os juízes de primeiro grau? Vemos casos do juiz Marcelo Bretas, que dá o dobro de tempo de prisão para casos absolutamente parecidos.
O Brasil, perigosamente, ainda permite a livre apreciação da prova e o livre convencimento, o que gera tantas discrepâncias. A solução para isso é uma teoria da decisão. Uma série de critérios que estão acima dos homens.
Este debate lembra o que se falava após a decisão do então juiz Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá. Até então, era quase unanimidade que, em casos de acusação de concessão de vantagem indevida, o juiz deveria dizer qual vantagem foi dada de forma específica. Moro disse que não, que era algo geral, que Lula ajudou a OAS em contratos com a Petrobras, mas nunca disse em qual contrato.
O Moro criou uma "morologia", uma ciência própria, com os criou critérios dele. Não são critérios públicos. No caso da divulgação das escutas de Lula e Dilma, qual critério ele utilizou? Poder. Fico impressionado que o fiscal da lei, que é o Ministério Público, lance nota dizendo que o Moro estava certo.
No Brasil, o Direito acabou virando uma concepção política, uma concepção do mal, "eu quero que, eu acho que o sujeito é culpado", aí eu faço um raciocínio em que os fins justificam os meios. Nesse meio tempo eu troco informações com o Ministério Público, o Ministério Público me municia, mas eu não aviso a defesa.
Como mudar isso?
Na Alemanha o Artigo 160 do Código Penal diz que o promotor tem que investigar também a favor da defesa. Nos Estados Unidos, desde 1963, a Suprema Corte estabelece que a acusação deve pôr na mesa também o que tem a favor da defesa, senão vira conspiração. Querem soluções, querem respostas? Eu estou dando aqui respostas e soluções, estou aqui à disposição.
Mas como fazer isso acontecer na prática? Com uma política que responsabilize de verdade juízes e promotores por seus atos e os obrigue a seguir precedentes? Por meio de lei, reforço do CNJ?
Primeiro, o STJ tem que aumentar para 99 ministros. Também precisamos mudar as leis. Precisa ser obrigatório por lei que o MP investigue também a favor de defesa. Por lei, o juiz deve ser proibido de decidir por livre convencimento. As faculdades têm que ensinar Direito e não uma péssima teoria política do poder, como têm feito. Temos que reforçar a doutrina. A doutrina tem que fazer esse papel de dizer "ali errou, aqui acertou". As academias têm que fazer isso. Você tem um problema estrutural, funcional, mas também tem um problema individual gravíssimo, que passa pelo ensino jurídico, pelas academias, e pela reformulação do papel da doutrina.
E sobre o instituto da delação premiada? Antes, ele era visto como a salvação. Agora, parece estar sendo evitado pelos acusados.
A delação está em crise, fortemente, porque primeiro as delações foram feitas sem accountabilty, sem transparência. Foram feitas secretamente, muitas vezes forçadas. Elas só entraram em crise porque isso veio à tona a partir das divulgações do Intercept.
Um dos pontos centrais da fragilização das delações é o Supremo ter decidido que ninguém pode ser condenado e nem processado pela palavra do delator, então o delator ficou desmoralizado.
Dentro da crise estrutural e individual, nós temos um problema funcional urgente. Precisamos tornar claras as regras da delação, ela não pode ser um instrumento de tortura, de pressão.
Ano que vem o decano do STF, ministro Celso de Mello, terá que se aposentar. O presidente Jair Bolsonaro sinalizou inicialmente que indicaria Moro. Depois, falou em alguém “terrivelmente evangélico”. Como vê esse cenário?
O presidente da República tem a legitimidade para indicar quem quiser e o Senado deve fazer a aferição. Se a sociedade elege um presidente, essa consequência será natural. São os custos da democracia. Mas entendo que os ministros devem ter mandatos, talvez de oito anos, renováveis.
Bom, chegamos ao assunto preferido da nação, que não são mais os onze da seleção, mas sim os onze do Supremo. Qual o perigo dessa reação do Congresso de não aceitar a decisão sobre a presunção de inocência e imediatamente começar a tocar projeto de lei e emenda à Constituição para superar a decisão do STF?
O Parlamento ainda não se deu conta do que está fazendo. O Direito no mundo todo é dito por um tribunal. No Brasil não. O Parlamento não gostou de uma decisão do Supremo e irá mudar no tapetão [expressão popular quando uma decisão administrativa muda o resultado de um jogo de futebol].
Mas o senhor mesmo já disse que os Poderes são Legislativo, Executivo e Judiciário, nessa ordem.
Sim, isso é verdade, mas não pode transformar isso num moto contínuo. Imagine que o Parlamento modifica a decisão, aí o Supremo volta a dizer que é inconstitucional e ficam nesse jogo. O resultado é uma crise institucional profunda. Nós, que vencemos as ADCs no Supremo, temos que lutar para mudar a narrativa, senão perderemos no tapetão. A narrativa que está ganhando é a de que está proibido prender após condenação de segunda instância, o que é uma mentira. No Brasil, aceita-se a regra do jogo até o momento em que ela seja contra você.
A democracia é um produto muito frágil, e, de todos os seus ingredientes, o mais forte deles é o Direito. Você pode fazer a democracia como quiser, mas sem o Direito, que condiciona os demais, não vai ter democracia. A política depende do Direito, mas o Direito não pode depender da política. No Brasil fizemos essa inversão. É válida a frase idiota do conselheiro Acácio, de O Primo Basílio: "As consequências vêm sempre depois".
A democracia, na história brasileira, é uma exceção. O senhor acha que essa nossa experiência democrática atual está chegando ao fim?
Nós somos especialistas em estado de exceção, e, quando temos democracia, parece que a própria democracia é uma exceção, e nós não aprendemos nada com a história, e logo queremos de volta o estado de exceção. Corremos riscos sim, e o primeiro risco é abrir as portas da caixa de Pandora com essa decisão do STF. Vai se abrir um precedente sem volta de que no Brasil a divisão de Poderes não funciona. O Parlamento ainda não se deu conta da gravidade disso, essa parte absurdamente sensível da democracia brasileira está andando no fio da navalha.
Como contornar a sanha punitivista sem desagradar de tal forma a população que o sistema todo corra risco?
O grande dilema da democracia é uma frase que não é minha, é de um psicanalista amigo meu, que diz o seguinte: "Como conter o gozo da sociedade (ou seja, crimes, corrupção, desejos) sem ser tirânico?" Isso só se responde com mais garantias e mais Direito. Quer democracia? Tire o teto, deixe o sol entrar. Não há democracia quando se cobre o sol, porque logo adiante vai dar errado.
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“Se o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia. É nessa ordem” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU