04 Setembro 2019
"Esse Fausto de Marshall Berman representa todos os donos de grandes empresas, seus executivos e acionistas que, à distância, planejam e implementam megaprojetos que visam a acumulação de capital, mas preferem não ver o sangue de tantas vidas ceifadas em nome do ídolo mercado", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
A realidade dramática causada pela implantação da barragem e hidrelétrica de Itapebi no Rio Jequitinhonha, no município de Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, e em todos os grandes projetos de interesse do capital, nos recorda Marshall Berman, no livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar, quando o personagem Fausto, após passar pela primeira metamorfose, que o ensinou a viver e a sonhar, pela segunda metamorfose, que o ensinou a amar, já na sua terceira metamorfose, ele aprendeu a construir e a destruir. E, assim, Fausto planeja “esboçar grandes projetos de recuperação para atrelar o mar a propósitos humanos: portos e canais feitos pela mão do homem, onde se movem embarcações repletas de homens e mercadorias; represas para irrigação em larga escala; verdes campos e florestas, pastagens e jardins, uma vasta e intensa agricultura; energia hidráulica para animar e sustentar as indústrias emergentes; pujantes instalações, novas cidades e vilas por construir” (BERMAN, 2007, p. 79).
Interessa a Fausto, acima de tudo, desenvolver-se economicamente, acumular capital. Para isso ele fez um esforço hercúleo e se transformou em um contumaz destruidor e criador. “Os projetos de Fausto vão exigir não apenas um imenso capital, mas o controle sobre vastas extensões territoriais e um grande número de pessoas” (BERMAN, 2007, p. 79). Fausto recebeu “ilimitados direitos de desenvolver toda a região costeira, incluindo carta branca para explorar quaisquer trabalhadores de que necessitem e livrar-se de quaisquer nativos que encontrem no caminho” (BERMAN, 2007, p. 80). Fausto “exorta seus capatazes e inspetores, guiados por Mefisto, a ‘usar todos os meios disponíveis / Para engajar multidões e multidões de trabalhadores. / Incitem-nos com recompensas, ou, sejam severos, / Paguem-nos bem, seduzam ou reprimam!’” (BERMAN, 2007, p. 81). Ele “está convencido de que são as pessoas comuns, a massa de trabalhadores e sofredores, que obterão o máximo benefício dessa obra gigantesca” (BERMAN, 2007, p. 82), mas no caminho dos projetos de crescimento econômico de Fausto está um casal de camponeses idosos que resistem para existirem como posseiros a longa data em uma pequena propriedade. “Filemo e Báucia, um velho e simpático casal que aí está há tempo sem conta. Eles têm um pequeno chalé sobre as dunas, uma capela com um pequeno sino, um jardim repleto de tílias e oferecem hospitalidade a marinheiros náufragos e sonhadores. Com o passar dos anos, tornaram-se bem-amados como a única fonte de vida e alegria nessa terra desolada” (BERMAN, 2007, p. 84).
Filemo e Báucia, um casal generoso, humilde, inocente e resignado, mas “são pessoas que estão no caminho – no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento: pessoas que são classificadas, e descartadas, como obsoletas” (BERMAN, 2007, p. 85). Mas Fausto se torna obcecado com o velho casal e sua pequena porção de terra: “Esse casal de velhos devia ter-se afastado, / Eu quero tílias sob meu controle, / Pois essas poucas árvores que me são negadas / comprometem minha propriedade como um todo. / [...] Por isso nossa alma se debruça sobre a cerca, / para sentir em meio à plenitude, o que nos falta” (11 239-52). Eles precisam ser afastados para dar lugar àquilo que Fausto passa a ver como a culminação do seu trabalho: uma torre de observação, do alto da qual ele e os seus possam “contemplar a distância até o infinito”, soberanos sobre o novo mundo que construíram (Cf. BERMAN, 2007, p. 85).
Fausto oferece dinheiro ou outra pequena propriedade, mas ao casal idoso não interessa dinheiro. Aceitar mudar seria como arrancar um pé de bananeira do campo e tentar plantá-lo no asfalto. Morte na certa. O casal teima e resiste, não aceita sair da terrinha. Assim, Fausto convoca Melisto e seus “homens fortes” e ordena-lhes “que tirem o casal de velhos do caminho. Ele não deseja vê-lo, nem quer saber dos detalhes da coisa. Só o que lhe interessa é o resultado final: quer que o terreno esteja livre na manhã seguinte, para que o novo projeto seja iniciado. Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto, impessoal, mediado por complexas organizações e funções institucionais. Mefisto e sua unidade especial retornam “na calada da noite” com a boa notícia de que tudo estava resolvido. Fausto, de repente preocupado, pergunta para onde foi removido o velho casal — e vem a saber que a casa foi incendiada e eles foram mortos. Fausto se sente pasmo e ultrajado, tal como se sentira diante de Gretchen. Protesta dizendo que não ordenara violência; chama Mefisto de monstro e manda-o embora. O príncipe das trevas se vai, elegantemente, como cavalheiro que é; porém ri antes de sair. Fausto vinha fingindo não só para outros, mas para si mesmo, que podia criar um novo mundo com mãos limpas; ele ainda não está preparado para aceitar a responsabilidade sobre a morte e o sofrimento humano que abrem o caminho. Primeiro, firmou contrato com o trabalho sujo do desenvolvimento; agora lava as mãos e condena o executante da tarefa, tão logo esta é cumprida. É como se o processo de desenvolvimento, ainda quando transforma a terra vazia num deslumbrante espaço físico e social, recriasse a terra vazia no coração do próprio fomentador. É assim que funciona a tragédia do desenvolvimento” (BERMAN, 2007, p. 85-86) (grifo nosso).
Esse Fausto de Marshall Berman representa todos os donos de grandes empresas, seus executivos e acionistas que, à distância, planejam e implementam megaprojetos que visam a acumulação de capital, mas preferem não ver o sangue de tantas vidas ceifadas em nome do ídolo mercado.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Obs.: Abaixo, vídeos que versam sobre o assunto apresentado, acima.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Acumulam capital destruindo vidas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU