O Plano mais Brasil, num novo pacote econômico enviado pelo governo ao Congresso Nacional na semana passada, que inclui três Propostas de Emenda Constitucional - PECs – a PEC do Pacto Federativo, a PEC dos Fundos Públicos e a PEC Emergencial –, é fundamentado na ideia geral de que “para recuperar o crescimento da economia brasileira de forma mais sustentável, tem que diminuir o tamanho do Estado”, diz o economista José Luis Oreiro à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, com este pacote o governo diz à sociedade que “é possível reduzir o volume de serviços que o Estado brasileiro presta à população”.
Para o economista, um exemplo concreto de que o governo quer reduzir a participação do Estado nos investimentos sociais se manifesta nas propostas de desindexação, desvinculação e desobrigação dos gastos sociais. “No fundo, Guedes quer acabar com a distinção entre despesa obrigatória e despesa discricionária e desindexar as despesas públicas, porque muitas delas são indexadas à avaliação da inflação, como era o caso do salário mínimo”, afirma. Com uma possível desindexação do salário mínimo à inflação, argumenta, “corre-se o risco de ter uma situação na qual uma parte significativa dos benefícios previdenciários e de assistência social no Brasil não seja corrigida nem mesmo pela inflação. Isso, obviamente, vai aumentar a desigualdade de renda e a pobreza”.
Apesar de o governo argumentar que a PEC do Pacto Federativo possibilitará maior flexibilização aos gestores dos entes federativos em como administrar os recursos com saúde e educação, o economista pontua que “deixar isso a critério do político de plantão” não é “correto”. De outro lado, ele admite a possibilidade de “discutir se as atuais alíquotas para saúde e educação são as adequadas. “O Brasil está passando por um processo de envelhecimento, e quando a população envelhece, a proporção de velhos aumenta e a proporção de jovens diminui. Desse modo, é razoável que em algum momento tenha que se ajustar a vinculação de gastos em saúde e educação a fim de reduzir a alíquota para a educação e aumentar para a saúde, porque basicamente quem tem problema de saúde são os velhos e quem precisa de educação são os jovens. Mas se, de fato, estamos vivendo uma transição demográfica em que o percentual de jovens vai diminuir nos próximos 20 anos, então é razoável que se ajustem os percentuais de receitas aplicados à saúde e à educação”, pondera.
Entre os poucos pontos positivos do pacote econômico, Oreiro cita a proposta da PEC dos Fundos Públicos de usar o dinheiro de alguns fundos para abater a dívida pública. “Existem 220 bilhões de reais parados em 281 fundos públicos no Brasil. Seria interessante fazer um mapeamento desses fundos e ver quantos de fato não têm razão de ser e podem ser extintos para usar o dinheiro para abater a dívida pública. Essa é uma ideia bastante razoável”, destaca.
José Oreiro (Foto: Arquivo pessoal)
José Luis Oreiro possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.
IHU On-Line - O pacote econômico apresentado pelo ministro Paulo Guedes inclui três PECs - PEC do Pacto Federativo, PEC dos Fundos Públicos e PEC Emergencial – e é considerado a maior reforma dos últimos 30 anos. Quais são as diretrizes, linhas gerais, que fundamentam o pacote econômico do governo?
José Luis Oreiro – O fundamento, ou seja, o que está na cabeça do Paulo Guedes é que, para recuperar o crescimento da economia brasileira de forma mais sustentável, tem que diminuir o tamanho do Estado. Esse é o fundamento mais geral e ele já vinha falando isso há muitos anos em artigos que escrevia no jornal O Globo. Para ele, o modelo social-democrata adotado no Brasil durante os governos FHC e Lula havia levado o país a uma armadilha de baixo crescimento e, portanto, só seria possível voltar a ter um crescimento elevado se retirasse o Estado. Esse fundamento mais geral se desdobra em algumas outras hipóteses.
Na argumentação do Guedes está implícita uma visão muito antiga em economia, que foi descartada pelo Keynes em 1936, quando ele escreveu “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, que se chama a visão do Tesouro. Essa era a visão do Tesouro inglês no final da década de 1920 e início da década de 1930 sobre a possibilidade de usar o investimento público para tirar a economia britânica da grande depressão de 1929. Segundo a visão do Tesouro, toda vez que o governo aumentasse o seu investimento, isso iria reduzir na mesma magnitude e instantaneamente o investimento privado. Então, teria um efeito de deslocamento que faria com que, quando o governo aumentasse o investimento público, o investimento privado incidiria na mesma magnitude. Guedes tem este modelo na cabeça: ele acha que para aumentar o investimento privado, tem que reduzir o gasto público e é isso que está embasando, em termos mais gerais, a proposta dele.
IHU On-Line – O diagnóstico dele é correto ou não para enfrentar a atual situação econômica do país?
José Luis Oreiro – É completamente equivocado e ultrapassado. Primeiro, porque essa visão do Tesouro mostrou que, a não ser em casos excepcionais em que a economia está operando com pleno emprego da força de trabalho, o efeito de deslocamento, se ele existe, não é completo. O mesmo ocorre quando a economia está operando muito abaixo do pleno emprego, como é o caso da economia brasileira agora, que está operando com um hiato do produto de 5% – ou seja, o PIB está 5% abaixo do potencial. Temos um desemprego em sentido amplo, que envolve não só os que não estão trabalhando, mas aqueles que deixaram de procurar trabalho porque já desistiram e as pessoas que gostariam de trabalhar mais horas – isso representa aproximadamente 25% da força de trabalho. O Brasil está operando muito abaixo da força de trabalho e tem todo um espaço para estimular a economia por intermédio de investimento público. Esse diagnóstico de que o crescimento da economia é baixo porque o Estado está inchado, que é o argumento do Guedes, não se sustenta.
Numa das transparências (slides) da apresentação dele, que se chama “máquina que gasta muito”, ele fez uma conta de que em 2018 o governo brasileiro, nas suas três esferas, estaria gastando 49,2% do PIB. Mas essa conta está errada. O economista Sérgio Gobetti, do Ipea, já mostrou que nessa conta existe um erro de dupla contagem por conta dos funcionários inativos da União, que são contabilizados duas vezes.
Outro erro é que adiciona os saques do FGTS como se fossem despesa pública e, além disso, considera os juros brutos e não os juros líquidos da dívida pública, pois o governo tem um determinado volume de dinheiro em caixa que também recebe juros. Então, ao serem feitas essas correções, a despesa cai para 41% do PIB, ou seja, um número muito menor do que aquele que o Paulo Guedes está mostrando. A justificativa que o Guedes apresenta para o seu plano emergencial é feita em cima de dados incorretos, ou seja, é aquilo que podemos chamar de contabilidade criativa.
IHU On-Line – As PECs propostas pelo governo indicam, de fato, uma redução da atuação do Estado? Pode nos dar alguns exemplos de como a proposta de redução do Estado se manifesta nessas propostas?
José Luis Oreiro – O primeiro exemplo são os “três Ds”: desindexação, desvinculação e desobrigação. No fundo, Guedes quer acabar com a distinção entre despesa obrigatória e despesa discricionária e desindexar as despesas públicas, porque muitas delas são indexadas à avaliação da inflação, como era o caso do salário mínimo – está na Constituição que ele tem que ser reajustado pelo menos pela inflação e existiu uma regra nos governos Lula e Dilma em que ele era reajustado segundo a inflação do ano anterior mais o crescimento do PIB de dois anos antes. O salário mínimo, por sua vez, indexa as despesas previdenciárias, ou seja, nenhum benefício previdenciário pode ser menor do que o salário mínimo. Então, ao desindexar o salário mínimo – e esse é um exemplo concreto do que pode acontecer caso a PEC seja aprovada, o que acho pouco provável –, corre-se o risco de ter uma situação na qual uma parte significativa dos benefícios previdenciários e de assistência social no Brasil não seja corrigida nem mesmo pela inflação. Isso, obviamente, vai aumentar a desigualdade de renda e a pobreza.
A desvinculação é retirar a obrigatoriedade dos entes federativos de aplicarem até “x”% das suas receitas em saúde e educação. Isso também é algo que vai no sentido de reduzir o tamanho do Estado. No fundo, o que essas PECs estão querendo fazer é reduzir a dívida pública, dando calote não nos credores, mas em parte da sociedade, porque as PECs preveem, entre outras coisas, uma redução de até 25% do salário dos servidores públicos, permitem a desindexação de benefícios previdenciários e de assistência social à inflação. No fundo, é um pacote desenhado para atender aos interesses dos rentistas do Brasil. O governo vai sacrificar uma parte expressiva da população para garantir o pagamento de juros e das amortizações da dívida pública.
IHU On-Line – Especificamente sobre a fusão dos gastos obrigatórios com saúde e educação, tanto o governo quanto aqueles que são favoráveis à mudança afirmam que ela vai permitir uma maior flexibilidade para que os gestores possam utilizar esses recursos de acordo com as necessidades de cada estado ou município. Quais são suas ponderações sobre esse argumento?
José Luis Oreiro – Existe uma razão de ser dessas vinculações: por pior que sejam os serviços de educação e saúde no Brasil, eles são universais. Essa foi a maneira encontrada para transformar essas políticas em políticas de Estado e para não depender do político de plantão do momento. Até acho que é possível discutir se as alíquotas de saúde e educação são as adequadas. Dou um exemplo: o Brasil está passando por um processo de envelhecimento, e quando a população envelhece, a proporção de velhos aumenta e a proporção de jovens diminui. Desse modo, é razoável que em algum momento tenha que se ajustar a vinculação de gastos em saúde e educação a fim de reduzir a alíquota para a educação e aumentar para a saúde, porque basicamente quem tem problema de saúde são os velhos e quem precisa de educação são os jovens. Mas se, de fato, estamos vivendo uma transição demográfica em que o percentual de jovens vai diminuir nos próximos 20 anos, então é razoável que se ajustem os percentuais de receitas aplicados à saúde e à educação. Agora, deixar isso a critério do político de plantão, não acho correto.
IHU On-Line – Outro ponto que tem sido defendido pelo governo e por aqueles que são favoráveis ao pacote econômico é que ele permitirá o equilíbrio fiscal. Do ponto de vista fiscal, o pacote se sustenta ou não?
José Luis Oreiro – Do ponto de vista fiscal, estão adotando mais do mesmo. A ideia implícita de ajuste fiscal que vem desde o Joaquim Levy, passando pelo governo Temer e agora pelo governo Bolsonaro é que, para crescer, primeiro tem que cortar gastos. Primeiro, o Levy cortou pesadamente os gastos em investimentos e com isso aprofundou a recessão de 2014. Em 2016, o governo colocou o Teto de Gastos, que todo mundo sabia que era insustentável por conta dos gastos previdenciários que ainda vão crescer durante um tempo a 3% ao ano em termos reais. Em algum momento, isso levaria não só à necessidade da reforma da previdência, que acabou acontecendo, mas também à discussão sobre os gastos obrigatórios, particularmente os gastos com o funcionalismo público. Então, o que a PEC vai fazer é aprofundar esse modelo de ajuste fiscal, o qual vai aprofundar a crise, porque quando se cortam gastos se gera uma redução do PIB e isso ocasiona uma redução da arrecadação tributária. É como dar um tiro no próprio pé. Este modelo está equivocado.
Deveríamos pensar num ajuste fiscal que viesse pelo lado da receita: cobrar impostos dos mais ricos, particularmente, impostos de lucros e dividendos distribuídos, fazer uma reforma tributária que diminuísse o peso dos impostos indiretos e aumentasse o peso dos impostos diretos e sobre propriedade. No Brasil, os impostos sobre propriedade arrecadados pelos municípios são muito baixos. Em Brasília, onde estou morando, pago mais de Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA do que de Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU, o que é um absurdo, porque o imóvel vale seis, sete vezes mais do que o valor do automóvel. Então, tem um espaço para municípios arrecadarem mais, aumentando o IPTU e o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR. Essa é a discussão que está sendo feita na Europa. Enquanto lá se discutem políticas via reformas tributárias para diminuir a desigualdade por meio da distribuição de renda, aqui estamos querendo desvincular gastos com saúde e educação, cortar os salários do funcionalismo público, como se o percentual do PIB no Brasil gasto com funcionalismo público fosse muito alto; não é.
O Chile, por exemplo, gasta como proporção do PIB mais do que o Brasil: 4,7% do PIB, enquanto no Brasil é 4,5%. Nos EUA são gastos 10% do PIB com funcionalismo público. Então, existe um mito de que há um descontrole das contas públicas porque se gasta com funcionalismo público. Isso não é verdade. O descontrole das contas públicas se deu basicamente por causa da queda de receita tributária decorrente da crise de 2014 e 2016 e das desonerações feitas pela dona Dilma em 2012 e 2013.
IHU On-Line – Algum ponto do pacote pode ser positivo para o país?
José Luis Oreiro – Talvez a proposta dos fundos seja interessante, porque tem muito dinheiro parado em fundos, que não estão sendo utilizados. Outra coisa que achei interessante no pacote é o controle das isenções fiscais e subsídios. Não sou contra a desoneração tributária, mas isso tem que ser feito de forma muito criteriosa com base na análise de custo benefício, coisa que não foi feita, diga-se de passagem.
Sobre a PEC dos fundos públicos, segundo a apresentação do ministro, existem 220 bilhões de reais parados em 281 fundos públicos no Brasil. Seria interessante fazer um mapeamento desses fundos e ver quantos de fato não têm razão de ser e podem ser extintos para usar o dinheiro para abater a dívida pública. Essa é uma ideia bastante razoável. Mas aí não se trata de passar a régua e acabar com todos os fundos; tem que olhar caso a caso.
IHU On-Line – Tem algum outro ponto das PECs que precisaria ser reconsiderado, na sua avaliação?
José Luis Oreiro – A ideia de fazer um ajuste emergencial cortando salário dos servidores e serviços é uma maluquice do ponto de vista econômico e social. Do ponto de vista econômico, porque torna a política fiscal ainda mais pró-cíclica. Uma política fiscal pró-cíclica é aquela que vai na mesma direção do ciclo econômico: quando a economia entra em recessão, o governo arrecada menos e então ele pode reduzir os gastos com o funcionalismo em até 25%, o que vai reforçar a queda do produto em função da queda de demanda. Esse é um argumento econômico.
O argumento social é que se o governo vai reduzir o salário do servidor público, reduzindo jornada de trabalho, então o que ele vai fazer, por exemplo, com os professores? Vai reduzir a jornada de trabalho dos professores e eles vão dar menos aulas? Se é assim, então vai ter que haver menos alunos. Vai reduzir a jornada de trabalho dos médicos? Se reduzir a jornada dos médicos, terá que haver menos atendimentos médicos para a população. Vai reduzir a jornada de trabalho dos militares? O que vai se fazer com o Exército? As Forças Armadas deveriam ser, em termos dos servidores da União, aproximadamente 40% dos servidores. O governo vai reduzir em até 25% os salários dos militares, juízes, promotores? No fundo, o governo está dizendo que pode reduzir os serviços que o Estado presta à população. É isto que está nesta PEC: a ideia de que é possível reduzir o volume de serviços que o Estado brasileiro presta à população. Isso não faz o menor sentido.