01 Novembro 2019
Já não haverá a cúpula do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), nem da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (COP25) no Chile.
Depois de quase duas semanas de revoltas sociais que mergulharam o país na maior crise política e social desde seu retorno à democracia, em 1990, o presidente Sebastián Piñera anunciou que o país não será o anfitrião desses importantes compromissos internacionais.
A decisão foi tomada pelas “difíceis circunstâncias que tem se vivido no nosso país, e que vivemos todos nós chilenos durante as últimas semanas”, disse o mandatário nessa quarta-feira, agregando que a prioridade é “restabelecer plenamente a ordem pública e a paz social”.
A reportagem é de Cecilia Barría, publicada por BBC News, 31-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os dois eventos, aos quais estavam convidados mandatários das maiores potências mundiais e que estavam previstas para novembro (APEC) e dezembro (COP25), foram cancelados em meio aos protestos massivos.
As mobilizações começaram pelo aumento da tarifa do metrô de Santiago, porém hoje estão motivadas pelo descontentamento que a profunda desigualdade econômica e social provoca no país, segundo reclamam os manifestantes, que denunciam ter sido excluídos do desenvolvimento que experimentou o Chile nas últimas décadas.
Os protestos, que deixaram pelo menos 20 mortos e cem feridos, seguem ocorrendo diariamente nas principais cidades do país, ao mesmo tempo que grupos saqueiam e colocam fogo nos centros comerciais e meios de transporte.
Piñera anunciou uma agenda de reformas sociais e uma mudança de vários ministros do governo, como as pastas de Interior e da Fazenda, entre outras concessões para frear a crise, apesar de suas medidas não conseguirem frear os protestos.
Esse é o contexto no qual o mandatário tomou a decisão de suspender a acolhida das duas cúpulas.
“Esse é um duro golpe à imagem e à política exterior do Chile”, aponta à BBC Mundo Heraldo Muñoz, ex-chanceler chileno durante o governo de Michelle Bachelet.
“É lamentável. O governo não foi capaz de restabelecer a paz social, nem responder às demandas sociais”.
Muñoz considera que terá um impacto negativo no curto prazo, porém no futuro, diz, o Chile recuperará sua posição no cenário internacional.
Nessa linha também se mostra Osvaldo Rosales, que foi diretor geral de Relações Econômicas Internacionais do Chile, ex-diretor da Divisão de Comércio Internacional da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e atual consultor econômico internacional.
“Isso é muito doloroso – destaca –, porém vale mais que o mundo tenha uma imagem mais certeira e mais transparente do que realmente é o Chile”.
O Chile tinha uma imagem internacional de estabilidade econômica, “porém agora perde espaços ganhos em matéria internacional”, aponta.
E como agora o país “terá que se dedicar a seus desafios domésticos, se reduz o espaço para uma política exterior mais ativa”.
“O Chile não era um oásis como dizia o presidente Piñera. Era também um centro de altíssima desigualdade”.
Na opinião de Rosales e outros especialistas, o cancelamento dos dois compromissos internacionais vai afetar severamente o comércio, o turismo, a hotelaria e uma grande quantidade de médios e pequenos empreendedores, que estavam planejando negócios para aproveitar a oportunidade.
À cúpula chilena da COP25, considerada a maior conferência planetária para enfrentar a mudança climática, estava prevista que assistissem – além dos chefes de Estado – cerca de 25 mil pessoas, em um evento com um custo aproximado de organização de 62 milhões de dólares (dos quais 35 milhões de dólares proviam diretamente dos cofres fiscais).
O Fórum APEC em Santiago, por sua vez, contava com a participação de delegados e mandatários das 21 economias que representam 40% da população mundial e 60% do PIB global.
No caso do Chile, o mercado APEC representa 64% do intercâmbio comercial do país sul-americano com o mundo.
Quanto ao custo desse último evento, calcula-se que superava os 40 milhões de dólares e que grande parte do dinheiro para os dois eventos se gastou nos preparativos.
Depois do anúncio do presidente, membros do gabinete aprofundaram as razões por trás da decisão.
“A partir do ponto de vista político, é uma decisão presidencial de muita autoridade”, disse à BBC Mundo o ministro de Relações Exteriores de Chile, Teodoro Ribera.
“Se realizasse as duas cúpulas, de muito significado, em um lapso de 60 dias, o presidente destinaria um terço deles, isto é, 20 dias, somente ao tema internacional, e isso não seria possível”, apontou.
