01 Novembro 2019
Para o Ken Loach (Nuneaton, 1936) de meio século atrás, quando dirigiu ‘Kes’ (1969), um filme como Sorry We Missed You teria parecido pura ficção científica. A uberização da economia, que é o pão nosso de cada dia, não é um conceito que pudesse ser compreendido naquele momento. A classe trabalhadora ainda existia como tal e estava unida, lutando por seus direitos.
“No meu tempo, diziam para você que, com a formação adequada, conseguiria um emprego para a vida toda. Contudo, ocorreu essa mudança inexorável que passamos, da segurança à insegurança. Agora, você pode perder o trabalho da noite para o dia. E logo aparecem casos como o de Ricky, o protagonista de meu filme, que assume todos os riscos, enquanto a empresa não assume nenhum. É o trabalhador que explora a si mesmo, o ideal das grandes empresas”, resumiu Loach, em Cannes.
Com a esperança de deixar para trás a instabilidade, Ricky Turner (Kris Hitchen) decide investir tudo em uma van para trabalhar como autônomo em uma empresa de transportes que lhe exige tudo e não oferece nada em troca.
O capataz que o contrata, conforme o ditado, recorre a um eufemismo disfarçado de fórmula de sucesso, já bastante desgastada: “Você não trabalhará para nós, trabalhará conosco”. A esposa de Ricky, Abbie (Debbie Honeywood), uma cuidadora de idosos, faz isso em condições semelhantes de exploração. Enquanto isso, seus filhos contemplam como seus pais só servem para dormir no sofá, em frente à TV, arrebentados por suas maratonas diárias.
Extremo, sim. Realista também. A visão de Loach é implacável. Seu filme, em suma, mostra-nos o que acontece do outro lado da tela quando, com dois ou três cliques, pedimos um livro da Amazon ou algo similar. Digo a ele que recentemente pedi um porque não consegui encontrá-lo nas livrarias. Durante alguns instantes, pensei em Ricky. Mas, depois de alguns segundos de hesitação, confirmei o pedido. Loach ri com o mea culpa. Mas, contra todo o prognóstico, me absolve.
A entrevista é de Philipp Engel, publicada por El Cultural, 31-10-2019. A tradução é do Cepat.
Então, não tenho que me sentir culpado?
Não acho. Tomo o fato de que tenha se sentido culpado, graças ao meu filme, como um elogio. Mas, a solução não está em atos individuais, mas, sim, em apoiar um movimento político que lute por mudanças.
O chamado precariado se estende como uma mancha de óleo em todos os âmbitos. Não acha que a esquerda não soube reagir?
Na Inglaterra, sim, notou-se uma reação. Veja o que aconteceu no Partido Trabalhista, que se parece com o seu partido socialista, ou como o de Hollande, na França. Ou seja, mais social-democrata do que realmente socialista. Mas, em 2015, as bases elegeram Jeremy Corbyn, que é um autêntico socialista, e em um ano o partido passou de quase 200.000 seguidores para mais de meio milhão. E isso que o establishment não o quer ver nem pintado. Nem sequer meios de comunicação supostamente progressistas como The Guardian. A BBC chegou a lançar um documentário o acusando de antissemitismo, o que é totalmente falso. Eu o conheço há 30 anos e sei perfeitamente bem que não é assim.
A posição de Corbyn em relação ao Brexit também não está muito clara, você não acha?
Não pode se definir muito, porque metade de seu partido é contra e a outra a favor. Mas, como lhe dizia, eu o conheço há muito tempo e temos um ponto de vista semelhante em relação à Europa. Corbyn acredita na solidariedade entre as classes trabalhadoras de todos os países. Mas, a União Europeia tem um ponto de vista puramente econômico. É lógico que a esquerda não esteja muito entusiasmada com a Europa. Corbyn defende uma proposta intermediária.
‘Sorry We Missed You’ estreia na Espanha em 31 de outubro, justamente a data da saída do Reino Unido da Europa. O que acontecerá depois?
É um momento histórico, mas ninguém sabe muito bem como tudo vai acabar. De qualquer modo, recordo-lhe que o Brexit não é uma invenção da esquerda, mas da direita. Surgiu por causa de uma discussão entre eles, sempre em questões econômicas. Alguns disseram que as condições impostas pela União Europeia eram aceitáveis e que é um mercado importante. Os que estão mais à direita responderam que, com menos impostos e empregos mais precários, facilitarão os investimentos estrangeiros e as exportações. Para eles, o acordo com os Estados Unidos é melhor do que o que tínhamos com a União Europeia.
Vamos deixar de lado o Brexit. Você acha que o capitalismo pode entrar em colapso?
O que estamos vivendo agora é a evolução lógica da economia de mercado. Um sistema baseado em uma concorrência feroz, onde tudo o que importa é reduzir custos e otimizar lucros. Não sei até que ponto é viável. A emergência do fascismo que está sendo experimentado em toda a Europa demonstra a fragilidade do sistema.
A revolução tecnológica é em parte responsável?
Quando eu era jovem, também nos diziam que os avanços tecnológicos nos permitiriam ter muito mais tempo livre, mas, na realidade, serviu para reduzir o número de trabalhadores. Deveríamos ter previsto isso.
As redes parecem inúteis para você?
Há muitas pessoas que as utilizam para protestar, mas isso não ajuda muito, se depois não há uma mobilização real, com uma organização e um programa reais por trás. É preciso uma estrutura. A extrema-direita também as utiliza. Minha família e eu fomos frequentemente ameaçados através delas.
E as plataformas do tipo Netflix, que opinião merecem?
Existem bons diretores que trabalham para elas. Meu filho Jim, que também é cineasta, dirigiu muitos episódios de séries. Mas, ainda que as plataformas sejam muito capazes de detectar tudo o que as pessoas gostam, a verdade é que nunca estarão empenhadas em produzir algo que desafie o status quo.
Se tivesse que imaginar agora um filme de ficção científica que nos projetasse no futuro, como seria?
Não sei. Sou apenas um velho socialista ancorado na realidade. Quando você chega aos 83 anos, sabe que não tem muito futuro pela frente. Já é o bastante procurar entender o presente.
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“Sou um velho socialista ancorado na realidade”. Entrevista com Ken Loach - Instituto Humanitas Unisinos - IHU