“Teria significado um custo político seguir insistindo em cúpulas e que essas não tivessem o peso final desejado. Isso requereria uma maior tranquilidade social e uma maior dedicação dos líderes”, agregou.
Contudo, reconheceu que existem efeitos negativos na imagem do Chile para o exterior.
“Quando em um país acontecem fatos de violência como no Chile, é inquestionável que a imagem do país se afeta”.
Ao mesmo tempo, não obstante, insistiu que “os danos à imagem do país não são permanentes”.
No setor privado, empresários chilenos vinculados ao evento entregaram seu respaldo à decisão de cancelá-lo.
“Entendemos e apoiamos a decisão do governo”, declarou Richard von Appen, presidente do Conselho Assessor Empresarial da APEC.
“O Chile precisa concentrar hoje todos seus esforços em restabelecer plenamente a ordem pública”.
Depois do cancelamento dos eventos, a moeda e a bolsa chilena registraram baixas.
E no exterior, os mercados seguem atentamente o que tem ocorrido no Chile, um fenômeno que pegou muitos de surpresa, dada a imagem da estabilidade econômica e política que o país tinha como carta de apresentação.
Como ainda não estão claros os efeitos econômicos da crise que vive o país, investidores e analistas financeiros avaliam a situação com cautela.
“Os efeitos diretos vão derivar das interrupções na atividade dos negócios”, disse à BBC Mundo Quinn Markwith, analista da consultora britânica Capital Economics, com sede central em Londres, especialmente no comércio revendedor.
O outro aspecto a ter em conta, explica, é a evolução das decisões que tomem os sindicatos mineiros em apoio aos protestos.
Porém, “no médio prazo, os efeitos econômicos deveriam se compensar com um relaxamento da política fiscal e a política monetária”, aponta Markwith.
No que se refere à política fiscal, “cremos que há uma boa margem para afrouxar”, mas no que diz respeito às decisões monetárias tomadas pelo Banco Central, “já se afrouxou significativamente”.
E essa é justamente uma das perguntas que ronda o debate chileno: de onde sairá o dinheiro para financiar as demandas sociais.
Nisso, muitos dos manifestantes dizem que os recursos devem provir dos setores que mais concentram a riqueza, algo que requer uma mudança do sistema tributário, entre outras medidas.
Ao anterior, se soma o aporte de fundos fiscais que teria previsto o governo para aplacar as queixas mais urgentes, algo que ainda permanece nebuloso.
Em meio à incerteza econômica, política e social, os danos provocados ao metrô de Santiago mantém interrompidos os transportes públicos e as pessoas chegam com dificuldade a seus trabalhos.
Os cálculos oficiais estimam que levará meses até o restabelecimento normal do serviço, enquanto muitos comércios fecharam suas portas por temer que grupos violentos os destruam.
Até antes dos protestos se projetava um crescimento anual do PIB de 2,3% para esse ano, porém com os acontecimentos das últimas semanas, o panorama se tornou mais incerto.
Embora o aumento da tarifa do metrô e da eletricidade anunciada este ano tenha sido sem efeito, e o governo tenha anunciado outras concessões, o surto social não parece ser aplacado.
"Isso não vai parar até que haja uma importante modificação das regras do jogo", diz o economista Osvaldo Rosales.
"Nesse momento, existem setores da direita abertos à possibilidade de mudar a Constituição", vigente desde agosto de 1980, na ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990).
"No curto prazo, demandas urgentes, como a questão de pensões e saúde, devem ser resolvidas, os salários melhorados e a estrutura tributária alterada", acrescenta.
"Mas tudo isso passa por uma nova Constituição que nos permita caminhar em direção a um Chile mais justo", posição que apoia um setor de manifestantes, mas que gera forte controvérsia no país.
O debate também se estendeu à política: em comunicado à CNN, o porta-voz do Supremo Tribunal, Lamberto Cisternas, considerou esta semana que o Chile precisa de uma nova Carta Magna.
Questionado sobre isso nesta quarta-feira, o presidente estava aberto: "Vamos analisar as reformas estruturais depois de ouvir com atenção e honestidade todos os chilenos... Não descarto nenhuma solução, nenhuma reforma estrutural".
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“Um duro golpe”: as consequências econômicas e de imagem para o Chile pelo cancelamento de duas grandes cúpulas internacionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU